quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

O papel de Maquiavel

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Até Maquiavel, Estado e sociedade compunham o “todo orgânico da existência humana”. Na Renascença, bizarro marketing anunciaria o Príncipe, “a grande e real concepção de um verdadeiro gênio político, animado pelos objetivos mais altos e mais nobres”. Com isso, legislar, verbo originário de legere, ou seja, leitura da natureza, pela pena racionalista virava facere, agere, primo canto baconiano-positivista-marxista. As ações sócio-políticas não deveriam mais obedecer determinações “espirituais”, portanto “inexistentes”. O pragmatismo “realista-materialista” de Nicoló di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527) surgia imprescindível:
O gênio de Maquiavel consistiu em aplicar ao domínio humano as normas da revolução mecanicista um bom século antes do advento da física experimental.
Francis Bacon (1561-1626), pioneiro da propalada física experimental, de fato valeu-se do guizo:
Temos uma grande dívida para com Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem e o que não deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente e a inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o dardo.
O bajulamento real, como acontecera com Maquiavel, também lhe foi rendoso e convincente, até pela possibilidade da transferência de poder, da ordem natural apreciada à manipulação acionada:“A investigação das causas finais é estéril e, como uma virgem consagrada a Deus, não engendra nada.” Ao que destaca Goytisol:“Assim, foi abandonada a filosofia natural como um traste inútil e o vazio, produzido pelo seu abandono, pretendeu o homem enchê-lo com a ciência.” E que “ciência” esplendorosa:

Bacon, por exemplo, falou da natureza como de uma fêmea, sendo “obrigada a servir”, posta em “sujeição” e escravizada pelo filósofo natural. De nada vale tentar agarrá-la se não se exercer controle sobre ela, ele escreveu; a Natureza deve ser capturada e seus segredos penetrados, como seus aposentos íntimos.
Falava a criatura, perdoe-me, de estupro à natureza:

A partir de Bacon, o objetivo da ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para dominar a natureza... A natureza, na opinião dele, tinha que ser “acossada em seus descaminhos”, “obrigada a servir”, “escravizada”. Devia ser “reduzida à obediência” e o objetivo do cientista era “extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos.
Da bibliografia maquiavélica
A galeria de Maquiavel é paupérrima. A filosofia tomista não o atingiu. De Aristóteles, não tomou conhecimento. Marcelo Gleiser sugere a importante veia:
Além de sua influência na teologia cristã, o pensamento monístico grego exerceu grande influência no desenvolvimento da ciência moderna, em particular após a redescoberta de textos gregos na Europa no fim da Idade Média e início da Renascença.
O poder se mantinha por essas duas pernas:

A interpretação religiosa assenta nessa mesma ambiguidade: una est religio in rituum varietate, proclama Ficino, que, na Teologia Platônica – título revelador – desenvolve o acordo entre o platonismo e o cristianismo. ‘Eis a razão porque, quem quer que leia seriamente as obras de Platão, nelas encontrará, evidentemente, tudo, mas em particular essas duas verdades eternas: o culto reconhecido de um deus conhecido e a divindade das almas, onde reside toda a compreensão das coisas, toda a regra de vida e toda a felicidade. E tanto o mais que, sobre estes problemas, a maneira de pensar de Platão é tal que, de entre outros filósofos, foi a ele que Agostinho escolheu para modelo, como sendo o mais próximo da verdade cristã, afirmando que, com pequenas alterações, os platônicos seriam cristãos.’
O trilho estava estendido:

Maquiavel considerava que a religião e sobretudo o temor a Deus, era essencial ‘para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus são necessários sobretudo nas repúblicas: ‘e como a observância do culto divino é origem da grandeza das repúblicas, também o desprezo daquele é origem da ruína destas. Porque onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião.’
Santo Agostinho
Nascido na Argélia e educado em Cartago, o padre assimilou o maniqueísmo, (oriundo do persa mani (215-276), o qual divide o mundo entre bem e mal, conjugando-o através da filosofia platônica:
Os séculos IV e V, em que Agostinho vive, são uma época em que a filosofia, talvez com exceção do neoplatonismo de Plotino, perdeu a confiança na razão. Cabe então a Agostinho restaurar a certeza da razão, e isso, paradoxalmente, por meio da fé  (Abrão, B., p. 98/9)
“Agostinho pode ser considerado como autor da primeira filosofia do cristianismo, intitulada ‘De Civitae Dei’ (Sobre a Cidade de Deus), bem como o pai ou precursos da hierarquia eclesiástica, que culminou no século XIII e vem teológica e políticamente sistematizada na ‘Summa Theologiae’ de Tomás de Aquino."
O sistema filosófico-teológico de Agostinho está inteiramente calcado sobre a ideologia do Antigo Testamento. As doutrinas de Agostinho sobre o pecado e redenção do homem são de uma clareza diáfana e foram aceitas quase universalmente, com algumas modificações pela Igreja cristã do Ocidente, até aos nossos dias  Rohden, H, Filosofia Contemporânea, p. 23; 27/8-
Do padrinho

Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão.

Florença, no governo Cosme de Medici, viu nascer a Academia Florentina. Esta instituição favoreceu Platão, frente às universidades estabelecidas. A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elaborou com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente. Platão legara tese, estilo de vida, propósitos e atitudes:

Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditosvoluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos... enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa.
Da Vinci
Ainda que os artilheiros deste tempo se contentem de bom grado com o mais grosseiro empirismo, os príncipes, cobiçosos de eficácia militar, não desdenham o apelo à ciência e a função de matemático-engenheiro aparece ligada aos arsenais, designadamente na Itália.

Aproveitando o embalo, Leonardo da Vinci (1452-1519) mudou-se para o Palácio, à convite de Ludovico Scorza, o Mouro, depois de convencê-lo da utilidade de seus atributos como “estrategista militar, construtor de pontes, catapultas e projetista de morteiros, ‘com os quais posso lançar pedras de modo que estas parecam cair como chuva, e cuja fumaça mergulhará o inimigo em terror, para seu grande dano e confusão'.”

Se me permite, malgrado o famoso pintado, Da Vinci não me parece merecedor de tamanho galardão.
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Hegel

Maquiavel ensinara: “Na opinião pública, tudo é a um tempo falso e verdadeiro, mas cabe ao Grande Homem descobrir nela a verdade. E quem não compreende como desprezar a opinião pública, esse nunca realizará qualquer coisa grande.” Notemos como Hegel levou a sério o embuste:

A isto pode-se chamar astúcia da razão - o fato de por as paixões a trabalhar por si mesmas, embora aquilo que lhe desenvolva a existência através dessa compulsão pague o preço e sofra a perda.O particular é, na maior parte, demasiadamente insignificante quando comparado com o geral: os indivíduos são sacrificados e abandonados.
“Para tudo fazer, é necessário que o poder tudo possa”.
Não é difícil divisar a escada estendida:“O nacionalismo era o único sentimento que encerrava capacidade de atração geral.” A atração visava a subtração: “O Estado exige impostos e esta exigência de que cada um dê alguma coisa de sua propriedade, com o Estado tomando deste modo aos cidadãos, abarcando toda a existência: o direito à vida é sagrado, mas a ele se deve renunciar”.
“Os impostos não são, em absoluto lesões do direito de propriedade, a ponto de se considerar que reclamá-los seja algo ilícito. O direito do Estado, é algo mais alto do que o direito do indivíduo a sua propriedade e a sua própria pessoa.”

Relembra Bobbio:“As primeiras histórias das instituições foram histórias do direito, escrita por juristas que com freqüencia tiveram um envolvimento prático direto nos negócios do Estado.”
Assim fora com Platão, na temporada entre Roma e Cartago. A fonte é inesgotável: Hobbes e Bacon, em Londres; Rousseau, em Paris; Hegel e Savigny, em Berlim, ergueram seus edifícios no pântano. Nietzsche sempre desconfiou, não se conteve e chegou a denunciar a esperteza, “o maquiavelismo de Bismarck, aquilo que ele chamava de sua política realista.”
Antes a Pátria do que a própria vida. Kamikases e talibãs agradecem a compreensão, mas pode alguém chamar filosofia ou política realista o convite à morte?
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O canto-do-cisne
As estrêlas tem no buraco-negro seu desfecho. Brilhantes maquiavélicos seguem o rumo: o diretor da peça, programou-a sem variação, reservando um final melancólico, não poucas vezes trágico, ao seu astro principal, para deleite da platéia.
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Aprecie, ainda:
O efeito Maquiavel

A perene atualidade de Maquiavel
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* A crença não pensa.

2 comentários:

  1. Caro AllMirante,

    Nessa questão dos "Cartões Corporativos" (nome interessante... queria saber o motivo... Você já assitiu ao documentário 'The Corporaton'?) não acredito que vá atribular o governo (o escandânlo do mensalão provou a blindagem do Planalto) - mas isso não deve ser motivo para a cega tolerância. Para mim, se cada beneficiário fosse analisado individualmente e por seguinte feito jus à justiça, já iria inibir futuros atos dos que "mamam nas tetas do Estado". Se ficarmos atacando a figura do presidente, os seus subordinados sentirão-se inatingíveis, acobertados pela capa paternal. Claro que essa "medida corporativa" deve ser analisada novamente.


    Grande abraço,
    TriPulante De' Carli

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  2. AllMirante,

    Para acompanhar a cacofania das terras do Planalto, acesse o blog do Josias - colunista da Folha de S. Paulo:

    http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/


    Ao que parece, não é um comportamente restrito aos moluscos!

    Grande abraço

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