sexta-feira, 4 de abril de 2008

O perene Maquiavel

Formulo uma pergunta: após quatro séculos, o que resta de vivo no Príncipe? Podem os conselhos de Maquiavel ser ainda de alguma utilidade para aqueles que dirigem os Estados modernos? Circunscreve-se o valor do sistema político à época em que foi escrito e é, conseqüentemente, limitado e, em parte decrépito? Ou é, ao contrário, universal e atual, mais especialmente atual? Respondo a estas interrogações. Afirmo que a doutrina de Maquiavel vive hoje mais do que há quatro séculos, pois ainda que as formas exteriores de nossa existência tenham mudado consideravelmente, não se operaram modificações profundas, nem no espírito dos indivíduos, nem no dos povos. BENITO MUSSOLINI
No conto-de-fadas o inofensivo sapo se transforma em belo par. Na vida real o ex-batráquio é perigoso, e anda armado:
O Príncipe lesará somente aqueles dos quais tomará as terras e as casas para dá-las aos novos habitantes; e aqueles, os lesados, que representam uma ínfima parte de seu Estado, achando-se dispersos e desvalidos, jamais contra ele poderão conspirar. MAQUIAVEL
ALGUMAS PERSONALIDADES logram influenciar países, continentes, até o globo inteiro, e por séculos. Uns, porque lugar-comum, sequer são lembrados, ou mesmo conhecidos. Outros, geralmente por sua malvadeza, são perenes e freqüentemente evocados. O muy amigo do Príncipe ocupa a pole-position: "Foi Maquiavel, maior que Cristóvão Colombo, que descobriui o continente sobre o qual Hobbes pôde edificar sua doutrina."(STRAUSS, Leo, Direito Natural e História, tradução francesa de Monique Nathan e Éric de Dampierre. Paris, Plon: 1954, p. 192) “Cromwell, Primeiro-ministro de Henrique VIII e primeiro ditador do mundo, reverenciava o Príncipe de Maquiavel como 'quintessência da sabedoria política'.”(WEELS, H. G., História Universal, segundo tomo, Da ascenção e queda do império romano até o renascimento da civilização ocidental:  507.)
 Tanto Nomini Nullum Par Elogium.
."Tão grande nome nenhum elogio alcança"; ou, como prefere Chevallier :“Nenhum elogio a altura de tão grande nome.
O secretário entrou até no dicionário, tal qual substantivo e adjetivo. (maquiavélico, maquiavelismo) Muito além da semântica, porém, o efeito nuclear de Nicolau Maquiavel (1469 — 1527) é maior do que a bomba de Hiroshima e o vazamento da Usina de Chernobyl, juntos. Aliás, o florentino é o principal responsável por esses dantescos episódios.
No entanto, a fôrça corrosiva do pensamento e do estilo de Maquiavel ultrapassaram, de infinita distância, o objeto do momento. Por ter realçado tão cruamente o problema das relações entre a política e a moral; por ter concluído, em 'uma cisão profunda, uma irremediável separação' (Jacques Maritain) entre elas, O Príncipe atormentou a humanidade durante mais de quatro séculos. E continuará a atormentá-la, senão 'eternamente', como se disse, - ao menos enquanto essa humanidade não tiver analisado inteiramente certa cultura moral, herdada, no que diz respeito ao Ocidente, de alguns Antigos célebres, e, sobretudo, do cristianismo. (Chevallier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, p.46)
Para ser mais enfático, sem exagêro, seu dano sobrepuja a união de todas as bombas já disparadas na face da Terra. Praticamente sem exceção, todas foram largadas por respeito aos seus ditames, e desrespeito à humanidade:
As lições mais completas, tanto a virtu maquiavelesca - o engenho e o talento políticos e a presteza na ação, postos a serviços da conquista, manutenção e acréscimo do Estado - quanto do amoralismo e do imoralismo que movem com forca animal e instintiva e inteligente e preconcebida os atos extremos de rapacidade, traição, violência criminosa, luxúria, crueldade inumana, egoísmo e ódio escarniçado. D' Elia, Antônio, Maquiavel, Nicolau, O Príncipe: 3
O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel. Jorge, Fernando: 90
Milhões tombaram por causa do cândido rastilho; outros foram “só” espoliados:
A teoria maquiavelista relembra que o poder político é exercido, por toda parte e sempre, por uma minoria e que o poder político conta tanto quanto o poder econômico. Os marxistas detestam esta teoria porque ela aplica-se nas sociedades ocidentais, mas admiravelmente bem à sociedade soviética. Os teóricos maquiavelistas não negam que os que detém o poder não o aproveitam para obterem vantagens econômicas, mas o poder parece-lhes ser o fenômeno primordial. Ora, a revolução que cabe melhor no esquema maquiavelista e pior no esquema marxista é a revolução soviética, típica tomada de poder por uma minoria que não era nem detentora dos meios de produção, nem representativa da massa da população, nem exprimia a classe socialmente dominante, mas que, organizada em partido, apoderou-se do Estado. ARON,  Raymond, La lutte des classes, 1964, p. 194/195; cit. Schwartzenberg, Roger-Gérard, Sociologia Política: 233
Milhões continuam sob grilhões mais ou menos intensos; e outro tanto, aguarda a vez: “Por isso, um príncipe cauteloso deve conceber um modo pelo qual os seus cidadãos, sempre e em qualquer situação, percebam que ele e o Estado lhes são indispensáveis. Só então aqueles ser-lhe-ão sempre fiéis.” (3)
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A má temática
O gênio de Maquiavel consistiu em aplicar ao domínio
humano as normas da revolução mecanicista um bom
século antes do advento da física experimental.
Gusdorf, G., : 163.
O introdutor da "física experimental" desfraldou a bandeira da cascavel:
Temos uma grande dívida para com Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem e o que não deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente e a inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o dardo. Bacon, Francis, Advencement of Learning, 1629, II, XXXI.
NO ESPÍRITO à bête-machine, bem cabia o azeite da oficina florentina:
“Antes que Descartes dissesse que sua metafísica não era senão geometria, Maquiavel pode ter pretendido que sua política não era mais que matemática, com seus signos fundamentais, mais, menos, igual.” (4)
A “genialidade” maquiavélica vem desse empírico e obsoleto paradigma anexado, conexão de racionalidade mecanicista flagrada por Gusdorf . (5) A própria “razão” provém de cálculo. Seu designativo remete ao ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar:
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política. (6)
O cristão florentino ensinava: “Deus não quer fazer tudo, para não tolher o livre arbítrio e aquela parte de glória que nos cabe”. (7) Naturalmente é apenas mais uma hipocrisia. A glória estava reservada ao seu patrono: "Onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião.’
Com Maquiavel estamos de fato num mundo completamente diverso. A Idade Média está morta; mais do que isto, é como nunca ela tivesse existido. Todos os seus problemas: Deus, salvação, ligações entre o lá em cima e o cá embaixo, justiça, fundamento divino do poder, nada disto existe para Maquiavel. Há uma única realidade, a do Estado, um único fato, o do poder. E um problema: como se afirma e se conserva o poder do Estado. O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. E só. Dentro do cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo a modificar o resultado. (8)
A "lei" do mais astuto.
O apelo se mostrava realista e coadunado com os princípios basilares da Física conhecida. Marcílio Marques Moreira o retrata:“O secretário da República florentina era amigo das leis e teórico empírico da força.” (9)
Força, não se discute, é conceito de Física. Ainda mais força-bruta. E sobre a amizade de Maquiavel com as “leis”, principalmente aquelas de seu próprio interesse, podemos ver, com Chevallier, os “tipos” legais que mereciam a atenção:
A primeira lei é a da conservação, lei egoísta que é válida tanto para o Estado como para tudo o que vive, mas que, no caso do Estado, se amplia e se reveste de um caráter quase sagrado. A segunda é a lei da concorrência vital que, num mundo dividido em Estados distintos, decorre irresistivelmente da primeira. (10)
Para o tirano vencedor, o conselho de “apressar-se a infligir todos os males que forem necessários, de um golpe, para que não tenha de renová-los diariamente, mas possa, pela cessação deles, tranqüilizar o espírito dos homens e depois cativá-los com benefícios. Os benefícios devem ser conferidos pouco a pouco, para serem mais plenamente apreciados”. (11)
Aplacando a desgraça, a recomendação ao panis et circences * : “Reminiscência da antiga Roma, tão admirada por Maquiavel, é o conselho ao príncipe de que, em épocas adequadas do ano, entretenha o povo com festas e espetáculos.” (12)
Nas ações “contra os quais não há tribunal a que recorrer, os fins é que contam. Faça, pois, o Príncipe tudo para alcançar e defender o poder; os meios de que se valer serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e para os resultados”. (13)
Qualquer coincidência com a atualidade, evidentemente, não é por acaso:
O homem moderno, no entanto, especialmente nas democracias, considera-a, a política, uma atividade suspeita. Pode-se dizer que desde os tempos de Maquiavel, com sua máxima de que os meios justificam os fins, e do Cardeal Mazarino, que acreditava ser a política um jogo de torpezas, ela passou a ser mal vista, pelo menos mais do que em épocas anteriores. (14)
Schilling se equivocou apenas porque para Maquiavel eram os fins que justificavam os meios, o que é quase a mesma coisa, mas não é a mesma coisa. Bertrand Russell (1872-1970) em apenas uma palavra foi o que pode se chamar claro:“ O Príncipe é um compêndio dedicado a gangsters”. (15)
Os discutíveis fins continuam “legalizando” os criminosos meios, para o doloroso, nem por isto menos veemente protesto, acima de tudo científico, porque pautado na quântica, onde há interação, trazido por Ema Goldmann:
Essa perversão dos valores éticos cedo se cristalizou no lema dominante do Partido Comunista: os fins justificam os meios. Não há maior falácia do que a crença de que objetivos e propósitos são uma coisa e métodos e táticas outra. Essa concepção é uma poderosa ameaça à regeneração social. Toda a experiência humana ensina que métodos e meios não podem ser separados de seu objetivo principal. Os meios empregados acabaram por se tornar, através de hábitos individuais e da prática social, parte e parcela do objetivo final; eles exercem sua influência sobre ele, modificam-no até que objetivos e meios se tornem uma coisa só. Desde o dia de minha chegada na Rússia eu senti isso, a princípio vagamente, depois com uma clareza cada vez maior. Os grandes e elevados objetivos da Revolução tornaram-se tão enevoados e obscurecidos pelos métodos utilizados pelo poder político para atingi-los, que é difícil distinguir entre os meios temporários e o propósito final. Psicológica e sociologicamente, os meios irão necessáriamente influenciar e alterar os fins. Toda a história do homem é uma prova contínua da máxima de que retirar conceitos éticos dos métodos utilizados significa mergulhar nas profundezas da desmoralização total. É aí que reside a verdadeira tragédia da filosofia bolchevique tal como foi aplicada à Revolução Russa. Que esta lição não tenha sido em vão. (My Further Disillusionmet with Russia, 1924, cit. Woodcock, p. 14.)
O muro caiu, mas não as ambições. Putin veio modernizado.
. Maquiavel no Brasil
A contribuição de Nicolau Maquiavel para o mundo é imensa. Ensinou, através da sua obra , a vários políticos e governantes. Aliás, a obra de Maquiavel entrou para sempre não só na história, como na nossa vida cotidiana atual, já que é aplicável a todos os tempos. http://www.culturabrasil.pro.br/maquiavel.htm
O secretário mantém clube cada vez mais encorpado. Seu representante-mór tinha orgulho do dístico:
E sei, por testemunho de Augusto Frederico Schmidt, via Oswaldo Aranha, que Getúlio Vargas leu e teceu comentários à margem de “Machiavel e o Brasil”, encontrando-se, evidentemente, na figura desse chefe carismático idealizado, a imagem, certa ou errada, de Benito Mussolini. Sadek, Maria Tereza Aina, Machiavel, machiavéis: a tragédia octaviana; Estudo sobre o pensamento político de Octávio de Faria, p. 186.
“Seu exasperados inimigos rotularam-no de maquiavélico. Essa denominação era exata; Getúlio também a teria achado lisonjeira. Na morte como na vida os atos de Getúlio foram cuidadosamente calculados para produzir o máximo efeito político." (Skidmore, Thomas E., Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p.57)
Atualidade
"A corrupção endêmica nas entidades estatais, nos tempos modernos, é tão velha quanto a dos primeiros tempos. Apenas mais sofisticada. Carl Schmitt (“O Conceito do Político”) e Maquiavel (“O Príncipe”) continuam atualíssimos." A velhice dos tempos modernos
 Há fraudes de todos os tipos. 
 Edgard Camargo Rodrigues, novo presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Estado de São Paulo. (Estadão, 22/2/2009)

Afinal, o que não aprende o homem, quando o elefante,  submetido a treinamento, vira acrobata, o urso fica  saltador e o asno dá-se em espetáculo?
ERASMO DE ROTERDÃ, De Pueris: 53
Eis a razão da cartilha florentina permanecer sempre na moda. Encanta os obcecados pelo poder, tanto quanto a luz à maripôsa. O inseto supõe que quanto mais voltas efetivar, mais  se aproxima do fetiche, ao passo que se distancia de cair. O brilho, contudo, seja da luz ou do ouro, ao aspirante é fatal.  Ao comprovar a rota do sucesso no galgo ao pódium, e o deleite prazeroso, esquece o incauto que o diretor da peça programou-a sem variação, reservando um final melancólico, não poucas vezes trágico, ao seu astro principal, justamente ao gáudio da platéia, esta que lhe garante uma perene bilheteria.
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Notas
1. O Príncipe, De principatu civile, Do principado civil, p. 59.
2. Chevallier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, p. 46.
3. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, D' Elia, Antônio, p. 15.
4.Descartes, R. e Maquiavel, N., Corte, Marcel de, cits. Goytisolo, Juan Vallet de, p. 28.
5.Gusdorf, Georges, As Revoluções da França e da América, p. 163.
6. Koselleck, Reinhart, p. 24.
7. Cit. Jorge, Fernando, p. 134.
8. Koyré, A., Estudos da história do pensamento científico, p. 11.
9. Moreira, Marcilio Marques, O Pensamento Político de Maquiavel, p. 14.
10. Chevallier, Jean Jacques, História do Pensamento Político, Tomo 1, p. 273.
11. Maquiavel, N. cit. Downs, Robert Bingham, p.16.
12. Downs, R., p. 20.
13. Maquiavel, N., O Príncipe, cap. XVIII, Quomodo Fides a Principus Sit Servanda (De que modo devem os príncipes manter a palavra dada), p. 113.
14. Schilling, Voltaire, Apresentação.
15. Cit. Jorge, F., p. 142.


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