quinta-feira, 3 de abril de 2008

A fonte de Maquiavel

Eu sinto que me consumo e isto não pode continuar assim sem que a longa pobreza não faça de mim um objeto de desprezo. Além disso, desejo vivamente que estes Médici decidam-se a me empregar, mesmo se eles tivessem de começar por me fazer rolar uma pedra. MAQUIAVEL, N., O Príncipe, cap. XXVI
O astuto secretário considerava a religião e sobretudo o temor a Deus, essenciais para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus eram necessários sobretudo nas repúblicas, em que pese elas sequer existirem: Esta inobservância causara as ruínas das raras experiências republicanas, "porque. onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião." Mas além da realidade enfrentada, que outra fonte poderia abastecer o mais famoso florentino para capacitá-lo a tão perene obra, tão destrutivo cocktail? Exceto a história romana, Maquiavel não cita nada. As opções eram escassas, mas ele não fornece nenhuma. Todavia, se examinarmos o caráter de suas proposituras em confronto com o que já era conhecido, com a moda praticada, e com as crenças em voga podemos supor o fulcro mais contundente pelo qual se valeu o torpe perú para arrumar um cômodo no Palácio.
Até o Renascimento, o Ocidente praticamente desconhecia Platão. Mas alguns manuscritos gregos, comprados em Constantinopla, mudaram esse cenário. Entre eles, levados a Florença em meados de 1430, estava nada mais nada menos do que a obra completa de Platão. ABRÃO, B.:136
A ética tomista não lhe sensibilizava, obviamente; muito menos Aristóteles. Seu oriente, sem dúvida, foi Platão (428-347 a. C.), ex-secretário do Tirano de Siracusa:
Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos voluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos... enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa. (1)
O pederasta ateniense lhe precedeu em tese, profissão, propósitos, atitudes, e, por certo, no estilo de vida e na opção correspondente.
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Totalidade sem membros
Maquiavel abusou de sofismas, dialéticas arranjadas e ardis numerais, mas a primazia cabe ao grego, o primeiro a esboçar uma ciência calcada em arranjos ilusionistas:
“Assim Platão constantemente estabelece o contraste nos seus diálogos.” (2)
Na hora de propugnar pelo conhecimento e pelo Estado, resplandecia a dialética. Tal método se fazia eficaz; por isso, hegemônico. E a quem era dado fazer a ciência a partir do confronto, e pronunciar a "justiça" correspondente? Seu principal interessado e criador:“Platão, sonhando com uma retórica digna do filósofo, queria que os discursos deste pudessem convencer os próprios deuses”. (3)  O professor Júlio César Pereira completa:
O conceito de justiça é o primeiro conceito democrático mistificado por Platão. A justiça surgiria como uma propriedade do Estado. Seu totalitarismo é disfarçado sob a capa de 'verdadeira justiça', e se legitima teoricamente mediante a subversão doutrinária do humanitarismo em três frentes: defendendo o privilégio natural, postulando o coletivismo, advogando a tese de que o indivíduo existe para o Estado. (4)
Para a empunhadura do poder, Platão “inventara” a justificativa basilar do coletivismo, a redução do homem a mero número: “Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o Estado; coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor.” (5)
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A extinção do poder político da corporação de Roma precipitava formações sociais enfeixadas. Foi lógico se delinearem os estados nacionais. Fito primordial: autodefesa. Manutenção e acréscimo do Estado. Para alguém ganhar, alguém tinha que perder. Melhor que fosse o estranho. Todos concordavam - a riqueza só poderia ser alcançada através das operações bélicas, de saques. Para defesa, também guerras e saques. Sequer aqueles que não desejavam conquistas podiam depor as armas, sob pena de perderem propriedades, e se verem transformados em escravos.
Para atender Platão e a brutal realidade vivida pela sentinela de Roma, uma arena gigante onde se digladiavam espanhóis, franceses, italianos e outros mais, Maquiavel propugnou por avassalador domínio do Rei sobre uma população atônita, requisitada a granel para fazer frente aos combates.Contribuíram os infelizes com toneladas de carne. Era fácil convocar; e grátis.
A atenção de Maquiavel voltada com tal intensidade ao capricho do Rei e do Estado, fê-lo “criador” do último termo, embora entendamos que Platão é quem merece a primazia:
E foi precisamente Maquiavel, consoante patenteamos na Introdução acima, que, de modo pioneiro, conferiu a palavra Estado seu significado autêntico, ao cunhá-la e imprimir-lhe essência e conteúdo, embora sem apresentar propriamente uma definição. (6)
Santi Romano adere:“Na literatura científica a palavra Estado foi pela primeira vez empregada no sentido coincidente ao do moderno por Maquiavel.” (7)
É semântica, apenas. O sentido coincide também com o arcaico! Mas o que vinha a ser “Estado” ao oportunista renascentista? Ele mesmo responde:
“Todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados.” (8)
Ou seja, Estado é um instrumento de dominação, por lei instituída ou vontade da milícia. Como Esparta, principalmente tal qual Siracusa, e em especial o Império Romano, glória que inebriou .o florentino.
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A Hidra
Entre o Império Romano e a chegada do artífice florentino Platão estava sepultado. Ninguém tinha ouvido falar no namorador de espartanos, e Siracusa era distante no tempo e no espaço. O povo punha-se disperso, num espectro pluralista. Cada agrupamento adotava a resposta jurídica compatível. O Direito provinha dos cidadãos, diversificando-se na medida de usos e costumes próprios de cada região. Julgadores não se vinculavam a normas superiores, até por que de difícil comunicação, mas decidiam com base nos fatos circunstanciais, à luz do “direito natural”, por critérios eqüitativos. As sentenças observavam as características da relatividade intrínseca às partes conflitantes, suas condições. Com Maquiavel, todavia, reiniciara o que Bobbio chama de “monopolização da produção jurídica por parte do Estado” (9).
Algo remete-nos à Hidra, a mitológica serpente dona de veneno letal, e dotada de várias cabeças. Caso cortadas as pragas, outras cabeças cresciam nos respectivos lugares. Uma delas, todavia, era indestrutível. Creio Platão merecer, também, tal privilégio. A "nova cabeça" indutora do cinismo* político, contudo, a indestrutível, tratava apenas da conquista e manutenção do poder.** Ao "renascimento" a Itália deveria resgatar o Império de outrora, “unida, armada e despojada do caráter sacerdotal”, (10) à própria sobrevivência. Eis a virtú maquiavelesca.
Maquiavel considerava que a religião e sobretudo o temor a Deus, era essencial ‘para comandar os exércitos, para estimular a plebe a manter os homens bons, para fazer os reis se envergonharem.’ Escrevia ele também que o culto divino e o temor a Deus são necessários sobretudo nas repúblicas: ‘e como a observância do culto divino é origem da grandeza das repúblicas, também o desprezo daquele é origem da ruína destas. Porque onde falta o temor a Deus, convém ou que aquele reino desabe, ou que seja sustentado pelo temor a um príncipe que supra os defeitos da religião.’ 
Se isso for filosofia, sociologia, escola de direito, antropologia, algo de ético, econômico, matemático, ou científico, pode me tirar o tubo.
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Notas
* Cinismo: de cínico, do grego kynikos, “semelhante ao cão”.
** Poder: do latim potere, ser capaz.
1. Platão, Estadista, cit. Popper, Karl M., Sociedade Democrática e Seus Inimigos, p. 184.
2. Dewey, J., p. 43.
3. Platão, Fedro, 273e, cit. Perelman, C., p. 536
4. Platão, cit. Pereira, Julio Cesar R., Epistemologia e Liberalismo - Uma Introdução a Filosofia de Karl R. Popper, p. 116/17.
5. Platão, A República cit. Popper, K., p. 123.
6. Cassirer, Ernst, cit. Bastos, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Introdução, p. 5/6
7. Romano, Santi, cit. idem, p. 9.
8. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, Capítulo A Arte da Guerra, 1521, em D' Elia, Antônio, p. 24.
9. Bobbio, Norberto, O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do Direito, p. 28
10. Machiavelli, N., cit. Bonavides, Paulo, Ciência Política, p. 62.



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