A ética tomista não lhe sensibilizava, obviamente; muito menos Aristóteles. Seu oriente, sem dúvida, foi Platão (428-347 a. C.), ex-secretário do Tirano de Siracusa:
Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos voluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos... enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa. (1)
O pederasta ateniense lhe precedeu em tese, profissão, propósitos, atitudes, e, por certo, no estilo de vida e na opção correspondente.
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Totalidade sem membros
Maquiavel abusou de sofismas, dialéticas arranjadas e ardis numerais, mas a primazia cabe ao grego, o primeiro a esboçar uma ciência calcada em arranjos ilusionistas:
“Assim Platão constantemente estabelece o contraste nos seus diálogos.” (2)
Na hora de propugnar pelo conhecimento e pelo Estado, resplandecia a dialética. Tal método se fazia eficaz; por isso, hegemônico. E a quem era dado fazer a ciência a partir do confronto, e pronunciar a "justiça" correspondente? Seu principal interessado e criador:“Platão, sonhando com uma retórica digna do filósofo, queria que os discursos deste pudessem convencer os próprios deuses”. (3) O professor Júlio César Pereira completa:
O conceito de justiça é o primeiro conceito democrático mistificado por Platão. A justiça surgiria como uma propriedade do Estado. Seu totalitarismo é disfarçado sob a capa de 'verdadeira justiça', e se legitima teoricamente mediante a subversão doutrinária do humanitarismo em três frentes: defendendo o privilégio natural, postulando o coletivismo, advogando a tese de que o indivíduo existe para o Estado. (4)
Para a empunhadura do poder, Platão “inventara” a justificativa basilar do coletivismo, a redução do homem a mero número: “Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o Estado; coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor.” (5)
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A extinção do poder político da corporação de Roma precipitava formações sociais enfeixadas. Foi lógico se delinearem os estados nacionais. Fito primordial: autodefesa. Manutenção e acréscimo do Estado. Para alguém ganhar, alguém tinha que perder. Melhor que fosse o estranho. Todos concordavam - a riqueza só poderia ser alcançada através das operações bélicas, de saques. Para defesa, também guerras e saques. Sequer aqueles que não desejavam conquistas podiam depor as armas, sob pena de perderem propriedades, e se verem transformados em escravos.
Para atender Platão e a brutal realidade vivida pela sentinela de Roma, uma arena gigante onde se digladiavam espanhóis, franceses, italianos e outros mais, Maquiavel propugnou por avassalador domínio do Rei sobre uma população atônita, requisitada a granel para fazer frente aos combates.Contribuíram os infelizes com toneladas de carne. Era fácil convocar; e grátis.
A atenção de Maquiavel voltada com tal intensidade ao capricho do Rei e do Estado, fê-lo “criador” do último termo, embora entendamos que Platão é quem merece a primazia:
E foi precisamente Maquiavel, consoante patenteamos na Introdução acima, que, de modo pioneiro, conferiu a palavra Estado seu significado autêntico, ao cunhá-la e imprimir-lhe essência e conteúdo, embora sem apresentar propriamente uma definição. (6)
Santi Romano adere:“Na literatura científica a palavra Estado foi pela primeira vez empregada no sentido coincidente ao do moderno por Maquiavel.” (7)
É semântica, apenas. O sentido coincide também com o arcaico! Mas o que vinha a ser “Estado” ao oportunista renascentista? Ele mesmo responde:
“Todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados.” (8)
Ou seja, Estado é um instrumento de dominação, por lei instituída ou vontade da milícia. Como Esparta, principalmente tal qual Siracusa, e em especial o Império Romano, glória que inebriou .o florentino.
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A Hidra
Entre o Império Romano e a chegada do artífice florentino Platão estava sepultado. Ninguém tinha ouvido falar no namorador de espartanos, e Siracusa era distante no tempo e no espaço. O povo punha-se disperso, num espectro pluralista. Cada agrupamento adotava a resposta jurídica compatível. O Direito provinha dos cidadãos, diversificando-se na medida de usos e costumes próprios de cada região. Julgadores não se vinculavam a normas superiores, até por que de difícil comunicação, mas decidiam com base nos fatos circunstanciais, à luz do “direito natural”, por critérios eqüitativos. As sentenças observavam as características da relatividade intrínseca às partes conflitantes, suas condições. Com Maquiavel, todavia, reiniciara o que Bobbio chama de “monopolização da produção jurídica por parte do Estado” (9).
Algo remete-nos à Hidra, a mitológica serpente dona de veneno letal, e dotada de várias cabeças. Caso cortadas as pragas, outras cabeças cresciam nos respectivos lugares. Uma delas, todavia, era indestrutível. Creio Platão merecer, também, tal privilégio. A "nova cabeça" indutora do cinismo* político, contudo, a indestrutível, tratava apenas da conquista e manutenção do poder.** Ao "renascimento" a Itália deveria resgatar o Império de outrora, “unida, armada e despojada do caráter sacerdotal”, (10) à própria sobrevivência. Eis a virtú maquiavelesca.
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