terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O Leviathan afrancesado

A guerra é a saúde do Estado. Ela coloca em movimento, automáticamente, em toda a sociedade, aquelas forças irresistíveis que buscam a uniformidade e cooperam com o governo entusiásticamente na tarefa de coagir grupos minoritários e os indivíduos isolados sem identificação com o grupo, obrigando-os a obedecer. Os mecanismos do governo não só estabelecem as punições mas aplicam-nas fazendo com que essas minorias sejam silenciadas pela força ou passem por um processo sutil de persuasão que acabará por convencê-las de que foram convertidas, a nação atinge uma uniformidade de sentimentos, hierarquia de valores que culmina com o ápice do ideal do Estado, que só poderia ser obtido através da guerra cada indivíduo se identifica com o todo e sente-se muito mais forte com esta identificação. Um povo em guerra volta a ser criança no sentido mais literal do termo: são obedientes, respeitosos, confiantes, cheios de fé ingênua na total sabedoria e no poder absoluto do adulto que toma conta deles, impondo-lhes suas regras firmes mas bondosas e em quem podem depositar todas as suas ansiedades, temores e responsabilidades. E você dirige um olhar cheio de adoração para o Estado, como um filho olha para o Pai, como se o Estado fosse o símbolo quase pessoal da força do rebanho, e o líder e determinante de todas as suas ações concretas e de todas as suas idéias. (Gusdorf: 18)

E TOME IMPOSTO, para recruta à granel:
Sabe-se que o objetivo da talha foi de permitir ao rei comprar soldados que dispensassem os nobres e seus vassalos do serviço militar. Mas no século dezessete o serviço militar obrigatório foi novamente imposto sob o nome de milícia e desta vez só recaiu sobre o povo e quase exclusivamente sobre o camponês. 'A mediocridade do soldo do soldado', escreve um deles, 'a maneira como está deitado, vestido, alimentado e toda sua dependência tornariam por demais cruel pegar um outro homem que um homem do baixo povo. (Tocqueville, 1997: 135)
A “opinião pública” passa à “vontade geral” prescindindo de razão. Hans Kelsen (1993: 99) critica a dubiedade: “Rousseau introduz aqui o conceito da 'vontade geral' distinguindo-o do conceito de 'vontade de todos', um conceito extremamente misterioso que ele nunca define com clareza.”
Norberto Bobbio (1992: 101) enfatiza:
O conceito de democracia é inseparável do conceito de direitos do homem. Se se elimina uma concepção individualista da sociedade, não se pode mais justificar a democracia. Tenho dito freqüentemente que, quando nos referimos a uma democracia, seria mais correto falar de soberania dos cidadãos e não soberania popular. “‘Povo’ é um conceito ambíguo, do qual se serviram também todas as ditaduras modernas.
Bobbio demonstra a certeza de Tocqueville, mas Kelsen (1993: 141) demorou trinta anos para dobrar-se à grande diferença:“É o valor da liberdade e não o da igualdade que determina, em primeiro lugar, a idéia de democracia.”
Pelo fato de excluir qualquer minoria em nome da maioria, evidentemente, por mais dourada que possa ser a receita de Rousseau, ela é, por tudo, antidemocrática, determinista, mecanicista, preconceituosa, parcial, dogmática. Em uma palavra, falsa. Não perde, contudo, sua máxima, à conquista e manutenção de poder, sabe-se poder para o quê. E, de fato, mercê da vagueza do carácter, a qual propicia a reinversão objetiva do direito natural rumo ao despotismo consubstanciado em invólucro democrático, a artimanha constantemente é invocada. Se alguns milagres de virtude foram produzidos pela maioria, dita espelho nacional do aclamado patriotismo, este também reproduziu, até em maior escala, fulgurantes mas desprezíveis personalidades, e sentimentos impregnados de inveja, frustração, cobiça, ódio e destruição. No trilho do ufanismo, Bismarck, Lênin, Hitler, Mussolini, Hiroíto e Mao Tsè Tung jogaram seus compatriotas ao total infortúnio.
É singelo compreender A. Einstein (Como vejo o mundo; cit. Trattner, Thomas, e Thomas: 75):"Nos mecanismos universais, o mecanismo Estado não se impõe como o mais indispensável. Mas é a pessoa humana, livre, criadora e sensível que modela o belo e exalta o sublime, ao passo que as massas continuam arrastadas por uma dança infernal de imbecilidade e embrutecimento."
Pela imperiosa “inalienabilidade” de poder, o indivíduo se perde, e com ele seu direito, seu poder em prol do grandioso corpo do Leviathan tonificado, aclamado “justo”, “democrático” porque nascido como produto da chamada “vontade geral”, esta expressa geralmente pela baioneta, inicialmente pela guilhotina, às vezes contada e assim “legitimada” em escusos plebiscitos de capciosos resultados. Os poderes do povo são transferidos enfeixados ao enfaixado representante, supremo mandatário, de vontade tão ilimitada quanto venerada. Eis a receita de todas as tiranias e ditaduras:"Através da vontade geral, o povo-rei coincide, miticamente, de agora em diante, com o poder; essa crença é a matriz do totalitarismo." (Cochin, Auguste, cit. Furet: 1989: 191)
No mais ameno, a ladina aritmética coloca o abstrato numeral da soma de todos, ou da maioria, como a verdade suprema a ser seguida e acatada, porque “insuperável”, sonho platônico colorido em Florença: “A soma de todos os bens individuais é, sem a menor dúvida, o ideal supremo de Machiavel.” (Faria, O.: 73)
Realmente até poderia ser uma meta plausível, não fosse um pequeno desvio semântico: a soma de todos é equação inatingível:“Por um paradoxo da existência social do homem, porém, a vida das comunidades não é uma simples soma das vidas individuais.” (Barzun, Jacques, Sobre a história, cit. Fadiman, C. p. 6)
A proposta é inverossímel, desconforme com a ciência, pelo bizarro:“A relatividade consiste em conceber o mundo não como uma soma de acontecimentos, mas de relações.” (Rohden, Einstein : o enigma do universo: 207)
A numerocracia não relaciona nem soma, mas subtrai, e de todos. É utópica, posto que desatende o indivíduo, portanto a todos. Inadequado por incorreto é o modo de conceber e legitimar um direito emanado do todo, porque dele nada emana:“A justiça, a moral, o direito, a liberdade só se realizam na medida em que se realizam singularmente nos indivíduos.” (Rosselli: 121)
Aquele pressuposto só deriva em sofismas:"A verdade é que nunca se conhece o todo, porque se é parte do todo. E nós nunca dominamos a história, mesmo a nossa própria história, porque estamos sempre dentro dela. Quando se trata do todo, somos impotentes; e Luckács também o é, tanto quanto nós. " (Konder, 1980: 81)
Ao misturarmos todas as cores apuramos um cinza escuro, quiçá preto, os quais sequer são considerados cores. Finalmente, lembrando Thoreau, como denominar “Contrato” (trato com outro) um termo no qual uma das partes é forçada a participar? Mas o galanteio se impunha como a lógica das lógicas:“Os indivíduos podem enganar-se; a volontè générale, jamais.” (Rousseau, J.J., Contrato Social, II, 3; cit. Koselleck: 142)
Michel Villey (cit. Goytisolo: 91) também detectou o charlatanismo:"Certamente o mito de 'uma vontade geral' com a qual se identifica a própria vontade de um modo quase místico, de tal maneira que, ao obedecer a vontade do povo somente, alguém permanece tão livre como no estado de independência nativa foi apresentado como premissa axiomática."
Esta premissa deriva do grego axia, significando “valor”, sentido de qualidade, não no sentido físico de quantidade, como distorceu Rousseau. O estado democrático, submisso às leis, não projeta valor, apenas é refletor da Nação, mas a contagem é a forja que dá consistência à ideologia do moderno príncipe:“O ideal de emancipar-se das velhas ataduras e o não menos certo propósito de formar um Estado altamente centralizado e racional foram proporcionados, de fato, pela vontade geral.” (Simon, Ives R., cit. Goytisolo, ibidem)
Einstein (New York Times, 22/11/1931; cit. Pais, 1997: 205) arrasou:"Creio que a missão mais importante do Estado é proteger o indivíduo e possibilitar que ele desenvolva uma personalidade criativa. O Estado deveria ser o nosso servidor; nós não deveríamos ser escravos do Estado."
Rohden (Einstein : o enigma do Universo: 140) o explica por outros termos:
Einstein admite que tudo que gira no plano das facticidades empírico-analíticas está numa dimensão meramente quantitativa, sujeita às categorias ilusórias de tempo, espaço e casualidade e que deste mundo de facticidades quantitativas não há nenhum caminho causal para o mundo da Realidade qualitativa. Somando e multiplicando-se quantidades, nunca teremos qualidades; somando ou multiplicando zeros nunca chegaremos a ter o valor positivo do ‘1’. Horizontal mais horizontal não dá vertical. Factual mais factual não dá Real.
Provavelmente por isso não vemos mais o aclamado Real. Vai ver, só nas Caymais.

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