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Um reduto romano
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Então veio, parece, um sábio astuto,
o primeiro inventor do medo aos deuses...
Forjou um conto, altamente sedutora doutrina,
em que a verdade se ocultava
sob os véus de mendaz sabedoria.
Disse onde moram os terríveis deuses das alturas,
em cúpulas gigantes, de onde ruge o trovão,
e aterradores relâmpagos do raio aos olhos cegam.
Cingiu assim os homens com seus atilhos de pavor
rodeando-os de deuses em esplêndidos sólios,
encantou-os com seus feitiços, e os intimidou –
e a desordem mudou-se em lei e ordem.
Crítias, tio de Platão
Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o Estado; coloco
justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor.
Platão (1).
NÃO FORAM POUCOS os franceses que se dedicaram a pesquisar um sistema que escapasse dos grilhões greco-romanos. Denis Diderot, Condorcet, Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783) (cit. McNall e Standish: 463), e vários artífices verificaram, in loco, a consistência britânica. Ao último essas verdades deveriam ser ensinadas às massas, “na esperança de que um dia o mundo inteiro pudesse libertar-se do.obscurantismo e da tirania.”
A mais moderna filosofia da ciência é pautada por semelhante caráter:
"Pelo rigor de seu modernismo, Bachelard se liga estreitamente a Filosofia das Luzes. Como os enciclopedistas, ele estabelece as barreiras contra a obscuridade ameaçadora do passado, para impedir o retrocesso." (cit. Quillet: 45)
A glória dos enciclopedistas, relata Mallet (cit. Wells, H.G., tomo III: 112) vinha do ódio as coisas injustas, na sua condenação ao tráfico de escravos, às desigualdades de tributação, à corrupção da justiça, ao desperdício inútil das guerras, e nos seus sonhos de progresso social, e na sua simpatia pelo nascente império da indústria que começava a transformar o mundo. Muito antes da malfadada Revolução, o grupo usufruíra da ilustre visita:
Perto do Natal de 1765 voltaram a Paris, onde permaneceram até outubro do ano seguinte. A companhia em que passa o Sr. Smith, seguindo recomendação do Sr. Hume, permite imaginar quão proveitosos foram esses dez meses; Turgot, Quesnai, Necker, d´Alembert, Helvetius, eram alguns de seus conhecidos.
(Stewart, D., in Smith, Teoria dos sentimentos morais : LI)
Além da realidade percebida no solo inglês, deste convívio com Smith e da presença de Quesnay, os enciclopedistas haviam mergulhado nas obras do Magic Group, de John Locke e Shaftesbury.
Brett (p. 217) traz a história do último, e grava sua importância:
"Em 1769 uma tradução francesa de suas obras foi editada em Genebra. Le Clerc, Voltaire conheceram suas obras e Diderot, especialmente, foi influenciado. Na Alemanha, Lessing, Herder, Kant e Schiller também, todos inspirando-se nelas."
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A presença de Roma
As comunicações da época, todavia, eram precárias, bem o sabemos; as regiões, distantes; os acessos, dificultados; as noites, assustadoras; e do inverno europeu, conhecemos suas exigências. A tradição era milenar, e iluministas contavam-se nas mãos. O esforço empregado para esclarecimento de todo aquele povo, tão distantemente espalhado pelos campos do imenso país, precisava igual fôlego. Além disso, teria que enfrentar duramente, em todas as arenas, os crescidos interesses da corte e de seus satélites, ávidos em abafar a difusão do Direito Natural e da ética que o permeia. Por fim, a própria Igreja se empenhou de plano a apagar o farol, porquanto liberalismo lembrava protestantismo; por isso merecia a condenação de latinos e ladinos, desde há muito influenciados, ou na carona, da Igreja Católica Apostólica Romana:
À medida em que as nações começaram a se formar, no fim da Idade Média, o ataque contra a descentralização começou a ser dirigido não apenas pelos monarcas e ditadores que criaram nações altamente organizadas, como a França dos Bourbons e a Inglaterra de Cromwell, mas também pela Igreja e especialmente pelas ordens monásticas mais poderosas, que em suas sedes estabeleciam regras de comportamento uniformes e uma contabilidade rígida sobre os atos dos seres humanos que antecipava o ataque iminente às liberdades e à independência regionais e, na prática, determinava o sistema de ajuda mútua.
(Woodcock, 1971: 57)
O sistema de hierarquias (2), ou a divisão por classes, foi o legado grego a Roma:
A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país.
(Toynbee: 196)
Uma cidadela grega assim era, mas não Atenas:
Por sua doutrina da similaridade entre Esparta e o estado perfeito, tornou-se Platão um dos propagandistas de maior sucesso do que eu gostaria de chamar ‘o Grande Mito de Esparta’, o perene e influente mito da supremacia da constituição e do modo de vida espartanos.
(Popper, 1998, Tomo I: 54/5)
Jehan Bodin e o direito divino
-O Estado platônico, desenvolvido de modo ascendente por Maquiavel, Bodin, Hobbes Descartes e Rousseau; posteriormente por Napoleão, Hegel, Sorel, Mussolini, Hitler, Lenin e Stalin, e entre nosotros, macaquitos brasileños, por Getúlio, só pode servir forte, centralizado, ao gosto da "autoridade":
“A responsabilidade absoluta do soberano exige e pressupõe a dominação absoluta de todos os sujeitos.” (Bodin, J., cit. Chevallier: 56)
Os enciclopedistas e principalmente Voltaire denunciaram por todos os meios o obscurantismo do velho tapume místico-totalitarista(3), quando poderes religioso e civil davam-se as mãos para permanecerem, cada qual a seu modo, mas em cumplicidade, ditando regras e subjugando os aglomerados. Pouco adiantou. O Galo alistara os soldados de Deus, os articuladores das congregações comunitárias. A paróquia enfeitada sacramentou a união espúria da Santa Sé com o Príncipe:
"Em virtude dessa estreita associação entre o poder do Estado e a autoridade religiosa, o catolicismo, em toda a parte em que predominava, opunha-se a liberdade de consciência e as liberdades democráticas, com o apoio do braço secular do poder civil. (Gusdorf: 80)
Isso recomendara Maquiavel:
"Na verdade, jamais houve qualquer legislador que tenha outorgado a seu povo leis de carácter extraordinário sem apelar para a divindade, pois sem isso estas leis não seriam aceitas... O governante sábio sempre recorre aos deuses." (Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília : Editora UnB, 1994: 58; cit. Bobbio, 2002: 164)
O mútuo só precisava de uma cabeça de ponte:
Vê-se como, ao transferir para a vontade geral as funções cumpridas anteriormente pela vontade divina (vox populi vox Dei) o positivismo jurídico veio a fundamentar toda a regra jurídica positiva no poder legislativo do Estado e na sanção, que garante a obediência à lei. Recusando qualquer outro fundamento do direito, o positivismo jurídico negou a existência a de um direito que não fosse a expressão da vontade do soberano.
(Perelman: 395 47)
Deus é o Pai onipotente e “ciumento”; exige obediência e fidelidade plena. Seus representantes também:
"Ser tolerante seria mais perigoso que ser severo ou cruel, pois as consequências de qualquer complacência derramaria mais sangue e seriam mais devastadoras que a severidade momentânea." (Koselleck, R.: 22)
Dissidentes precisavam ser convertidos; o totalitarismo era o único tipo de política que podia realmente servir ao exclusivista desiderato. Qualquer movimento protestante ou liberal deixava a autoridade dos representantes terrenos em cheque. Mister um só Deus Pai, um só Rei, um só Papa. Um único líder, onde estiver. Enfim, como chamam, uma só “ordenação”, a qual, ampliada, alcançou o fascismo, o nazismo, até o stalinismo. Sartre ( p. 61) identificou:
“O culto da personalidade é, antes de mais nada, o culto da unidade social em uma só pessoa.”
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As conseqüências do dogma
“O que quer que faça o rei, ele jamais se expõe à vergonha, no êxito ou na desgraça. Vencedor ou vencido, suas decisões são sempre as decisões de um rei.” (Maquiavel, cit. Bobbio, 2002: 95)
Por ordem de Deus, acima da ciência e da ética, descompromissado com a verdade e sem responsabilidade, o simples capricho do intérprete popular decreta a obediência incondicional: “Autorictas, non veritas, facit legem.” (4) (Leviathan, cit. Koselleck, R.: 31)
O latim é soberbo, mas desprovido de fundamento ético, muito menos científico:
"A partir do momento em que se tira algo dos plenos direitos do homem de governar-se a si próprio e se admite uma limitação artificial e positiva sobre esses direitos, toda a organização governamental se torna uma questão de conveniência." (Burke, E.: 89)
É inviável, portanto incorreto, legitimar um Direito emanado do todo, porque dele nada emana:
"Creio que, de um modo geral, todos reconhecem que há uma diferença radical entre proposições universais e particulares. Somente estas últimas têm importância existencial; as outras são hipotéticas ou condicionais." (John Dewey, cit. Shook: 203)
A justiça, a moral, o direito, a liberdade só se realizam na medida em que se realizam singularmente nos indivíduos. (Rosselli: 121)
Não só por isso, mas principalmente por isso, caíram todas as ditaduras, do Império Romano ao Bolchevique. Resta alertar:
"As corporações centralizadas e autoritárias têm fracassado pela mesma razão que levou ao fracasso os estados centralizados e autoritários: elas não conseguem lidar com os requisitos informacionais do mundo cada vez mais complexo que habitam." (Fukuyama, F., 2002: 205)
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Notas
1. Platão, A República; cit. Popper, K.: 123.
2. Termo constituído a partir de hieros, sagrado, mais arkhia, regra, ordem, provavelmente oriunda da figura geométrica do arco.
3. Místico provém do grego mystikos, mantido em silêncio.
4. "É a autoridade, não a verdade, o que faz a lei."
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