domingo, 3 de fevereiro de 2008

Democracia & Direito Natural



A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais. Norberto Bobbio
Isso até Maquiavel. De Florença à Place de La Concorde, entre os latinos especialmente, o Direito passou à serviço do feitor de plantão. O exitoso  exemplo levou Hegel implorar  pela reunião alemã, Comte pela científica normatização de todos, Marx, pela união dos operários do mundo; e a Igreja, pela universal.
As idéias corporativas tiveram grande aceitação: receberam apoio da Encíclica Papal Quadragésimo Anno, de 1931, influenciaram decisivamente a doutrina do partido nazista alemão e de inúmeros outros movimentos fascistas em diversos países. No Brasil, foi notória a sua influência na década de 30, durante a ditadura de Getúlio Vargas.
STEWART JR., DONALD, O Que é Liberalismo: 24
As democracias foram totalmente subvertidas, e se prostraram às vontades dos inescrupulosos ditadores:

Na euforia do racionalismo, se desvinculou perigosamente o Direito Positivo de quaisquer outros compromissos com valores fixos e imutáveis, passando tudo a depender das maiorias eventuais, comprovadamente volúveis e supostamente representativas da fonte de sabedoria, que é o povo. BOAVENTURA, Jorge, O Estado de São Paulo, 29/4/1996: A2
O Estado Liberal
Nas agruras do dia-a-dia, não atentamos, mas a trajetória inglesa informa: o método democrático, o Estado de Direito não pode bloquear a liberdade de cada um escolher o próprio destino. Lord Acton explica o significado:
“Com a palavra liberdade, refiro-me à segurança de que todo o homem terá proteção para fazer o que acredita ser sua obrigação, contra a influência da autoridade e das maiorias, costumes e opiniões."
Tanto a liberdade como os trilhos democráticos não podem ser circunscritos a ideais financeiros, como sói acontecer. Números sociais são quantificáveis, mas não objetiváveis. São conseqüências. Aliás, pelo menos na cabeceira, a matéria sequer vinha ao caso:
Ao contrário de uma Espanha que se unificava em torno do catolicismo, expulsando judeus e muçulmanos e perseguindo as vozes discordantes, a Inglaterra conheceu a relatividade religiosa. A convivência com a desordem, outra característica da modernidade, marcou a vida religiosa inglesa. (Wells, t.III: 20)
Foucault (1997:90) recupera:

O liberalismo deve ser analisado, então, como princípio e método de racionalização do princípio de governo - racionalização que obedece, e aí está sua especificidade, à regra interna de economia máxima. Enquanto toda a racionalização do exercício de governo visa a maximizar seus efeitos, diminuindo, o máximo possível, o custo (entendido no sentido político não menos que no econômico) a racionalização liberal parte do postulado de que o governo (trata-se, nesse caso, não da instituição 'governo', mas da atividade que consiste em dirigir a conduta dos homens em quadros e com instrumentos estatais) não poderia ser seu próprio fim. Não tem em si próprio sua razão de ser e sua maximilização, mesmo nas melhores condições possíveis, não tem de ser seu princípio regulador. Nisso o liberalismo rompe com essa 'razão de Estado', que desde o final do século XVI tinha buscado no exercício e no reforço do Estado a finalidade capaz de justificar uma governabilidade crescente e de regular seu desenvolvimento.
O estado natural
Ao cruzeiro, a reafirmação de Adam Smith (1999: 204)evita a bestialidade:

O curso natural das coisas não pode ser inteiramente dominado pelos esforços impotentes do homem, pois a corrente é demasiada rápida e forte para que a interrompa; e posto as regras que a orientam aparentem ter sido estabelecidas para os melhores e mais sábios propósitos, às vezes produzem efeitos que escandalizam todos os nossos sentimentos naturais.
Em qualquer tempo ou rincão, civilizados sobrevivem mercê de basilares e naturais direitos. Nascer, respirar, comer, falar, projetar, opinar, compor, comprar, passear, vender, sonhar, fazer, beber, amar, crescer, dormir, escolher, caminhar, correr, banhar-se, alegrar-se, casar, trabalhar, sonhar, raciocinar, criar, adotar a religião, o clube, o partido, etc., escolher a cor da sua roupa, o que ouvir ou ver, qual membro mexer - fundamentos jurídico-sociais de usufruto exclusivamente individual - ensejam a vida, a liberdade e a prosperidade de cada um, no interesse de todos:

Os interesses dos indivíduos se compensam entre si e o produto final coincide com o interesse da comunidade. Em outras palavras, a consciência do indivíduo é árbitro e condutor, tanto do interesse público quanto do privado, que não é obra do acaso.
Tocqueville, A.,1997:18
Locke enalteceu a gama como principal fonte, para não dizer a única científica, confiável e justa, da própria Ciência Jurídica. Foi claro:
“Se eliminas a lei da natureza, eliminas, ao mesmo tempo, entre os homens, toda a cidadania, todo o poder, a ordem e a sociedade.” (Essays on the law of nature)
Quase junto, Baruch Spinoza antecipara a observação:

“Ninguém transfere a outros o próprio direito natural de modo tão definitivo que depois não volte a ser mais consultado; mas o defere à parte maior da inteira sociedade, da qual ele é um membro.” (Cit. Bobbio,1987: 145)
Impossível ser mais social:

"A doutrina do direito natural apresenta, portanto, o modelo teórico de um regime ideal das relações humanas, que permite julgar as situações de fato e contribuir para sua acomodação." (Gusdorf: 163)
Não é, todavia, obra de nenhum gênio divino, nem social, muito menos político, ou econômico:

O Direito Natural não possui a função de ocultar interesses materiais ou propósitos políticos. Não é ideológico. As diretrizes que traça para o Direito Positivo não decorrem de convenções humanas, nem são seus princípios estabelecidos à luz de acontecimentos históricos.
(Nader: 171)
Para Bobbio, "o Direito Natural é a doutrina segundo a qual existem leis não postas pela vontade humana - que por isso mesmo precedem a formação de todo o grupo social e são reconhecíveis através de pesquisa racional - das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou jurídica, direitos e deveres que são, pelo próprio fato de serem derivados de uma lei natural, direitos e deveres naturais."
O brilhante jurista Giorgio Del Vecchio reforça o espírito do método. Ao afamado italiano, o Direito Natural faz-se no grande referencial do justo, o qual se assenta ‘na própria constituição das coisas e nunca no mero capricho do legislador momentâneo’."
Com semelhante raciocínio, Herbert L.A. Hart (O conceito de Direito, p.201)* sugere que foi a natureza a responsável pela igualdade aproximada dos homens. Conseqüentemente, é da natureza que brota o Direito, algo imanente e compulsório,consistindo numa verdadeira autonomia face à moral, e sua superioridade face ao direito estipulado, o suposto científico.

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Da individualidade à sociedade

Bobbio viveu para constatar:

Na era dos direitos passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção orgânica tradicional .(1)
A teoria individualista leva à solidariedade:

A idéia de direitos é meramente a idéia da virtude inserida no mundo político. Na base de tudo está a convicção, trazida pela longa experiência, de que os que possuem direitos são compelidos a respeitá-los, pois, no caso contrário, eles próprios serão os principais prejudicados. Dentro do contexto de democracia inglêsa, a liberdade política não estimula um individualismo arrojado. Ao contrário, ela reforça a coesão e a unidade da sociedade, pois somente os homens livres podem cooperar verdadeiramente. Tocqueville, American democracy
O pesquisador Professor Adelson Antonio Pinheiro reconhece:
"Se uma legislação conseguisse atingir aquilo proposto pelo direito natural, esta tenderia à perfeição. Esta é a busca incessante do direito." http://www.direitonet.com.br/artigos/x/97/88/978/
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Um clarão na História
Desde os tempos de John Lackland Plantaget, o famoso João-Sem-Terra (1215), as naturais reivindicações inglêsas eram recebidas pelo reino. Cabia-lhe acatá-las. A tradição se renovou:

Ao mesmo tempo em que a Inglaterra dos Tudor presenciava uma significativa centralização de poderes, as tendências locais e particularistas conservavam a vitalidade. Além disso, um judiciário com uma tradição de direito consuetudinário independente e uma advocacia com marcante ética vocacional guiavam os crescentes poderes políticos dos órgãos. (Almond e Powell Jr: 154)
As instituições inglêsas escolhiam itinerários diversos da hierarquia verticalizada, tão comum aos povos latinos. O consciente elo Estado/cidadão, datado em tão longínquo século, contrasta, chocantemente, com o desrespeito e a leviandade dos executivos oficiais brasileiros. Nosso atraso é de apenas oitocentos anos! O exemplo prático? Uma atitude que ainda nos cabe copiar, mormente pela nossa (des) organização monetária:

O primeiro órgão administrativo a desligar-se da corte do rei e adquirir uma posição separada própria foi a Chancelaria do Erário, o departamento estatal encarregado das rendas públicas, adquirida durante os reinados de Henrique I e Henrique II, no século XII.
De igual calibre é imprudente ignorar o postulado:
"Abandonar a idéia do Direito Natural é manifestação mais grave ainda, porque tal renúncia corresponde à tese de que não há, para o Estado, qualquer limite na sua tarefa de legislar, sendo-lhe franqueadas todas as formas de totalitarismo." (Nader: 171)
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No Brasil
Brasileiro é bonzinho - não se incomoda com imposturas, sejam militares ou econômicas, explícitas ou subretíceas. Vai no embalo, no vagão. Na melhor das hipóteses ele é dominado pelo conceito positivista do direito, segundo o qual, a humanidade, ou a sociedade, ou de fato a maioria dos cidadãos elegem representantes para formular leis contra si. Neste caso, a massa, portanto ninguém, se converte na fonte última da lei civil. Infelizmente, não atingimos sequer esse mísero patamar. Por aqui vige o conceito imperial. Para exercer o poder, não é mister consultar, nem pensar, muito menos deliberar, sequer se responsabilizar. Basta mandar:

Uma avaliação de hoje começa pela constatação de que regredimos no aspecto político da democracia, a cidadania não se aprofundou e o sistema passou a ser incapaz de impedir violações maciças dos direitos humanos. Somam-se o incrível baixo nível do sistema penitenciário, a violência, o aumento da criminalidade, a corrupção que atinge os setores público e privado, a coação, o abuso do poder econômico. No eixo desse processo está o instituto das medidas provisórias. Qual país do mundo em que se pode legislar sobre direito financeiro, eleitoral, penal, civil, processual, administrativo pela vontade de um só homem?" (Sarney, José, Senador, ex-Presidente do Brasil. Folha de São Paulo, 10/5/ 2002)
(Sempre convém lembrar que sob sua batuta é que foi aprovada a tal Constituição Cidadã, na verdade vilã, por ensejar que o Executivo tome as funções legislativas, através dos decretos alcunhados provisórios, e até judiciárias, mercê da escolha de seus membros, além das que lhes são peculiares.)
Não é tempo de usufruirmos daquele novo tempo, traçado há séculos atrás? Antônio Cícero se mostra de pleno acordo:

O que nos falta é radicalizar a ideologia iluminista, que os Estados Unidos deixaram para trás. A concepção moderna de mundo não admite que haja um universal positivo. É por isso que a concepção moderna de mundo é não-religiosa.Hoje temos cada vez mais medo da diversidade. O Estado brasileiro nos dá freqüentes provas disso. Montesquieu já dizia que as leis ruins prejudicam as boas.Mas no Brasil de hoje, tudo tem de ser regulamentado. Isso é um perigo. Temos de ter um mínimo de lei absoluta para ter um máximo de experimentação. Mas o que se dá no Brasil é o contrário, temos o máximo de lei e um espaço cada vez menor para experimentar.
Aprecie:

O socialismo de J. Locke

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1-O jusnaturalismo constitutiu o esteio das relações entre os cidadãos do Reino Unido. Na definição do TriPulante F. August von Hayek (1899-1992) natural é “tudo o que nasce espontaneamente e não é deliberadamente planejado por uma mente.” (Os erros do socialismo: a arrogância fatal: 191)
Artificial é seu contrário. Depende da ação do homem.
A distinção de Glück, datada de 1888, permanece de pé:
“O direito se distingue, segundo o modo pelo qual advém à nossa consciência, em natural e positivo. Chama-se direito natural o conjunto de todas as leis, que por meio da razão fizeram-se conhecer tanto pela natureza, quanto por aquelas coisas que a natureza humana requer como condições e meios de consecução dos próprios objetivos... Chama-se direito positivo, ao contrário, o conjunto daquelas leis que se fundam apenas na vontade declarada de um legislador e que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas”. (cit. Bobbio, 1995: 21)
John Locke o enalteceu como principal fonte, para não dizer a única científica, confiável e justa da própria Ciência Jurídica. “O contratualismo de Locke representa a apoteose do direito natural no sentimento individualista moderno.” (Merquior: 45)
“Se eliminas a lei da natureza, eliminas, ao mesmo tempo, entre os homens, toda a cidadania, todo o poder, a ordem e a sociedade”. (Locke, Essays on the law of nature)

Também o grande Kelsen acabou que o fundamento ético necessário é o Direito Natural
“O abandono da crença no direito natural, de um direito superior ao positivo, com valor objetivo e validade metahistórica, teria sido uma das causas do surgimento dos Estados totalitários, cujos principio ético consiste na máxima bárbara Gesetz ist Gesetz: a lei deve ser obedecida em si mesma, pelo fato de que é uma lei, independentemente de qualquer consideração sobre o seu valor ético.” (Strauss, Leo, Natural Right and History)

*ISAIA, Cristiano Becker; CARPES, Alessandra Barcelos. O retorno à discussão entre Direito e Moral: a moralidade como legitimadora do Direito. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS.



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