terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Numerocracia

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É necessário medir o que é mensurável e tornar mensurável aquilo que não o é.
Galileu Galilei
Depois de ter percorrido o círculo estreito do seu vão saber, é necessário acabar por onde Descartes começara. Eu penso, logo existo. Eis tudo o que sabemos.
J.J. Rousseau
Que não venha com mais numerocracia. Números são mais manipuláveis que palavras.
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MIGUEL REALE (1998: 161) tem no genebrino “o Descartes da política.”
Rousseau era mesmo coerente com o pensamento do pretensioso patrício:
"Este pensador peculiar - embora freqüentemente considerado irracionalista ou romântico - também se apoiou no pensamento cartesiano e dele dependeu fundamentalmente." (Hayek, 1995: 74)
Sartre (1978: 114) pode identificar o liame:
É assim que o cartesianismo, no século, XVIII, aparece sob dois aspectos indissolúveis e complementares: de um lado, como Idéia da Razão, como método analítico, inspira Holbach, Helvetius, Diderot, o próprio Rousseau; é ele que encontramos na fonte dos panfletos anti-religiosos assim como na origem do materialismo mecanicista.
Russell (2001: 283) compreendeu:
"Afinal, o rígido determinismo da explicação cartesiana do mundo material, tanto físico como biológico, contribuiu muito para promover o materialismo dos séculos XVIII e XIX, em especial quando associado à física de Newton."
Para o sabujo Engels (p. 19), “o materialismo transferiu-se da Inglaterra para a França onde se encontrou com uma segunda escola materialista de filósofos, que havia surgido do cartesianismo e com a qual se refundiu.”
Rousseau oferece à mostra o tamanho da mordida que sofreu da mosca da ciência exata, da física, do número, quando dispõe sobre a fôrça necessária para mover as coisas e quando reduz a diversidade, homogeneidade e universalidade de cada ente, de cada pessoa, a simples objeto manipulável. Para Hayek, (1995: 74) “a substituição por Rousseau, Hegel e seus seguidores da palavra “opinião” pelo termo “vontade” foi provavelmente a inovação terminológica mais fatídica na história do pensamento político.
Macksoud (p. 39) analisa o truque:
"Esta substituição teve fundamento no cartesianismo de Rousseau e foi o produto de um racionalismo construtivista que imaginava que todas as leis foram inventadas como expressões de vontade para um dado fim."
Alguém espreitava a chance do colossal mal-entendido:
"Para Rousseau, como para outros edificadores da Cidade Ideal do Racionalismo desarvorado, o legislador é responsável por tudo. É um deus ex-machina. Algo que será como Napoleão, que pretendeu representar o novo César e o novo Augusto do cesarismo imperial francês. (Penna, 1997: 366/67)
O novo Imperador mantinha seu povo não por sentir-se responsável, muito menos por caridoso, mas para usufruir de fortes e destemidos lutadores:
"Afinal, um povo sadio trabalha melhor, produz mais riquezas para o Estado e sua Corte, além de que se reproduz mais, aumentando a população disponível para o alistamento militar. Povo bem cuidado, mais carne para canhão." (Mascarenhas: 90 )
A trama, a ardilosa dubiedade de Rousseau bitola o homem àquela mera questão aritmética: “Se o Estado for composto de dez mil cidadãos, cada um deles terá a décima milésima parte da autoridade soberana.” Ou seja: quanto mais gente, menos poder para cada um! Pode isto ser chamado de “método democrático”? Não seria um método de repartição de despojos? Disso os gregos já tinham ciência – Aristóteles alertava para fatal degeneração da República quando pendesse à democracia platônica, cabeça-de-ponte pela qual muitos assaltam poucos. A trapaça, contudo, vara o EspaçoTempo:
“O homem no estado natural de Rousseau se tornou, no século XIX, o ‘povo’ de Mazzini e o ‘proletariado’ de Marx. “ (Rosselli: 118)
Antecipando-se no rumo invertido, a tempo de insuflar a primeira sangrenta Revolução e seus terríveis desdobramentos, em 1762 Rousseau publicava o “seu” “Contrato Social”, "uma ditadura à moda romana", na observação de Furet, (2001: 81) pelo qual o cidadão perdia sua liberdade natural em troca da pseudo-liberdade apregoada, chamada civil para diferenciar-se da religiosa, copiando neste particular a propositura de John Locke, mas para desvirtuá-la, não descuidando dos adereços mistificadores, nítida expressão reacionária à espontaneidade individual:
Assim é que em Locke, antes do contrato, os indivíduos em estado de natureza são completos, dotados de todas as suas características civilizadas, quer dizer, da razão, do julgamento moral, do direito de propriedade e da liberdade. Vê-se logo o contraste com Jean-Jacques Rousseau e com a tradição francesa, para qual é o Estado que cria, a partir do indivíduo natural, ainda não efetivamente humano, um ser novo a quem deverá ensinar tudo.
Bonavides: 217
Enfeitando o manto filosófico roussoniano fulgura o bordado da funesta república platônica de Hobbes; se Rousseau não o tingisse com as cores da soberania popular, poder-se-ia chamá-lo “plagiador”, até por repetir a cátedra de colocar o ser humano como carente de norma de ação mais elevada além de impulsos, apetites e más inclinações. O homem não poderia ser possuidor pensamento mais importante do que fantasias subjetivas, alheias à formação social. Considerado isoladamente, o indivíduo se apresenta nocivo, um animal governado por instintos bruscos; para ser corretamente entendido, ele deve considerar-se só como membro da sociedade e por ela subordinado. O ordenamento requer a esterilização de cada um em particular em massa. Quando alguém deseje isoladamente algo diverso da ordem imposta, é entendido como um capricho proveniente de alguém que “não percebe corretamente seu próprio bem, nem seus desejos naturais.”
Prelot (vol II, p. 83), porém, discorda, e designa:
"Para sua mais completa felicidade e também para sua desgraça, os homens possuem duas faculdades: a liberdade de aquiescerem ou de resistirem e a possibilidade de
se aperfeiçoarem."

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