segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Uma corte com som e luz

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AS LUZES DE Shaftesbury, Spinoza, Quesnay, Smith, e a Carta sobre a tolerância, enviada por Locke, chegaram às terras de J. S. Bach (1685-1750), Handel (1685-1759), J. Haydn (1732-1809), Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Ludwig von Beethoven (1770-1827) levadas por François Marie Arouet* , “o maior gênio de todos os séculos”, na palavra do anfitrião Frederico II.
O Repórter da Vida Inglêsa (Voltaire, p. IX) lá permanecera desterrado, por dois anos, diante do “desrespeito às autoridades, e por suas ações serem contrárias a religião e aos bons costumes.” (1)
Trouxe valiosas informações, ao gáudio de Kant, Goethe, Lessing e Herder:
"A Nação inglêsa é a única da terra que chegou a regulamentar o poder dos reis resistindo-lhes e que de esforço em esforço, chegou, enfim, a estabelecer um governo sábio, onde o príncipe, todo-poderoso para fazer o bem, tem as mãos atadas para fazer o mal; onde os senhores são grandes sem insolência e sem vassalos, e onde o povo participa do governo sem confusão. (Voltaire, cit. Chevallier, tomo II: 67)
KANT
Immanuel Kant (1724-1802) (cit. Hobsbawn, E.: 24), de Koenigsberg, "cujos hábitos, conforme se comentava, eram tão regrados que permitiam aos cidadãos daquela cidade acertassem seus relógios", (Kant, Immanuel., cit. Capra, F., 1996: 36) compôs Crítica da razão pura (1781) e Crítica da razão prática (1790) pelo desiderato teocrático de Spinoza. Até hoje pesquisadores se debruçam por suas tão profundas quanto complexas disposições.
A menção de que existiria algo além do mundo das aparências - confrontava a religião dominante e a física determinista newtoniana. Em que pese muito discutido, e para mim discutível, o certo é que Kant superava a dicotomia, a exigência materialista-mecanicista, pois “jazia um domínio incognoscível que ele chamava as coisas em si.”
Fosse Deus, essência, ou apenas idéia, é “imperativo categórico” agir de acordo com a premissa fundamental. O princípio ético oferecido pelo germânico, diverso do platônico, malgrado a posterior discórdia de Nietzsche, estende uma ponte ao novo paradigma quando antecipa o holograma que compõe o caos, a auto-organização, e até a ecologia:
“Devemos pensar em cada parte como como um órgão que produz as outras partes devido a isto o organismo será tanto um ser organizado como auto-organizador.”
O panteísmo do predecessor implicava neste comprometimento holístico, convergente ao “imperativo categórico”, ausente qualquer maniqueísmo. Kant, mesmo trilhando a flecha da justiça, afastou as concepções platônicas.
Hermann Cohen (cit. Konder: 28) teve em Kant “o verdadeiro e efetivo pioneiro do socialismo alemão” eis que, para efeito universal, o socialismo não deve ser restrito ao materialismo, ou a cifras.
Naqueles instantes, todavia, a obra apenas sensibilizava diminuta parcela, ainda por cima indesejada. Identificando o despotismo como “a vontade pública manipulada pelo regente como sua vontade privada” (Kant: 9), e pela ojeriza ao nacionalismo, refrão de A paz perpétua, onde propugna pela união européia - os Estados Unidos da Europa - Kant se viu envolto como prejudicial e perigoso aos interesses dos aspirantes do poder absoluto, até por adivinhar o que preparava o futuro não muito distante. Kant protestava pelo fim dos exércitos; por constituições republicanas ao invés das imperiais monarquias; pela urgência à produção e respeito a um direito das gentes, fundado sobre um federalismo de Estados livres; pelas funções pacíficas e cooperativas subjacentes à prática de livre comércio; pela inutilidade e/ou a prescindibilidade do espaço geográfico para formação de Estado; e pelo Direito Cosmopolita, daí decorrente, na interdependência dos povos da Terra. O filósofo tratou da globalização com duzentos anos de antecedência, mas sabemos que ele e o rouxinol foram ouvidos com a mesma atenção. Bismarck e Hitler falariam mais alto e mais grosso. Ao Rei-Coração (Frederico II, O Grande, cit. Challita: 156) nada seria novidade: “A trapaça, a má-fé e a duplicidade são, infelizmente, o caráter predominante da maioria dos homens que governam as nações.”
A lembrança de Kant ressurgiu após a I Grande Guerra Mundial, mas por pouco tempo. Foi preciso se precipitar a II para nascer a ONU, projeto do notável pensador. O € une os estados da Europa, e desse modo completa a aspiração.
LESSING
G. Lessing (McNall, Lerner, e Standish: 463) respeitava singularidades. Diversidade não era “blasfêmia”, como rotulava a monopolista Igreja: “A essência de sua filosofia é a tolerância, fundamentada na convicção de que nenhuma religião tem o monopólio da verdade.”
Lessing (cit. Chevallier, J. J., Tomo II: 219) se aproxima da ciência de ponta perfilando-se a Kant, ainda que utilizando a linguagem mecanicista em voga:
"Não é verdade, a linha reta nem sempre é o caminho mais curto e por que as coisas não teriam sido organizadas de tal modo que a grande roda que lentamente conduz o gênero humano para seu ponto de perfeição não possa ser acionada pela rotação de outras rodas mais rápidas e menores, cada uma delas contribuindo com sua parte para o conjunto?"
O conceito de Einstein (1994:. 23) coroa Lessing e, fundamentalmente, John Locke:
"Há uma outra decorrência dessa concepção: não só devemos tolerar as diferenças entre indivíduos e entre grupos, como devemos de fato aceitá-las com satisfação e considerá-las enriquecedoras de nossa existência. Essa é a essência de toda tolerância verdadeira; sem tolerância neste sentido mais amplo, não se pode falar de verdadeira moralidade."
Para conduzir o gado, entretanto, ciência é montaria; e moral, futilidade:
"Racionalização significa a transformação do mundo dominante em nome de um plano racional: a organização construída sobre um método e uma seleção racionais, que é totalmente onipotente (...) Sabemos por experiência (...) que o totalitário não é propício à tolerância. (Gallas, Z StW, 1963, cit. Andrade: 27)
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*Verdadeiro nome de Voltaire (1694-1778).

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