O privilegiado passageiro justificou o belo tour:
Tanto quanto possível apreciar-me a mim próprio [o que será que ele queria dizer com isto?] trabalhei ao máximo ao longo da viagem pelo mero prazer de investigar e pelo meu forte desejo de juntar alguns fatos das ciências naturais. Mas também tinha a ambição de ocupar um lugar suficientemente importante entre os homens da ciência - se essa ambição era maior ou menor do que a da maioria dos meus colegas de trabalho, não sei dizer. (2)
Era melhor não ter dito nada. Na ausência da modéstia, ardia a vocação turística:
“No princípio de minha etapa escolar, um colega tinha um exemplar de Wonders of the World (Maravilhas do Mundo), que o lia com freqüência... creio que este livro me inspirou o desejo de viajar por países remotos...” (3)
O comodoro, designado para tarefa essencialmente cartográfica, (Terra do Fogo, Chile, Ilhas Galápagos, etc.), antipatizava claramente com o estranho viandante, tipo “pau-de-arara” a recolher tudo quanto é quinquilharia, “enchendo o saco”, o aposento e até a cabine de comando com folhas, insetos, vidros e caixas de todos os tamanhos: “Nunca voltei dessas expedições de mãos vazias.” (4)
Em cinco anos de circunavegações não foram poucas as lembrancinhas recolhidas. O luxuoso iate se transformou em arca-de-noé, mas Noé ainda resmungava: “Fitz-Roy tinha muito mau gênio. Geralmente era pior pela manhã cedo.”
Ao final do extenso passeio, o exausto e enfastiado comodoro lhe desejou “boa sorte”, augurando nunca mais lhe rever, nesta ou noutra belonave.
A luxuosa embarcação britânica fora batizada com o sugestivo nome de Beagle. Naturalmente jamais supôs a Marinha Real que o caçador de lebres iria levar tão venenosa semente, forte para germinar os mais temíveis inimigos de Londres - o marxismo e o nazi-fascismo .
O cruzeiro teve escala no Brasil, em 1832. O ilustre, porém, inconveniente passageiro ficou mundialmente conhecido por publicar, em 1859, portanto mais de um quarto de século posterior, o que nele se passou, o que pode observar, algumas coisas que a partir daí projetou e, certamente, outras que inventou, no fito de causar a tão sonhada admiração. Vendeu toda a edição no dia. Em seguida, a estória foi traduzida para trinta línguas.
O nome desse autor-ator quase ninguém desconhece, porém mister designá-lo: Darwin. Por completo, Charles Robert Darwin (1809-1882), pretensamente inventor de Sobre a origem das espécies graças à seleção natural, ou, a preservação de raças favorecidas na luta pela vida.
Seu avô, Erasmus Darwin, já havia escrito: “A causa final da confrontação entre machos parece ser esta: o animal mais forte e mais ativo deve propagar a espécie, que desta maneira é melhorada.” (5)
O expoente Jean-Baptiste de Monet, cavaleiro de Lamarck (1744-1829) também encantara Darwin: “De todos os pensadores que o haviam precedido no estudo da origem das espécies, o que mais interessava era Lamarck. Foi na obra de Lyell sobre geologia que Darwin encontrou a doutrina de Lamarck, minuciosamente exposta.” (6)
O turista tomou, de cara, o bonde errado. Erwin Shrödinger (1887-1961) um dos fundadores da quântica, foi categórico: “Infelizmente, o lamarckismo é insustentável. A suposição fundamental sobre a qual se apóia, a saber, que as propriedades adquiridas podem ser herdadas está errada. Até onde sabemos elas não podem.” (7)
Há quem afirme que Adolphe Quètelet, formulador da estatística social, “serviu-lhe de modelo”. (8) Pela confessa cronologia, pelas comunicações e fatos encadeados, entretanto, percebe-se que a receita apresentada por Darwin é plágio descarado de Wallace, na melhor das hipóteses; na pior, simplesmente trocou o nome da capa:
“Meu trabalho está agora (1859) [portanto décadas depois da chegada do tour !] quase terminado; mas, como serão necessários ainda alguns anos para completá-lo [?!] e como minha saúde não é muito boa, convenceram-me a publicar este resumo. Fui induzido a isto especialmente porque o Sr. Wallace, que atualmente estuda a história do arquipélago malaio, chegou exatamente as mesmas conclusões que eu sobre a origem das espécies. Em 1858 ele me enviou um ensaio sobre o assunto, pedindo-me que o entregasse a Sir Charles Lyell, o qual o enviou à Sociedade Linneana. Sir C. Liell julgou conveniente publicar, juntamente com o excelente ensaio do Sr. Wallace, alguns breves trechos do meu manuscrito. Este Resumo, que publico agora, é naturalmente imperfeito. Não posso dar referências e citar autoridades para reforço de minhas afirmações.” (8)
Várias questões afloram deste depoimento pessoal: por que demorou as décadas para apresentar a teoria? O que o levou a discriminar provas forçadas, e parcos relatórios, desprovidos de dados mais consistentes? Depois do “resumo”, porque não apresentou toda a pesquisa? Porque não anexou bibliografia, nem na hora, nem depois, exceção de um ou outro? Porque não “podia dar referências, nem citar autoridades”? Que má saúde esperaria ainda outro quarto de século para fulminá-lo? Porque preferia se isolar em refúgios, rodeado apenas de familiares? Uma resposta explica todas: o trabalho foi furtado de quem lhe confiara guarda. Nesta data a má saúde não atrapalhou:
Em junho de 1858, contudo, aconteceu um fato que produziu em Darwin um efeito muito mais vivo que o conselho dos seus amigos íntimos. Nessa memorável manhã recebeu ele uma carta, vinda do outro lado do mundo. Era a carta mais importante que lhe foi escrita em toda a sua vida. Trazia o carimbo de Ternate, uma ilha do arquipélago Malaio. No volumoso sobrescrito vinha o nome do retetente: Alfred Russell Wallace. Darwin abriu-o. Continha uma carta e um manuscrito. Antes de folhear o manuscrito, Darwin apanhou a carta. Pedia-se-lhe nela que lesse o esboço incluso e, se lhe parecesse bem, que o passasse a outros naturalistas – com vistas na publicação próxima. Darwin lembrou-se da última memória escrita, três anos atrás, por Wallace, e para a qual Lyell lhe tinha chamado a atenção... (9)
Wallace acabou não recebendo o beneplácido oficial, quiçá porque o Iate de sua Magestade não lhe tivesse hospedado. O inocente acabou eclipsado pela esperteza de Darwin, com a ajuda de Sir Lyell. Mutatis mutandis, o professor Ernest B. Trattner, em seu estudo sobre a Teoria da Relatividade, foi categórico: “Meia dúzia de símios, postos a martelar numa máquina de escrever durante milhões de anos, não seriam capazes de reproduzir uma só frase dos livros de Einstein”. (10) ____________
Escalas do estupendo cruzeiro (que inveja!):
Notas
1. Darwin, C., Autobiografia, p. 7.
2. Idem, ibidem.
3. Idem, p. 12.
4. Darwin, C., cit. Carvalho, E.M.M. p. 108.
5. Darwin, Erasmus, cit. Thuillier, P., p. 198.
6. Darwin, C., cit. Carvalho, p. 33.
7. Schrödinger, E., p. 121.
8. Quètelet, A, cit. Thuillier, P., p. 220.
9. Lyell, Charles; Wallace, Sir Alfred; cits. Darwin, C., in Carvalho, p. 14/15.
10. Trattner, E. B., Einstein, um estudo: a teoria da relatividade, in Einstein por ele mesmo, p. 18.
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