terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A "Reforma Agrária" do Poder

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POR DÉCADAS o poder executivo no Brasil permaneceu circunscrito aos militares. No início, carreava apoio e simpatia popular, mas a classe politica, relegada ao parlamento, sonhava atravessar a rua. Para cruzá-la, nada melhor do que o ombro do povo. Diante do apelo, foi fácil avançar. Bastava a carona no dorso, até a seu bolso.
A fim de motivar a massa, aconteceram estrondosas reuniões, em praças públicas. O coro passou ritmado por maestros advindos de bizarros rincões. Não faltaram shows musicais e até declamações poéticas, tudo para tornar emocionante a epopéia. Nos intervalos, lá vinham inflamados oradores, cada qual exibindo suas aptidões. Os palcos eram repletos. Pareciam encenar uma peça Hair. Variadas fantasias e slogans prometiam um novo tempo. Estávamos prestes a tê-lo.
Diante da tempestade pintada, o povo esperava pelo Sol, não uma tempestade ainda mais dilacerante. Nada poderia ser pior do que a ditadura, presumia aquela gente que se apinhava em ouvir as missas. Havia cânticos para a turba acompanhar, e a epístola já se fazia por demais conhecida. Não tinha erro; muito menos o que temer. Adiante estava o pasto-verde, indicavam potentes projetores
Maestros de várias orquestras repartiam a condução dos trabalhos. O Hino Nacional era cantado em marcha-rancho, rock, valsa, e sertanejo. Samba-do-criolo-doido, mas a gente admirava os magníficos concertos.
Demovido o do coturno, restaria o vermelho em profusão, mas também outras cores. Tudo crescia. Os membros se fortificavam mutuamente. Mais povo, mais maestros, maior ampitude.
Ao repartir o bolo, sentaram-se na mesa os vencedores. No ágape, lado a lado se deliciavam comunistas ou não, caricatos e oportunistas. O prato era imenso. Imagine o tamanho e o sabor de um alimento constituído pela metade da renda da Nação inteira. Ali estava, pois, à mercê dos famintos, uma cesta de natal capaz de sustentar ad eternum medíocres maestros.
Havia, contudo, uma tradição política a ser superada: aquela que dizia que apenas o partido que vencesse a eleição estaria apto para governar. E os maestros das outras orquestras, o que fariam? Qual recompensa teriam, depois de tanto esforço conjunto, se na hora da festa seriam todos barrados, exceto o campeão? Como contentar o partner da marmelada? Onde buscar solução? O melhor exemplo vinha de um país de vanguarda:

A Constituição Francesa de 1791 proclamou uma série de direitos, ao passo ‘que nunca houve um período registrado nos anais da humanidade em que cada um desses direitos tivesse sido tão pouco assegurado - pode-se quase dizer completamente inexistente - como no ápice da Revolução Francesa.’
Leoni: 85
Desde então aquele sofisticado país só lapidou a perfídia. Tinha e tem muito a colaborar. Suas fórmulas não são como as inglesas, ou as americanas, invariáveis, estanques. Para o quê? A espinha é feita para dobrar; ademais, a moda muda, principalmente por lá:

O equilíbrio institucional na França, desde 1789, é ave rara! O amor ao direito escrito que nos entrou no sangue com a transfusão romana e nossa propensão a regulamentar por decretos não durou dois anos. A mais perfeita foi a que durou só um dia, em 1793. Foi tão perfeita que se pensa, desde então em reeditá-la.
Faça a conta dos regimes que assuntos humanos, nos levam a codificar com um gesto nossas paixões do momento. Compensamos nossa inconstância através de visões eternas logo gravadas no mármore. Nossas revoluções passam primeiro pelo tabelião. Conseqüência: quinze Constituições em cento e oitenta se sucederam na França depois da Convenção: Diretório, Consulado, Primeiro Império, Restauração, Cem Dias, Restauração, Monarquia de Julho, II República, Segundo Império, III República*, Vichy, de Gaulle, IV República, V República, ufa!
François MItterrand, exPresidente da França
Pois foi dessa sofisticada França que o Brasil, mais uma vez, foi buscar os apanágios às quinquilharias.
Na Terra do Galo se diz que o governo democrático, aquilatado pela maioria, necessita de sua expressão numérica, ou seja, pelo menos, 51% de aprovação. De que modo qualquer partido atinge tamanha cifra?
As eleições se assemelham à corrida de automóveis. A largada é dada com seis meses de antecedência. No percurso, rádios vão anunciando fictícias colocações. Nesse tempo, os favoritos vão passando o chapéu. Todos ganham, mas quem promete podium leva mais patrocínio. Contudo, foi no futebol que os artistas franceses, e ultimamente os próprios brasileiros encontraram inspiração. Mais especificamente, na formulação de seus campeonatos: turno, e returno. No primeiro classificam-se dois. O resto fica na torcida, via-de-regra do lado de quem se mostra mais iminente.
Donde chegam maestros e orquestras não vem o caso. Sejam índios ou caipiras, da Bobonne ou São Letardo, da capital ou do nordeste, o que soma não subtrai. O importante, além da participação popular, reduzida à palmas ou vaias, é a capacidade de aglutinação.
Tem comida para todos os pastores, de qualquer igreja, desde que cada um apresente seu séquito, seu lastro, sua talha. Tem comida para todos os condutores, mas não para a platéia. A esta cabe pagar o ingresso, e fim.
O povo se vê envolto numa armação sem precedentes. Não sabe a maneira de se livrar dos impostores. Diziam-lhe que era para escolher o melhor, e alijar o pior. Tudo sairia ao seu gosto, ao paladar democrático.
A atração maior da democracia se faz na possibilidade do povo afastar o grupelho que não lhe apeteça. Pode nem conhecer quem elege, mas isso é considerado até bom sinal: se nada se sabe sobre o pretendente, por certo o candidato possui uma ficha limpa. Nada há o que ver. Nada aparece. Nada consta. Notícia ruim corre depressa. Ela ausente, presume-se tudo bem. -
No Brasil o povo até notou a má-volta do maestro-mór. Manifestou sua desconformidade nas urnas. De nada adiantou. Já não era o povo quem determinava, mas o vencedor do último turno.
A democracia no Brasil evoluiu: em vez de gastar dinheiro com chumbo, o país importou um jumbo, ao seu Presidente. Ao invés de apenas um partido, ideologicamente identificado, ou, pelo menos, comprometido com programa, o usufruto palaciano é saboreado por todos os políticos, sejam corruptos, comunistas ou fascistas, vermelhos, brancos ou cor-de-rosa. O banquete é farto:
"Depois de 20 anos, com Lula na Presidência, os três arqui-inimigos políticos transformaram-se em aliados em torno da base do governo petista, o que surpreendeu até os governistas." (O Globo, 15/11/2009)
Ão, ão, ão, o Mensalão é nosso pão!
Ão, ão, ão, meu cartão vale um milhão!

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