segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Hegel e a perversão do Direito

Tábula Rasa significa a criança   nascer livre de pecado. Sua vida pode  e deve ser escrita de acordo com seu talhe; . porém, rendida na incidência dos  poderes familiar,  despótico, e civil. O primeiro deriva da natureza mas está limitado no tempo, perdurando apenas enquanto filhos imberbes. “Despótico”, em grego despotes, designa a ação que o senhor exerce sobre os escravos. Sem comentários. Finalmente, o poder civil advém de consentimento Por esta disposição  LOCKE eliminava o vírus greco-platônico impregnado pelos dois milênios. Isso não podia interessar à tradição latina, em especial à corporação romana..
A lei era vista como imutável porque era ancorada na natureza, assim como a vontade da comunidade: os legisladores e juristas tinham meramente que averiguar o que ela era e como aplicá-la a situações concretas. O surgimento, no final do século XVIII, do 'historicismo', que dizia que as instituições humanas estavam sempre evoluindo, mudou essa visão tradicional da lei. Passou a se reconhecer que, como tudo o que se relacionava com o ser humano era resultado da vontade, tudo o que se relacionava com o ser humano era capaz de ser alterado - e aperfeiçoado - por meio da educação e da legislação  PIPES, R.: 269
O êxito da devastação napoleônica trouxe à cena a Coruja de Minerva, dona de completa ojeriza à Grã-Bretanha. A personalidade do intrépido Wilhelm Hegel neste aspecto também se coadunava a Rousseau:
Ele se desagradava da Inglaterra e de tudo o que a ela se referia, sempre a expressar um juízo negativo sobre governos aristocráticos, buscando macular o exemplo histórico mais relevante - a Inglaterra - junto com a República Romana. (1)
Eis a primaz preocupação:“A política lhe aparece como luta pela unidade contra a desunião, não luta pela liberdade contra o despotismo.” (2)
O “direito hegeliano” não percebe a razão humana como libertadora espiritual, mas arsenal de violência e opressão, o lamentável estado de natureza preconizado por Hobbes, e Jeremy Bentham, nas ciências políticas, e por Bacon e Newton nas ciências exatas e naturais, labirinto que ainda encantaria incontáveis expoentes, entre os quais Darwin, Marx e Freud.
Coberto pelo quarteto inglês e pela artilharia francesa de Descartes e Rousseau, Hegel atacou, exitosamente, o direito consuetudinário, taxando o direito natural como estéril e fonte de “enorme confusão”. Não poderia existir outro direito além do positivo, do codificado, do decretado, do ditado à vontade do rei:
No poder legislativo como totalidade, o que primeiro se faz sentir é a ação dos dois outros momentos: do elemento monárquico, pois a ele pertence a decisão suprema; do poder governamental, pois é ele que delibera graças ao conhecimento concreto que possui e à sua visão do conjunto e dos aspectos particulares, com os seus princípios reais bem estabelecidos e a sua informação daquilo de que os poderes públicos carecem. (Hegel, G. W. F., Princípios da Filosofia do Direito)
O que lhe importava era dispor um instrumento de empacotar a massa, com vistas à retaliação a Napoleão:
O conceito positivo que Hegel tem da Constituição está estritamente ligado com a concepção orgânica do Estado, insistentemente contraposta à teoria atomista predominante, típica dos jusnaturalistas. Não existe para Hegel outro direito, no sentido palavra, além do direito positivo.(3)
Tampouco existiria outra filosofia que não fosse a  "espartana":“A filosofia platônica é um exemplo notável de teoria orgânica da sociedade – isto é, da teoria que concebe a sociedade (ou o Estado) como um verdadeiro organismo, à imagem e semelhança do corpo humano.” (4)
"É essa configuração de coletivismo extremado que, desde o século V, é vista na Grécia como um modelo perfeito de Estado, com a coletividade assim rigidamente aparelhada e destinada à defesa do Estado." (5)
Por certo Hegel, do mesmo modo que Aristóteles, ainda está convencido de que a sociedade encontra sua unidade na vida política e na organização do Estado; a filosofia prática dos tempos modernos parte, como antes, do princípio de que os indivíduos pertencem à sociedade como membros a uma coletividade ou as partes do todo - mesmo quando o todo deva ser constituído somente através do vínculo entre suas partes. As sociedades modernas, todavia, tornaram-se tão complexas que não se pode mais aplicar sem problemas ambas as figuras de pensamento - uma sociedade centrada no Estado, outra no indivíduo. A teoria do discurso do direito - e do Estado de Direito - tem de romper a bitola convencional imposta pela filosofia do direito e do estado, ainda que acolha sua temática. (Habermas, Jörgen, especial para O Estado de São Paulo, 6/11/1993 )
O racionalismo jurídico introjetado pelo domínio da “moralidade positiva”, colocava-se acima da disputa entre a tradição e a moral individual. A própria Common Law, por sofrer tantos duros ataques, amargava alguns reveses, especialmente oriundos dos ensaios da plêiade utilitarista, a partir das predições malthusianas. O Direito desceu do pedestal. Ficou à mercê dos “engenheiros sociais”, como temia Roscoe Pound; (9) ou serviu de “instrumento”, na expressão querida de Rudolf von Ihering, em Teoria do Fim.:
Segundo o escritor pós-moderno David Harvey, a crença no 'progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais' engendrou 'uma celebração do poder burocrático corporativo e da racionalidade, sob o disfarce de um retorno à superfície do culto da máquina eficiente qual um mito suficiente para incorporar todas as aspirações humanas'.
Os costumes deveriam ser consagrados nestas "elevadas" manifestações, expressadas pelos códigos, tarefa inescapável do Estado: “Tudo o que o homem é, ele deve ao Estado: só nele o homem tem sua essência; no Estado o universal está nas leis”. (6)
Para os africanos Hegel também tinha bala:“Para ele o negro é ‘o homem no estado bruto’, o ‘homem natural na sua total barbárie e ausência de freios.’” (7)
Hitler e Gobineau só podiam agradecer.
Jusfilósofos germânicos, como Friederich Karl von Savigny (1779-1861)*, Rudolf von Ihering (1818-1892), de certa maneira Nietszche, e depois, Hans Kelsen (1881-1973), logo viriam reafirmar: a lei era justa e racional só pelo fato de ser lei expressa. Kelsen, contudo, depois das barbaridades nazistas se arrependeu, e fulminou o direito e a justiça, em  obras de maior vulto do que sua decantada Teoria Pura do Direito.
De Savigny, compreende-se: objetivava as mordomias palacianas. Como Platão, Maquiavel, Bacon, Hobbes e até o amargurado Rousseau.
As primeiras histórias das instituições foram histórias do direito,
escrita por juristas que com freqüência tiveram um envolvimento
prático direto nos negócios do Estado. BOBBIO, N. 1987: 54
Comparêmo-los com Montesquieu: “Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão o que as leis positivas ordenam ou proíbem é dizer que antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não eram iguais”. (8)
Hegel demonstrou algum conhecimento de Direito Romano através dos filósofos do Direito Natural, que ele próprio rejeitava. Aliás, a Coruja não possuía sequer conhecimento de Corpo Iuris; e detestava advogados, “profissionais que agem exclusivamente em causa própria, de maneira egoísta”.Ouçamos a palavra do “mestre” dos jurisconsultos ora intalados nos recantos planaltinos:
A categoria dos advogados, que, entre outros grupos sociais restantes, é aquela em que mais se pode pensar, está ligada, em sua mentalidade e em seus negócios, aos princípios do Direito Privado e, além disso, ao Direito Positivo, que são antípodas do Direito Público - vale dizer, aquele direito racional, o único que se pensar numa Constituição fundada na razão. (9)
Ao lembrar que existem milhares de advogados, "pessoas jurídicas", economistas, filósofos e sociólogos ainda deslumbrados com o vêsgo olhar dessa coruja, recomendo largarem a profissão, por perniciosa aptidão.
___________
*Savigny foi transformado em ministro logo após o golpe de Frederico Guilherme IV.

Notas
1. Hegel F.W., cit. Bobbio, N., 1992, p. 59.
2. Hegel, F.W., cit. Bobbio, N., 1991, p. 86.
3. Hegel, F.W., cit. idem, p. 84.
4. Hegel, F. W., cit. Bobbio, N., idem, p. 135.
5. "A evolução do sistema, entretanto, revela uma rápida redução numérica da coletividade espartíata que se transforma em simples oligarquia: estima-se que no século III não haviam mais do que por volta de 900 cidadãos espartanos." Paulo Pereira de Castro http://www.fflch.usp.br/dh/heros/pcastro/grecia/1975/04.htm2.

6. Bobbio, N., 1991, p. 86.
7. Idem, p. 152. É bem verdade que Bobbio também declara que nesta "agressão" aos africanos Hegel acompanhava-se de ninguém menos do que Montesquieu: " Não nos podemos convencer de que Deus, um ser de grande sabedoria, pôs uma alma e sobretudo uma boa alma num corpo tão negro. É impossível supormos que se trate de homens porque, se admitíssemos isso, poderíamos começar a crer que nós próprios não somos cristãos."
8. Montesquieu, cit. Nader, P., p.140.
9. Hegel, F.W. cit. Bobbio, N., 1991, p. 150.


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