segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A superversão do Direito

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Compô-se a Idade Média em espectro pluralista. Cada agrupamento adotava a resposta jurídica compatível com as peculiaridades e tradições. O Direito provinha dos gentes, diversificando-se na medida de usos e costumes próprios de cada região. Julgadores não se vinculavam a normas superiores, até por que de difícil comunicação, mas decidiam com base nos fatos circunstanciais, à luz do “direito natural”, por critérios eqüitativos. As sentenças observavam as características da relatividade intrínseca às partes conflitantes, especialmente suas condições. O direito não era mais obra do legislador, como queria Platão; pelo contrário, impunha-se a ele:
A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais. Bobbio, Norberto, Locke e o Direito Natural: 46
Com Maquiavel, & Hobbes, todavia, reiniciar-se-ia a “monopolização da produção jurídica por parte do Estado”, nada mais do que a revanche de Platão.
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A superversão
A doutrina do Estado de Hobbes é a mesma doutrina do Estado totalitário contemporâneo. JOSEPH VIATOUX,
No reino do Leviathan, sujeição à racionalidade requer absolutismo, avesso a teorias liberais. Estas dispersam, não aglutinam. Não se prestam à exércitos.
À hierarquia decantada a receita contava com  Bacon:
Mas, na verdade, a história natural e experimental é tão variada e ampla que confunde e dispersa o intelecto, se não for estatuída e organizada segundo uma ordem adequada. Por isso devem ser preparadas as tábuas e coordenações das instâncias, dispostas de tal modo que o intelecto com elas possa operar. (1)
“O planejamento em escala abrangente é uma impossibilidade epistêmica” (2), mas, pela extensão, pelo somatório de conhecimentos empilhados nas obras, ambiciosos cientistas se punham competentes:
“No Século XIX os positivistas incidiram em tal erro ao reivindicarem a generalização do método experimental que se aplicava eficazmente nas ciências naturais, para estendê-lo também as ciências humanas.” (3)
Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), de seis volumes e depois o Sistema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia, instituindo a Religião da Humanidade (1851-1854) insinuavam apurada adequação ordenativa - produto do “zêlo humanitário” do autor - de tal modo que qualquer intelecto, mesmo subdesenvolvido, poderia “operar”. À segunda Comte reserva, na apresentação, o lema que até hoje “defende” (obscurece) o pavilhão do Brasil - “Ordre et Progrès”. (4)
Para o lamento liberal e sofrimento geral, a maquineísta doutrina veio embalada por esses apelos messiânicos:
"O pensador francês tinha um caráter sombrio, desgraçadamente autocentrado e egocêntrico, mas sua determinação intelectual e zêlo humanitário atraíram muitos discípulos.” (5)
Os discípulos souberam disseminá-lo em seus respectivos campos de atuação, especialmente na pista jurídica:
O surgimento da sociologia como atividade científica exerceu forçosamente grande influência sobre a metodologia do direito. Spencer, Comte, Oppenheimer, Max Weber, direta ou indiretamente influíram no estudo do direito. E o produto destas idéias é o sociologismo jurídico. (6)
O relato de Miguel Reale demonstra como foi a aceitação da tese:
Os positivistas não faziam mais do que dar corpo a profecia de Augusto Comte que, confiante nas conquistas iluminísticas e salvadoras das ciências positivas, anunciara a morte dos “fazedores de leis”, a serem substituídos, na condução dos negócios do Estado, pelos “descobridores de leis” imanentes no desenvolvimento natural das sociedades. (7)
O Direito virou farmácia de manipulação explícita, à mercê dos novos formuladores científicos, “intromissão” justificada pelo também francês A. H. Rolin, a partir das formulações já elencadas de Malthus, Darwin, Spencer e Schäffle:
A Sociologia é o estudo das adaptações do homem à vida em sociedade e o Direito seria uma dessas adaptações, a que tem por fim combater, pela coação, os efeitos e as causas de certos defeitos de adaptação considerados intoleráveis. Assim, nesta obra, provaremos que o Direito é o processo de adaptação, inclusive corretivo dos defeitos de adaptação. (8)
O tradicionalismo positivista requer o organicismo e corporativismo; no plano jurídico a subversão ao sociologismo:“A corrente ideológica que reduz o Direito à categoria de fato social é de índole positivista e sua exacerbação leva ao equívoco do sociologismo.” (9)
O sociologismo manifesta-se pelo legalismo, codificação em larga escala. No plano econômico, também precisa da lei imposta, a idéia utilitarista que serpenteia socialismo e nacionalismo. No plano político, enfim, que o condensa, ruma ao despotismo, porque sufocante de qualquer opinião diversa. Seria parte da função do Estado evitar a difusão de idéias e a expansão anárquica da liberdade intelectual. De novo a razão, agora expressa pela lei, só poderia ser aquela evidente aos olhos, ou à matemática: “O positivismo lógico parte das ciências como um modelo de conhecimento verdadeiro e deixa incerta a função da filosofia, destinada a um esclarecimento supérfluo.” (10)
Gaston Bachelard aborda o primeiro mandamento positivista: “Não postular nada que não possa ser verificado em laboratório”, mas rechaça, categoricamente:
As condições da verificação experimental das hipóteses não envolvem todo o problema da formação das hipóteses; e o positivismo, reduzido a sua própria doutrina, é bastante incapaz de coordenar a priori os pensamentos teóricos. (11)
Ele complementa: “O kantismo e o positivismo não são apenas uma compreensão errônea dos poderes da ciência; eles exercem um constrangimento efetivo sobre o espírito experimental e a pedagogia científica.” (12)
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Má temática
No campo epistemológico, o positivismo é filho da lógica newtoniana. Ele estabelece para a ciência a intolerância teórica das disciplinas exatas da época, excluindo do campo da legitimidade científica tudo aquilo que não poderia ser conservado e verificado de acordo com o princípio platônico de separação radical sujeito-objeto. Ciro Marcondes Filho, www.eca.usp.br
A previsão racionalmente matematizada requeria apenas simplório exame dos mecanismos percebidos como indutores do comportamento geral. A “função positivista” era “descobrir”, de certa maneira “inventar” leis de sucessão conferidas na física e na biologia, analogias históricas, tradução (subjetiva, obviamente) de experiências, fiel ao empirismo da ordem hierárquica arranjada: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia. Augusto Comte ainda identificou esta última com a Psicologia. Descreve-nos Alquié: “As quatro ciências fundamentais que a inspiração positivista, evolucionista e pragmatista do séc. XIX aponta como classificação inabalável são a Físico-Química; a Biologia; a Psicologia e a Sociologia”. (13)
A dança do positivismo com a física aconteceu nos salões da última, ao som das valsas vienenses, entre pares autodenominados “positivistas lógicos”. Desse fechado Círculo de Viena os anfitriões, já na década de 1920, malgrado inúmeras provas, teimavam desconhecer o que havia mo interior do concreto, do palpável: “Não poderia haver significado nas declarações referentes a uma suposta teoria atômica, já que não temos meios de verificar diretamente a existência de átomos e moléculas.” (14)  O célebre Kelsen assegurava a certeza do racionalismo jurídico:
A teoria do ordenamento jurídico encontra a sua mais coerente expressão no pensamento de Kelsen. Por isso podemos considerar este autor como o clímax do movimento juspositivista depois do que começa sua decadência, isto é (sem metáfora) sua crise. (Ray, C., : 161.
Hiroshima e Nagasaki foram sacrificadas à verificação; porém, pelo jeito, ainda não é suficiente. Kelsen capitulou;mas o conto de Comte fascina, reina absoltuto, no cartaz do pavilhão.
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Notas
1. Bacon, Francis, Novo Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza, p. 109.
2. Gray, J., cit. Giddens, A., p. 80.
3. Hugon, Paul, História das Doutrinas Econômicas, p. 128.
4. Comte, Auguste, Système de Politique Positive, ou Traitè de Sociologie, Instituant la Religion de l´Humanité, apresentação.
5. Pinto, Celi Regina Jardim, PHd, in Desafio para a sociedade do século 21; Zero Hora, Porto Alegre, 12/9/1998, p. 5.
6. Bell, Daniel, O Fim da Ideologia, p. 22.
7. Reale, Miguel, p. 81. Ainda sobre o exercício de futurologia positivista, do próprio autor, Filosofia em São Paulo, 1962, p. 69, 91 e seguintes.
8. Rolin, A H., Prolégomènes à la Science du Droit, Bruxelle et Paris, 1911, cit. Miranda, Pontes, p. 201/2.
9. Stewart Jr, Donald, O que é o Liberalismo, p. 44
10. Prelot, Marcel, p. 295.
11. Bachelard, Gaston, O Atomismo Positivista, cit. em Quillet, Pierre, p. 156.
12. Idem, p. 35.
13. Alquié, Ferdinand, Russo, F., Beaude, Joseph, Tonnelat, M.A., Costabel, Pierre, Polin, Raimond, Galileu, Descartes e o Mecanismo, p. 26.
14. Coveney, Peter e Highfield, Roger, A flecha do tempo, p. 57.

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