terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A lei como expressão da vontade de poder

O que nos falta é radicalizar a ideologia iluminista, que os Estados Unidos deixaram para trás. A concepção moderna de mundo não admite que haja um universal positivo. É por isso que a concepção moderna de mundo é não-religiosa. Hoje temos cada vez mais medo da diversidade. O Estado brasileiro nos dá freqüentes provas disso. Montesquieu já dizia que as leis ruins prejudicam as boas.Mas no Brasil de hoje, tudo tem de ser regulamentado. Isso é um perigo. Temos de ter um mínimo de lei absoluta para ter um máximo de experimentação. Mas o que se dá no Brasil é o contrário, temos o máximo de lei e um espaço cada vez menor para experimentar. Antonio Cícero
O RACIONALISMO NUMERAL deixa à margem, na falta de uma metodologia mais abrangente, qualquer dado ou reivindicação do indivíduo, porque nele "não há ciência", uma exclusividade pública e numérica. A humanidade explica o homem e não o contrário. Viva, mais do que nunca, o fatal determinismo, a sociedade autômata, era da engenharia social:
Para Michaël Zöller, sociólogo alemão da universidade de Bayreuth, o que se chama de Estado é certamente um sistema de interesses pessoais organizados, uma Nova Classe. Como todos nós, sua ambição é aumentar a remuneração e a autoridade. Como classe, ocupam-se, pois, a desenvolver seus poderes, suas intervenções e sua parte no mercado, isto é, a apropriação pelo setor público dos recursos nacionais, operada através do imposto sobre a sociedade civil. SORMAN, G. :74
A superestrutura

A política, educação, lazer, entretenimento, a cultura como um todo, os impulsos inconscientes e até mesmo, como veremos, o protesto contra a tecnocracia - tudo se torna objeto de exame e de manipulação puramente técnicos. O que se procura criar é um novo organismo social cuja saúde dependa de sua capacidade para manter o coração tecnológico batendo regularmente.(1)
Jacques Ellul sintetiza a desumanização carreada pelo radical pragmatismo:
A técnica exige previsibilidade e, em não menor grau, exatidão de previsão. É necessário, portanto, que a técnica prevaleça sobre o ser humano. Para a técnica isto é uma questão de vida ou morte. A técnica precisa reduzir o homem a um animal técnico, rei dos escravos da técnica. O capricho humano esboroa ante esta necessidade; não pode haver nenhuma autonomia humana face a autonomia técnica. É preciso que o indivíduo seja talhado por técnicas, quer negativamente (pelas técnicas de compreensão do homem) quer positivamente (pela adaptação do homem a estrutura técnica) a fim de se eliminar os defeitos que sua determinação pessoal introduz no projeto perfeito da organização. (2)-
A base cientística da fúria legiferante
A louca corrida pela “exatidão” exige, da obtusa ciência social, o próprio abandono da pequena mochila onde guardava seus parcos fundamentos:
A ciência procura leis não somente independentes mas determinantes da vontade humana. Ela insiste em regularidades, estrutura, sistema, invariantes e, para tanto, procura delimitar e recortar claramente os objetos de estudo. Cultural e socialmente revestida de positividades, bondade e poder, ela menospreza a filosofia, percebida como figura diminuída que precisa ser 'abolida' ou 'desvalorizada'. (3)
A experiência não lhe corresponde:
A viciosidade peculiar do racionalismo é que ele destrói o próprio conhecimento que possivelmente viria salvá-lo de si próprio, ou seja, o conhecimento concreto ou tradicional. O racionalismo serve apenas para aprofundar a inexperiência a partir do qual ele foi originalmente gerado.(4)
A imanente praxeologia cientificista rejeita qualquer apreciação de (ou com) sensibilidade. Hipóteses variadas, gosto, olfato, prazer, originalidades, individualidades, há muito foram vetados, no objetivo da exatidão. Coisas invisíveis não se deixam medir. Então, o estudo do comportamento humano descartava estas “abstrações”. Na “previsão” de Comte o homem jamais iria conhecer a composição das estrelas e dos planetas e isso permaneceria um eterno mistério.

Na medida em que o poderio da ciência e da técnica é não somente poderio do homem, mas poderio sobre o homem, a ciência é mediadora da dominação do homem pelo homem; e talvez por isso que vivemos numa agressão e numa agressividade permanentes: porque o nosso meio ambiente é considerado como imputável.
PH Roqueplo
,
Oito Teses Sobre o Significado da Ciência, in DEUS, Jorge Dias de, Organizador: 151
Coeso com as formulações científico-sociológicas, cabia ao homem, especificamente aos governos, descobrir os lineares desígnios e interferir para acelerar ou modificar a natureza, não só das coisas, como ensinara Bacon, mas também no destino das gentes, fixando ordenamentos morais e sociais propícios à defesa, atalho à pretendida expansão aritmética advindas de imediatas conquistas, para gáudio de Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel.
Duguit relembra-nos que a partir da Revolução Francesa, “tudo que era necessário era substituir o rei pela nação. O rei era uma pessoa, de direito, portadora de poder soberano; como ele, a nação será uma pessoa, de direito, de poder soberano”. (5)
Em vez da “vontade” do Rei, a “vontade da Nação”, aferida aritmeticamente, quando não de maneira subreptícia, e implementada coercitivamente. Isto era o que compunha, justamente o elemento da revolta de Thoreau:
Thoreau pergunta: por que deve prevalecer sempre a consciência do legislador ou do aplicador da lei? Essa pergunta não fica invalidada pela alegação de que esses homens são representantes de uma maioria eleitoral mais ou menos duradoura, pois a virtude cívica não reside necessariamente nas maiorias. O critério da maioria é o de uma conveniência quantificável, aritmeticamente verificável. A tirania de uma lei não é abrandada por sua origem majoritária. No ato de votar, diz Thoreau, homens virtuosos e inescrupulosos se igualam. (6)
Para Hayek a manobra é clara e tem a origem comum:
A substituição por Rousseau, Hegel e seus seguidores da palavra 'opinião' pelo termo 'vontade' foi provavelmente a inovação terminológica mais fatídica da história do pensamento político. Esta substituição teve fundamento no cartesianismo de Rousseau e foi produto de um racionalismo 'construtivista' que imaginou que todas as leis foram inventadas como expressões da vontade para um dado fim. (7)
Tocqueville passou toda vida se debatendo:
Quando se estuda a história de nossa Revolução se vê que obedeceu as mesmas idéias que inspiraram tantos livros abstratos acerca do Governo. Nota-se nela a mesma afeição às teorias gerais, aos sistemas completos de legislação e à exata simetria das leis; o mesmo menosprezo pela realidade existente; idêntica confiança na teoria; o mesmo gosto pelo original, pelo engenhoso e pelo novo nas instituições; o mesmo desejo de refazer ao mesmo tempo toda a constituição segundo as regras da lógica e conforme a um plano único, em vez de trata de corrigi-las por partes. Terrível espetáculo. Aborrecem a diversidade, adorariam a igualdade até a servidão. Querem destruir tudo o que dificulta o alcance de seus desejos. Os contratos lhes inspiram pouco respeito e nenhuma consideração os direitos privados: falando com propriedade, não existem para eles direitos privados, mas somente a 'utilidade pública'. Os economistas sentem pelo passado um desprezo sem limites. Não tratam de destruir o poder absoluto, mas de transformá-lo. Este imenso poder social que os economistas imaginam: não emana diretamente de Deus, nem nasce da tradição: é impessoal. Não se chama rei, mas o Estado e deve fazer com que o direito de cada qual se ajoelhe ante a vontade dos demais. (8)
Tolstói (A Escravidão de nosso tempo, 1900, cit. Woodcock, G.:106) pode explicar:
“Mas a verdade é que não só nos países autocráticos, como naqueles supostamente mais livres - como a Inglaterra, a América, a França e outros - as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a vontade daqueles que detêm o poder."
A razão não pode ser mais pueril:

As primeiras histórias das instituições foram histórias do direito, escritas por juristas que com freqüência tiveram um envolvimento prático direto nos negócios do Estado. BOBBIO, N. 1987: 54
As últimas não são diferentes:
Entre a teoria dos quanta, que sustenta o edifício científico da idade atômica e o pensamento dos economistas e filósofos, marxistas e tecnocratas, parece terem decorrido séculos. Já não falam a mesma língua. Já não têm nem uma idéia comum. KRAEMER, Eric, La grand mutation cit. GOYTISOLO: 69
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Notas
1. Roszac, Theodore, p. 19.
2. The Technológical Society, p. 138.
3. Lacoste, Jean, A Filosofia do Século XX, p. 49.
4. Franco, P., cit. Giddens, A., p. 39.
5. Cit. Maksoud, Henry, Demarquia Um Novo Regime Político e Outras Idéias, p. 59.
6. Thoreau, H., Desobedecendo - a desobediência civil e outros escritos.
7. Hayek, Friederich Von, cit. Maksoud, H., p. 39.
8.Tocqueville, Alexis, cit. Goytisolo, Juan Vallet de, , p. 129.

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