terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O idealista democrático

Onde o homem nada encontra para ver e pegar, nada tem para fazer. 
F. Nietzsche
O santo
J.-J. ROUSSEAU preferia evidenciar uma aura de estoicismo e auto-suficiência, má-índole melhor expressada na suspeita àqueles que recebiam sua amizade, na descoberta de complicadas e imaginárias conspirações para traí-lo e arruiná-lo, logo ele, o “idealista democrático”:
Quando James Boswell visitou Rousseau que mais do que qualquer outro francês do seu tempo influenciou a opinião pública contra a propriedade, seu anfitrião lhe disse: ‘Senhor, eu não tenho a menor simpatia pelo mundo. Vivo aqui num mundo de fantasia, e não posso tolerar o mundo como ele é. A humanidade me repugna'.
(Boswell on the Grand Tour: Germany and Switzerland, 1764, cit. Pipes: 62)
No fim desenhado, que justifica o meio empregado, ética, verdade, honestidade, solidariedade e respeito são atributos descartáveis:
Rousseau não receia reconhecer que lhe aconteceu mentir e mentir muito, quando estava na sociedade dos seres vivos, mas uma coisa é mentir, negando a verdade e ofendendo a justiça - e a recordação da pobre Marion persegue Rousseau durante cinquenta anos - outra, o prazer da imaginação, que não prejudica ninguém.
(Châtelet, vol. II: 274)
Ela prejudica, e muito, infelizmente, até hoje, malgrado não ser sua primazia, sequer de Maquiavel:
“Como um meio adequado para a consecução de determinados fins, ensina Platão, é permitido ao governo do Estado ideal servir-se de ‘certas mentiras sadias’.” (Kelsen, 1998: 168)
A virtualidade inocente do inflamado devaneio logo se transformou em cruel realidade, dezenas de vezes repetida. O curioso é alguém se encantar por tamanha sordidez, que dirá se erguer monumentos ao sicofanta, como sói acontecer. Para estudá-lo, há que se ter “máscara anti-poluente”:
"Rousseau, o primeiro homem moderno, idealista e canalha numa só pessoa; que necessitou de ‘dignidade’ moral para aguentar seu próprio aspecto; doente de vaidade desenfreada e de desmedido autodesprezo." (Nietzsche, 2002: 108)
A dialética permeou a sulcada consciência, tão partida e conflituosa, quanto integralmente maquiavélica. Condutas mórbidas de sexo e religião ocupavam a primeira fila de seus desejos: “Os meus gostos e pensamentos parecem oscilar sempre entre o nobre e o vil.” (cit. Prelot, M., vol III: 78)
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O foragido
Rohden (1993: 132) reparou o procedimento do consciente vilão:
No seu famoso livro ‘Confissões’ desabafa, diante de si e do mundo, todas suas misérias internas, talvez por um impulso do subconsciente de encontrar libertação psíquica nessa confissão pública dos seus pecados mais íntimos. Aliás, a vida e a pessoa desse homem prestam-se admiravelmente para estudos de psicanálise.
O verso espelhava sua alma:

Deplace par le sort, trahi par la tendresse,
Mes maux sont comptes par mes jours,
Imprudent quelquefois, persecute toujours,
Souvent le chatiment surpasse la faiblesse."
Abandonado à propria sorte, traído pelo carinho,
minhas contas doloridas dos meus dias 
às vezes imprudente, sempre perseguido 
muitas vezes a punição ultrapassa a fraqueza. 
Paris, a mesma que lhe imortalizaria, motivou-lhe à vida errante. A cidadania suíça - de que tanto se orgulhava - foi-lhe suprimida: Genebra identificou o adereço. Simplesmente o rejeitou. Diderot, que pode bem conhecer a figura, compôs a paródia intitulada Jacques, o fatalista e seu amo. Bizarro é transformá-lo em herói post-mortem, como alguém que só fosse reconhecido muito tempo depois, “porque seus contemporâneos não teriam sido capazes de alcançar tão alto conhecimento.” Outro paradoxo foi sepultá-lo na mesma tumba do grande desafeto Voltaire, o que, para Rousseau, certamente foi uma honra e uma necessidade, se levarmos em conta sua tipificação “parasita”. (Idem, ibidem)
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O plagiador
Sob o crivo teórico, Rousseau não alcançou, ou não interessou captar as mensagens expressas por Locke e Montesquieu, sobre as quais se deitou a recompô-las à sua maneira, nada criando, apenas contrapondo, no velho estilo platônico. A dupla liberal havia se antecipado a Rousseau e a Revolução Francesa, no pleito da separação entre Estado e Igreja, para o vigor da soberania popular; porém, mesmo com o entendimento empírico exposto na Tábula Rasa, Locke não precisou atacar convicções religiosas, e afastou-se do determinismo materialista cartesiano. O “filosofo político” francês, entretanto, teve comportamento antagônico, preocupando-se no ataque, mas com balas de papel:
"Locke escrevera a história da alma, recusando-se a fazer dela um romance, que provém sempre de uma racionalidade artificial; mas sua análise é falsamente histórica, visto que supõe aquilo que está em questão." (Châtelet, vol. II: 275)
Não só Locke, mas qualquer bretão lhe era detestável. Hábitos alimentares, especialmente o beef, sofreram a ridicularização deste problemático ser ocupado em demonstrar, “a tantos quantos quisessem”, que “as rubras postas de carne era uma das causas da notória barbárie inglêsa.” (Rousseau, cit. Jorge, F.: 295)
(Será que spaguetti poderia “endireitá-los”? E Napoleão, logo comeria carne ou criancinhas? Ou os dois e mais um pouco? E o que diria Rousseau se conhecesse as parrilladas argentinas, agora na promoção, ou o espeto corrido do gaúcho? Mas teria ele, vago no mundo, disponibilidade financeira para pagar sequer um filet-a-cavalo?)
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O subversivo
Rousseau logrou confundir. Aproveitando-se da acepção inglêsa de que no nascimento o bebê não contemple o “pecado original” alardeado pela Igreja Católica porque ele próprio responsabilizar-se-ia pelo seu destino, desde que houvesse um governo verdadeiramente democrático que velasse por sua liberdade, ele a distorceu; na habilidade retórica, J.-J. propunha os preceitos, estes sim, romanceados à consciência, os quais iriam livrar escravos de patrões, o povo do rei, os jovens dos velhos, os oprimidos dos opressores, o feio, do bonito: “O homem nasce livre em todo o lugar se encontra acorrentado.” ( cit. L. von Mises1989: 19)
Weber, Eugen, da UCLA para a nossa TV Senado em 17/4/2001, coisa que os senadores, provavelmente preocupados com a boca-do caixa, nada apreciaram, liquida com a tartufice:
Talvez soe bem, mas na verdade o homem não nasceu livre. Nasceu como uma frágil criança de peito. Sem a proteção dos pais, sem a proteção proporcionada a esses pais pela sociedade, não teria podido sobreviver. Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto dos demais como estes dependem dele.
Legislador para si
A exceção conseguiu sobreviver, mesmo órfã, independente dos demais, para enxergar nos cidadãos britânicos “burros de carga”, meros figurantes do teatro real, na ironia aos preceitos de Locke por lá adotados:
“Todo o povo é aquilo que a natureza de seu governo o faz; tudo é possível a um legislador hábil e sábio pois, perante esse legislador, o indivíduo é uma tábula rasa.” (Rousseau, Jean-Jacques, cit. Falcon: 68)
Havia alguma concordância com o patrício Montesquieu, mas não com o método, tampouco com o espírito das leis. Ambos prepararam a Revolução; porém, enquanto Montesquieu dispôs a expressa divisão do poder na alternativa à Monarquia, no fito de coibir radicalismos, precipitações e até crimes, e para que as decisões fossem, antes de promulgadas, pensadas, pesadas, estudadas, debatidas e resolvidas, (prerequisitos essenciais à virtude democrática), Rousseau advogava a simples transferência do poder, mantendo-o unificado numa pretensa vontade popular representada por ação ditatorial, suprema “alienação total de cada associado com toda a comunidade.” Dessa total alienação emerge um comandante moralmente inatingível, eventual abusado penalmente safado que usa sua soberania em causa própria, covardemente, na promovida união de todos os indivíduos contra cada cidadão! Pobre cidadão:
"A ideologia chega ao seu ponto máximo quando coloca o direito como instrumento acionado por uma “vontade”, a da maioria, através de seus ‘representantes’ - de ‘legisladores racionais.’ Jamais se questiona se os ‘representantes’ não estariam sujeitos as conveniências políticas." (Coelho: 341)
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O faminto
Pior do que as conveniências políticas, são as patrimoniais. Bonavides (p. 217) retoma:
“Até mesmo o cidadão que Rousseau fizera rei na ordem política, como titular de um poder soberano e inalienável, acabou se alienando no partido ou no grupo, a que vinculou seus interesses.”
Os representantes, além de ocupados com interesses particularizados, via-de-regra mal-informados, apresentam-se como péssimos tradutores e piores formuladores, mas qualquer ideologia, mesmo a mais irracional, se bem divulgada, tem chance de êxito, ainda mais numa sociedade totalmente atrasada: “Não é incomum que se alegue ter por base o pensamento racional quando, na verdade, se busca um resultado irracional.” (Kelsen, 1998: 489)
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A tática
Na França ou alhures, é trivial subjugar a massa. Basta “que se conheça as paixões dominantes e que haja boa mão no encadeá-la através de ilusões.” (Necker, Du Pouvoir Executif dans les Grandes Etats, v.2: 226; cit. Bonavides: 459):
Qualquer eleição é uma espécie de jogo, como o de damas ou o gamão, com um ligeiro matiz moral, um jogo com o bem e o mal, com questões morais, e as apostas a acompanham naturalmente. O caráter dos eleitores não é comprometido. Até mesmo votar pelo direito não é fazer alguma coisa por ele. É apenas expressar timidamente aos homens o nosso desejo de que ele prevaleça. Há muito pouca virtude nas ações das massas de homens.
(Thoreau, H., cit. Downs: 76)
Benjamin Constant (1767-1830) (cit. Bobbio, 1993: 59) presenciou a dramática página:
Nossos contemporâneos imaginaram um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos; combinam centralização e soberania popular. Isso lhes dá um pouco de alívio. Consolam-se do fato de estarem sob a tutela pensando que eles mesmo escolheram os tutores. Num sistema desse gênero, os cidadãos saem por um momento da dependência, para designar o seu patrão, e depois nela reingressam.
O jogo continua, vedada mudança na regra; mas de antemão sabemos que ela sofrerá o desvio, sutileza de quem está com as cartas:
A massa se rege por sentimentos, emoções, preconceitos, como a psicologia social já demonstrou exaustivamente. A opinião das massas formando a opinião pública será por conseqüência irracional. Não se iluda o publicista democrático a esse respeito, cunhando a expressão agora uso corrente no vocabulário político da propaganda: o ‘estereótipo’, ou seja o ‘clichê’, a ‘frase feita’, a idéia pré-fabricada, que se apodera das massas e elas, numa economia de esforço mental, como diz Prelot, aceitam e incorporam ao seu ‘pensamento’, entrando assim a constituir a chamada ‘opinião pública’.
(Bonavides:459)
Napoleão, Lenin, Mussolini e Hitler bem souberam moldá-la:
A fim de melhor compreender a arte da propaganda, Hitler estudou as técnicas propagandistas dos marxistas, a organização e os métodos da Igreja Católica, a propaganda britânica da Primeira Guerra Mundial, a publicidade norte-americana e a psicologia freudiana.
(Downs: 147)
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NOTA
* O mito final da República é uma mentira útil que se deve contar a essas crianças, a fim de que se submetam à autoridade paterna da ordem estabelecida. (Kelsen. H., 1998: 323)

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