segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A Obviedade do Direito Natural


A idéia de direitos é meramente a idéia da virtude inserida no mundo político. Na base de tudo está a convicção, trazida pela longa experiência, de que os que possuem direitos são compelidos a respeitá-los, pois, no caso contrário, eles próprios serão os principais prejudicados. Dentro do contexto de democracia inglêsa, a liberdade política não estimula um individualismo arrojado. Ao contrário, ela reforça a coesão e a unidade da sociedade, pois somente os homens livres podem cooperar verdadeiramente.
Alexis Tocqueville
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Destacados juristas contemporâneos ratificam as assertivas do nobre francês:
Todas as formas de cooperação social legítima são portanto obra de indivíduos que nela consentem voluntariamente; não há poderes nem direitos exercidos legalmente por associações, inclusive pelo Estado, que não sejam direitos já possuídos por cada indivíduo que age sozinho no justo estado de natureza inicial.
(Rawls: 11)
A mútua confiança é razão e efeito, meio e fim. Foi mesmo a liberdade, muito antes da igualdade, o poderoso pathos britânico:
Os interesses dos indivíduos se compensam entre si e o produto final coincide com o interesse da comunidade. Em outras palavras, a consciência do indivíduo é árbitro e condutor tanto do interesse público quanto do privado, que não é obra do acaso. Enquanto a democracia inglêsa é a democracia da liberdade, a francesa é a democracia da igualdade.
(Tocqueville, 1997: 18)
No caso francês, mas não só nele, resta indagar “igualdade de quê?”, questão-título do prêmio Nobel de Economia 1998, Amartya Sen.**
Robert Dahl (p. 77) lhe acompanha:
“Aparentemente a desigualdade – não a igualdade – é uma condição natural da humanidade.”
As expressões dos direitos naturais simplificam-se em “vida, bens e liberdade.” Nem mesmo a sociedade pode “criar” direitos, exceto dentro dessas três possibilidades , proposta que levou Locke a recomendar, muito antes do êxito de J.J. Rousseau, Jeremy Bentham e Marx - atenção ao itinerário a ser evitado:
“O quinto argumento é ético e consiste na afirmativa de que, se não fosse a lei natural, não existiria vício ou virtude; o homem seria levado a agir não de acordo com o bem, mas sim conforme a maior utilidade: a negação da lei natural levaria ao utilitarismo.” (Locke, cit. Bobbio, 1997: 112)
Hans Kelsen e Wittgenstein se obrigaram à guinada, e até Max Weber, o sociólogo burocrático, rendeu-se ao Direito Natural, este “conjunto de normas que são válidas independentemente do direito positivo existente, sendo inclusive a ele superiores.” (Webber, J. cit. Diggins: 286)
Bobbio (1997: 128) relembra dos basilares, perenes e universais princípios jurídicos:
“Não matar, não roubar, não cometer adultério, a obrigação é perpétua: não há nenhum momento em que possamos violar esses mandamentos.”
Esses direitos não suscitam controvérsias, sequer codificação, mas as "democráticas" revoluções fascista, francesa e bolchevique os desconsideraram de pleno:
"Os bolcheviques têm ancestrais jacobinos e os jacobinos tiveram antecipações comunistas." (Furet, 1989: 20)
Em ambas, as discussões só pairaram sobre os “bens” e a propriedade privada, que a alguns parecia egoísmo, a outros injustiça. Quando a vida de cada um perdia importância frente ao todo, “o sistema econômico não deveria proteger bens privados.”
Pierre-Joseph Proudhon chegou a classificar a propriedade como “roubo.” Cabe indagar onde Proudhon “roubou” os tijolos para construir esta parte falha de sua perspicácia - talvez da olaria de Rousseau, que tanto detestava, ou, mais à cerca, da bancada de Marx, recém chegado a Paris, corrido com sua muamba da Prússia, em 1842. Mas, se lembrasse que para respirar, comer e beber, necessariamente, ele se apropriava do ar, das plantas, peixes, águas, e nem por isto mereceu o castigo imputado a ladrões, fica mais fácil perceber a armadilha na qual o francês se viu envolto, essa chicana desfeita antecipadamente por Locke (1998:410), genial desmonte à falácia platônica:
“Terá sido um roubo tomar desse modo para si o que pertencia a todos em comum? Fosse tal consentimento necessário, o homem teria morrido de fome, não obstante a abundância que Deus o proveu.”
A pertinência de H.G. Wells (t. III: 147) situa o exercício, comum nos animais:
“O cão e seu osso, o tigre e sua toca, o grande veado macho e seu rebanho, são afirmações vivas do direito de propriedade.”
Foi pela consideração ao elemento que o Iluminismo resplandeceu. Sociedades e governos coexistem para proteger a propriedade desde a própria pessoa, garantindo o produto da participação social na medida da atuação. Quanto a preceitos positivos, como socorrer enfermos, famintos, etc., estamos obrigados, como diz Locke, "solum tempore et modo" (Locke, J., 1998: 410) ou seja, apenas em estado de emergência, o que não equivale a provisório, como acena nossa medida.
A preservação da propriedade, o respeito ao semelhante e suas coisas, de novo conseqüências do direito natural, vinga “sem qualquer acordo expresso dos membros da comunidade.” Vale dizer: todos se obrigam a cumprir a lei, mesmo ela não sendo escrita. Utópico? Exagero? Nem tanto: os inglêses conseguiram isso em 1689. Não por acaso, formam uma civilização de vanguarda, primeira a adotar e das poucas que mantiveram intacta a democracia; primeira em riqueza material, por muito tempo; primeira na Revolução Industrial; grande vencedora das guerras mundiais; e iniciante da Revolução Cultural, por Londres e Liverpool, ícones do indeléveis anos sessenta.
Porque o direito, a realidade 'direito' - não as idéias sobre ele do filósofo, jurista ou demagogo - é, se me permitem a expressão barroca, secreção espontânea da sociedade e não pode ser outra coisa. Querer que o direito reja as relações entre seres que previamente não vivem em efetiva sociedade, parece-me - perdoe-se-me a insolência - ter uma idéia muito confusa do que é o direito.
ORTEGA Y GASSET, J. A rebelião das massas: 7

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Notas
* American Democracy: 283; 1997:17
* “A pergunta central na análise e avaliação da desigualdade é, como aqui sustento, ‘igualdade de quê?’” Sen, A.: 21

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