sábado, 16 de abril de 2011

A gravidade do sulco cartesiano


A ciência como instrumento e máscara da dominação de classe: eis o signo indiscutível da ideologia!
Claude Chrétien
A vela "iluminava" os pobres mortais. Quando ela caia, e incendiava tudo, nada era culpa de Deus. Ele não tapeia suas criaturas.
Os homens podem cometer injustiças porque tem interesse em cometê-las e preferem sua própria satisfação que a dos outros. É sempre por um retorno que eles agem; nada é mau gratuitamente, é preciso que haja uma razão que determine e essa razão é sempre razão do interesse. Mas não é possível que Deus faça algo de injusto, uma vez sequer.
MONTESQUIEU, Cartas Persas: 282
Os equívocos vem do “gênio mau”, “manhoso e enganador”, sempre empenhado no seu papel, o diabo caricaturado na Meditação Primeira, meditação deveras primária.
O Deus cartesiano nos dá algumas idéias claras e precisas que nos permite encontrar a verdade, "desde que nos atenhamos a elas e não nos deixeis cair no erro". "O erro, o Mal entra pelo corpo, transforma o divino Bem da alma", e isso já ensinara Platão: “A terra, ou seja, a matéria, é contraposta à verdadeira natureza da alma, quer dizer, ao seu ‘ser boa’. A matéria representa o mal.” (Cit. Kelsen, 1998: 3)
O “escultor e pai do universo” havia colocado tudo aos nossos pés, “para isentar a si próprio de qualquer culpa por futura ruindade.” Cabía-nos apenas rastrear a Sua charada. O racionalismo O legitimava:
"A região do mundo colhia, pelo menos parcialmente, a herança grega, e a combinara com a visão da natureza e a vocação do homem trazida pela tradição judaico-cristã." (Ladrière, Les enjeux de la racionalitè, 1977)
Lá vinha Descartes, na carta à Mersenne (15/04/1630), a aproveitar a maré:
Mas eu não deixarei de tocar, em minha física, em várias questões metafísicas e particularmente nesta: que as verdades matemáticas, as quais chamais de eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo o resto das criaturas. Não receai, peço-vos, garantir e publicar em toda a parte que Deus é quem estabelece estas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reino.
Eis a ciência, prosaicamente simplificada, de coração partido. O peregrino, ainda que raramente implicado, é, dessarte, padrinho do absolutismo desde Bodin*. Afilhados não são poucos: Thomas Hobbes e sua invenção, o puritano Cromwell; do astuto Rousseau e seu fruto, Napoleão; culminando por abençoar o casal Hegel & Marx, e seus filhotes, entre os quais os mais salientes - Bismarck, Hitler, Mussolini, Lênin, Mao e Stálin.
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O método

A ênfase excessiva na análise (na parte) conduz ao reducionismo escotomizante, enquanto a focalização unilateral na síntese conduz ao globarismo obscurecedor. Existe uma polaridade onde a totalidade é vista pelos elementos, e vice-versa, formando um círculo que determina a reciprocidade da parte e da totalidade. Karl Jaspers,  Psicopatologia Geral, Ed. Atheneu, 1987, Vol I, p. 40; .
Pela arquitetura ordenativa-normativa, passou a ser possível, e recomendável, balizar as ciências jurídicas, econômicas, sociais e governos, pela contundência de comparação expressada:
Tal como uma casa construída por um só arquiteto será mais bela que aquela na qual vários construtores trabalharam, também uma cidade construída por gerações sucessivas não tem tanta ordem como a que foi construída de uma só vez [ele só não pode conhecer o tédio de Brasília!] do mesmo modo também as ciências, tendo sido construídas pouco a pouco, não possuem nenhuma certeza e não ensinam a ordem verdadeira das coisas. Por isso, seria preciso que alguém empreendesse, de uma vez para sempre, reconstrui-las e pô-las em ordem.
Descartes, cit. Koyré, 1986: 44
O barro cartesiano, pintado por Rousseau com as cores de Platão, tornar-se-ia o leitmov do “juspositivismo”, o “direito” da imposição:
Descartes nos diz com toda a clareza, na segunda parte do Discurso do Método, que uma legislação que é obra de um só vale mais do que a que foi elaborada por vários através das transformações da história, pois é mais fácil a um só seguir um plano racional e apartar-se das contingências que constituem os hábitos e os costumes dos habitantes do país.
Perelman: 363

A gravidade
Nosso TriPulante Sorman reitera:
A culpa inicial cabe a Descartes. Ele foi o primeiro a negar a sabedoria inconsciente, persuadindo-nos de que só o que era demonstrável, era verdadeiro. Rousseau substituiu-o, imaginando que não havia leis fora das desejadas pelo homem. Finalmente veio Augusto Comte, que instalou de vez a universidade no positivismo, fez as ciências humanas oscilarem para a sociologia e eliminou todo o ensinamento sério da economia.
Não era mesmo necessário utilizar nenhuma originalidade:
O próprio Descartes esboçara as linhas gerais de uma abordagem mecanicista da física, astronomia, biologia e medicina. Os pensadores do século XVIII levaram esse programa ainda mais longe, aplicando os princípios da mecânica newtoniana às ciências da natureza e da sociedade humana. As recém-criadas ciências sociais geraram grande entusiasmo e alguns de seus proponentes proclamaram terem descoberto uma ‘física social’.
Capra, 1991: 63
A natureza tornava-se previsível, porque governada pelos números, na pretensão sem par, mas não passa pela agudeza de nenhum TriPulante:
"Para que o mundo parecesse regulado, era preciso que as leis descobertas em primeiro lugar fossem matematicamente simples. O determinismo só podia impor-se por intermédio de uma matemática verdadeiramente elementar."
Grande parte da moderna sociologia, da pedagogia e toda a psicologia da pessoa derivam desta linha de pensamento, assim como nossa violência característica do século XX, uma reação natural diante de tamanha impotência. Foi igualmente afetada nossa atitude em relação à natureza e ao mundo material. Se nossa mente, nosso consciente é totalmente diferente de nosso ser material, como argumentou Descartes, e se a consciência não tem nenhum papel a desempenhar no Universo, como sugere a física de Newton, que relacionamento podemos ter com a natureza ou com a matéria? Somos alienígenas num mundo alienígena, situados à parte dele e em oposição a ele, nosso ambiente material. ZOHAR, DANAH: 191

O equívoco
O dualismo cartesiano, ao criar a bifurcação mente-matéria, observador-observado, sujeiro-objeto, moldou o pensamento ocidental, poucos filósofos discordando dele, cujos mais notórios foram Spinoza e Schopenhauer. No século XX essa discordância se acentuou.
(GOTTSCHALL: 189)
A humanidade contabiliza enorme gama de perdas irrecuperáveis, malgrado a compreensão e o reconforto do grande Werner Heisenberg (cit. CAPRA, Fritjof, Sabedoria Incomum, Conversas com pessoas notáveis: 16), há algumas décadas atrás:
“A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade.”.Descartes se vangloriava - a ciência “nada mais era do que geometria.”
"O Determinismo é então uma consequência da simplicidade da geometrização primária. O sentimento do determinado é o sentimento da ordem fundamental, o repouso de espírito que dão as simetrias, a segurança das ligações matemáticas."
"Não havia propósito, vida ou espiritualidade na matéria. A natureza funcionava de acordo com leis mecânicas, e tudo no mundo material podia ser explicado em função da organização e do movimento de suas partes. (Alquié: 29)
A certeza era o bônus adquirido por quem seguia a palpável regra, esteira rolante a facilitar o acesso ao verdadeiro, lógica percorrida em progressão contínua, ordenada, por isto pretensamente clara, do simples ao complicado, passo-a-passo, técnica aprendida na lógica dos antigos geômetras temperada com a álgebra. Pascal incitara. Platão sobrevivera. Partindo do pre(mal)suposto, Descartes descreve período que o condena de plano:
"Não admito como verdadeiro o que não possa ser deduzido, com a clareza de uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade não podemos duvidar. Como todos os fenômenos da natureza podem ser explicados deste modo, penso que não há necessidade de admitir outros princípios da física, nem que sejam desejáveis."
Assim, até Lênin (Materialisme et empiriocriticisme; cit. Chrétien: 131) se arvorou a sentenciar:“O universo é um movimento da matéria regido por leis, e nosso conhecimento, não sendo senão um produto superior ao da natureza, só pode refletir essas leis.”
O “grande físico” soviético era produto de uma natureza rude e estúpida. Suas esdrúxulas e tirânicas leis foram reflexos da ignorância, ainda que os parcos conhecimentos estivessem a serviço de superar a natureza. Ironicamente, o ateu era, de fato, símbolo de crença, picada na qual transitam, alhures, devastadores científicos, filosóficos, políticos, ecológicos, jurídicos, sociais e econômicos.
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* “Não é um simples acaso que a idéia cartesiana de Deus como legislador do universo se desenvolva somente quarenta anos depois da teoria da soberania de Jean Bodin.” (Zilsel,E., The sociological roote of science, The American Journal of Sociology)

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