segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Metafísica de meta


O dialético degrada a inteligência de seu antagonista.
Friederich Nietzsche*
AS LINHAS DE PENSAMENTO do século XIX alcançavam o ápice na apuração das duplas incidências.De um lado, a anti-liberalidade propugnava  pela valoração extremada do Estado, em detrimento do cidadão; de outro, a filosofia mecanicista, tomada científica, montada a escorar tal "argumentação". O espelho da ignorância cruzou o XX.  Ambas ficam ligadas como as pernas de um corpo. Por sobre o pescoço senta a dupla cabeça, como convém à mirabolante. Para a libertação do determinismo metafísico, se sobrepõe essa moça de duas caras, mas a platônica representação manifesta o vício romântico-idealista, portanto aprimorando o que condena. “Deve-se ter em mente que lógica, para Hegel, é realmente sinônimo de metafísica.” (1)  O que isso significa? Socorre-nos nosso artilheiro: "A crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores." (2)
A forja encontrou bom ninho pelas barbas do profeta Marx.
Os conceitos metafísicos de Rousseau formam o centro não muito coerente de seu sistema político. Eles abrem caminho para a visão hegeliana do Estado como entidade ética central e para a teoria marxista da alienação. PENNA, J.O. de Meira. O dinossauro: 100
O "filósofo" preferido dos "vanguardeiros sociais" utilizou a mesma estratégia, a fim de promover a luta, não pela prevalência do maior grupo, como apregoava o falso democrático ROUSSEAU, tampouco de nações, como propugnava o retaliador Hegel, mas de classes, como convinha a um andarilho internacional: “A dialética hegeliana é idealista, pela primazia concedida ao espiritual sobre o material. Feuerbach, na própria escola de Hegel, iniciou a conversão do idealismo para o materialismo, obra esta completada por Karl Marx.” (3)
Marx, então, escolheu de Hegel e de Darwin a dialética chamada científica, refutou a perna mecânica do Estado Nacional e partiu para a formulação teórica da “ditadura do proletariado”, na verdade uma tirania de Nomenklatura. Eis cabal razão do filósofo-mór do materialismo: “Em Hegel a dialética está de cabeça para baixo. É preciso recolocá-la sobre seus próprios pés para descobrir-lhe o núcleo racional, sob o invólucro místico.”(4)
Enquanto na interpretação histórica hegeliana a Nação, e não o indivíduo, forma a unidade realmente importante, de “cabeça para baixo” o indivíduo permanece ao rés-do-chão, isso sim. Cambia-se, apenas, o comando da impostura - da observada burguesia para uma classe predeterminada, os baluartes da tal classe operária, cujo exercício não dependia de cultura, posse, tradição ou genealogia, mas apenas da vontade de poder.
"O modo de existir do mundo depende da ação dos agentes, o mudar por nossa intervenção, nítido conselho de Bacon. (5)-
De fato tudo mudou: os lírios dos campos deram lugar a milhões de sepulturas.
Crime Ecológico
Marx apreciou esta originalidade baconiana: “Os filósofos tem se limitado a interpretar o mundo de maneiras diversas; trata-se de transformá-lo.” (6)
“O ser que já iniciou a apropriação da natureza por meio do trabalho de suas mãos, do intelecto e da fantasia, jamais deixará de fazê-lo e, após cada conquista, vislumbra já seu próximo passo.” (7)
Pobre natureza. Infeliz civilização. Engels, Marx, Lenin, Sorel, Hitler e Mussolini, contudo, adoravam essas vantagens proporcionadas pela dialética: “Ela nos serve apenas para mudar de um sistema para outro.” (8)
Quando Hegel estudava o destino do sujeito racional sobre a linha do saber, ele não dispunha mais do que de um racionalismo linear, de um racionalismo que se temporalizava sobre a linha histórica de sua cultura, realizando movimentos sucessivos de diversas dialéticas e sínteses. (9)
A formulação marxiana é tosca, parcial, inexata, sem deixar de ser “bem bolada”:
Temos assim, fundamentalmente, duas e somente duas classes: a dos proprietários ou capitalistas e a dos que nada possuem e são compelidos a vender seu trabalho, a classe trabalhadora ou proletariado. A existência de grupos intermediários, tais como os formados por agricultores e artesãos, que empregam trabalhadores mas também executam trabalho manual, pelos empregados no comércio e pelos profissionais liberais não é naturalmente negada. Mas tais grupos são tratados como anomalias, que tendem a desaparecer no decorrer do processo capitalista. As duas classes fundamentais são, em virtude da lógica de suas posições e inteiramente fora da vontade dos indivíduos, essencialmente antagônicas. A própria natureza das relações da classe capitalista e do proletariado é de luta, isto é, de guerra de classes. (10)
A Nomenklatura nunca lutou nesta guerra; porém, dela sempre se valeu.
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A perversão
Hegel subverteu os ensinamentos também de Kant, seu maior vizinho: “Kant nos demonstrou que um conhecimento metafísico esbarra nas antinomias da razão pura e Hegel tomou este resultado como uma demonstração de que é por meio da contradição que a razão se desenvolve.” (11)
Foi o que invariavelmente aconteceu: “A dialética de Hegel, assevero, foi concebida em ampla medida com o fito de perverter a idéias de 1789. Hegel estava perfeitamente consciente do fato de que o método dialético pode ser utilizado para retorcer uma idéia em seu oposto.” (12)
Não por coincidência, começavam os preparativos para as aberrações do século XX: “Sob influência dos filósofos absolutistas e autoritários, Hegel, Marx, Comte e uma pletora de epígonos contaminados por esta magia negra da política que é Ideologia - o Liberalismo recuou a partir da segunda metade do século XIX." (13)
Perversão**: eis o caráter pertinente. Bobbio ressalta a espécie de morbidez: “O tema de guerra inspirou a Hegel algumas de suas páginas mais famosas: desde as primeiras obras tinha proclamado que a guerra é necessária e mantém a saúde dos povos: como o vento sobre o pântano, a guerra é o momento de igualdade absoluta.”(14)
“A gangrena - dizia aquele filósofo amargamente [naqueles tempos realmente havia muita gangrena] - não é curada com água de lavanda. É na guerra e não na paz que o Estado mostrava seu ânimo e ascendia às alturas de sua potencialidades.”(15)
O “Espírito” de cada nação a diferenciava das outras. Quem desejasse constar na geopolítica mundial deveria afirmar sua individualidade ou alma, penetrando una e forte no palco da História na qualidade de combatente. A isso se dava o nome de “progresso”:“Hegel, como Heráclito, acredita ser a guerra o pai e a mãe de todas as coisas.”(16)
Max Scheler aprimorou a definição de Hegel, não de Heráclito: “A guerra significa o Estado no seu mais efetivo crescimento e elevação; significa política.” (17)
Década de 1930: a retomada da estupidez
O ano de 1931, centenário da morte de Hegel e véspera do descalabro mundial, um grupo internacional se congregou aos seus estudos, em Haia. Publicaram-se vários ensaios, todos sem originalidade, exceto a exaltação ao fascismo e, certamente, ao nazismo também.
A Rivista di Filosofia foi dedicada a Hegel; Antônio Barfi clamou por um Renascimento Hegeliano, destacando que Hegel não perecera; mister o retorno do sistema orgânico com leis de continuidade e desenvolvimento. E Appunti di filosofia del diritto (ad uso degli studenti), Turim, Giappichelli, 1932, definiu-se como filosofia jurídica neo-hegeliana. (18)
Solari aproveitou o embalo: "É preciso retomar o fio interrompido da tradição hegeliana, para desenvolvê-lo e dele extrair elementos para uma reconstrução idealista do direito e do Estado em seu sentido social." (19)
Sabine comenta:“Na Itália o hegelianismo atuou no fascismo principalmente nas primeiras fases. O hegelianismo fascista foi reconhecidamente quase uma racionalização ad hoc.”(20)
Os devotados franceses caíram de pleno no conto da dialética, aplicada à política:
Antes da II Grande Guerra, durante mais de vinte anos, Hegel ocupou na França um lugar central. Se a maioria dos pensamentos se afastam dele, também é por terem sofrido a influência determinante daquele que se quis o ‘último filósofo’ e que continua a colocar para todos a questão da mudança do mundo.(21)
Quatro anos antes da catástrofe, manifestou-se o famoso General Ludendorff:“Durante os anos da chamada paz, a política só tem sentido enquanto se prepara para a guerra total.” (22) O historiador prussiano Treitschke os “compreende”: “A guerra não é só uma necessidade prática; é também uma necessidade teórica, uma exigência da lógica. O conceito do Estado implica o conceito de guerra, pois a essência do Estado é o Poder. O Estado é Povo organizado em Poder soberano.” (23)
Em que pese a excelência dos mitos criados, Hegel foi por demais ignorante. Até mesmo Engels, que dele se valeu, não lhe poupou:
Seu horizonte achava-se circunscrito, em primeiro lugar, pela limitação inevitável dos seus próprios conhecimentos e, em segundo lugar, pelos conhecimentos e concepções de sua época, limitados também em extensão e profundidade. E, por mais exatas e mesmo geniais que fossem várias conexões concretas concebidas por Hegel, era inevitável, pelos motivos que acabamos de apontar, que muitos de seus detalhes tivessem um caráter amaneirado, artificial, construído, numa palavra, falso. (24)
O desenvolvimento do saber percorre incontáveis labirintos, alguns caminhos ao nada. Muitos que se dedicaram ao estudo da natureza se enganaram radicalmente; entretanto, quiçá nenhum tenha propiciado tão má conseqüência, tanto perigo e tanta catástrofe à humanidade quanto este débil mental: “Em nossos próprios tempos, o historicismo histérico de Hegel é ainda o fertilizante a que o totalitarismo moderno deve seu rápido crescimento. Seu uso preparou o terreno e educou os meios cultos da desonestidade intelectual.” (25)
Rohden confirma:“Hegel foi o filósofo clássico de todos os totalitarismos estatais e políticos, tanto os da direita (nazismo) como os da esquerda (comunismo).” (26)
Esta coruja não merece ser caçada, e de modo implacável, pela artilharia da Nav's ALL?
Aprecie:

A lambança dialética

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* Crepúsculo do Ídolos, ou como filosofa a marteladas. Tradução Carlos Antonio Braga. - São Paulo: Editora Escala.
** Tema retomado por Hegel em Fenomelogia, num célebre passo que indica aos governos, no que diz respeito a seus povos, "não deixá-los lancar raízes e enrijecerem-se em tal isolamento, para não deixar desagregar o todo e envaidecer o espírito", devem "sacudi-los de quando em quando, em seu íntimo, com as guerras"; quanto aos indivíduos, os governos devem "fazê-lo sentir, com aquele trabalho imposto, o seu senhor: a morte." (Fenomenologia dello spirito; Florença, La Nuova Italia, 1936, v.II, p.15)
Notas
1. Russell, B., 2001, p. 355
2. Nietzsche, F., Além do bem e do mal, p.10

3. Goldman, L., p. 15/16.
4. Coelho, L.F., p. 42.
5. Bacon, Francis, cit. Konder, L. p. 4.
6. Marx, K., O que Marx realmente disse; décima-primeira das Teses sobre Feuerbach, p. 22.
7. Marx, Karl, posfácio à segunda edição alemã do primeiro volume de O Capital, cit. Konder, L., p. 10.
8. Quillet, P., p. 46
9. Bachelard, G., p. 57. .
10. Schumpeter, J., p. 24.
11. Kant, Immanuel, cit. Popper, K., 1998, p. 122
12. Hegel, F. W., cit. Popper, K., p. 48.
13. Penna, J. O. de Meira, p. 179.
14. Hegel, F.W., cit. Bobbio, N., 1997, p. 24.
15. Hegel, F.W., cit. Sabine, G., p. 620.
16. Hegel, F.W.; Heráclito; cits. Popper, K., p. 44.
17. Scheler, Max, cit. idem, p. 78.
18 Barfi, Antônio, cit. Bobbio, N., 1991, p. 182.
19 Solari, cit. idem, ibidem.
20.Sabine, G., p. 650.

21. Hegel, G. W., cit. Descamps, C., p. 132
22. General Ludendorff, comandante das tropas alemãs na I Grande Guerra; cit. Popper, K., p. 78.
23. Treitschke, cit. idem, p. 73.
24. Engels, F. p. 50.
25. Popper, K., p. 282.
26. Rohden, H. 1993 , p. 157.


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