sábado, 9 de fevereiro de 2008

A falta de ética da Totalidade Ética


Considerado isoladamente, o indivíduo era meramente nocivo, um animal governado por instintos bruscos, como dissera Rousseau, sem nenhuma norma de ação mais alta que impulsos, apetites e inclinações, e sem regra de pensamento mais importante que fantasias subajetivas. Os direitos e liberdades do indivíduo seriam aqueles que correspondessem aos deveres impostos pela situação que desfrutava na sociedade. Hegel fundiu a idéia da vontade geral incoerentemente formulada por Rousseau. (2)
O genebrino usou a velha dialética platônica, consubstanciada em Maquiavel & Thomas Hobbes para retorcer a realidade. É justamente no ambiente social, no âmbito da massa, no anonimato da manada que o indivíduo se transforma - basta notar os comportamentos dos hooligans, de exércitos, torcidas organizações e clubes de futebol, dos vândalos, dos arrastões, ou a atuação das gentes em linchamentos públicos. O indivíduo sempre poderá ser responsabilizado. A coletividade, jamais. Ele pode e deve exercer a liberdade. A coletividade nunca, justamente porque movida para acabar com ela. 
A influência de Hegel
Ao cabo de Napoleão, Hegel também apelou àquela “vontade geral”, não para florescer no tronco da República, como propugnara o sofista francês, mas enfeixada na própria Monarquia, afinando destarte no diapasão de Hobbes e Jehan Bodin.
Hegel influiu nos negócios na Alemanha ao fim das guerras Napoleônicas, diante a profunda humilhação nacional perante a França e as aspirações de unificação política e criação de um estado nacional que correspondesse a unidade e grandeza da cultura germânica.
BOBBIO, N., Estudos sobre Hegel: 147
Tal grau de pretensão já havia acometido Thomas Hobbes, com medo da Espanha, algo apontado de geração a geração, e de país em país:
Fora do Estado, acha-se o domínio das paixões, a guerra, o medo, a pobreza, a incúria, o isolamento, a barbárie, a ignorância, a bestialidade. No Estado, acha-se o domínio da razão, a paz, a segurança, a riqueza, a decência, a sociabilidade, o refinamento, a ciência, a benevolência. (3)
Thomas Hobbes sentenciara: “A autoridade, não a sabedoria, cria a lei”. (4) Hegel somou: “A autoridade faz a lei por que é a sabedoria.” (5)
A “sabedoria” hegeliana se presta a vender gato por lebre, e sem entregá-lo:
Mas desde o momento em que o Estado – conforme HEGEL – assume a realidade do direito como desenvolvimento de uma pura idéia, pretensamente moral, em pleno voluntarismo jurídico, a tarefa de legislar tende a converter-se num facere. Trata-se de um fazer mediante o qual sua vontade trata de levar à prática a construção de uma sociedade nova, por um método que combina o idealismo, que lhe ministra o modelo, e o empirismo, com o qual trata de construí-lo. Assim ficam abertas as portas a todo o intento de realizar científicamente qualquer tipo de utopia. .
A tanto, o alemão considerava imprescindível a monarquia nacional e constitucional, até por supor que toda a riqueza de Espanha, França e Grã-Bretanha provinha da união em torno do monarca. Misturando esses aleatórios dados com o conceito de nação fincado na linguagem, como gostava o ridículo Fichte, Hegel conseguiu liquidar com o tênue regionalismo ainda sobrevivente. Desvirtuaram-se tradicionais caminhos e vocações individuais, em nome do todo. O mais alto valor deveria pertencer ao Estado, que simplesmente responderia pelo diktak, molde estéril da personalidade platônica, a Nação-motor da História, o polvo que a tudo alcança, vetor estrelado, preferencialmente, por algum grande astro capaz de magistral interpretação.
Assim falava Hegel:“Tudo o que o homem é, ele deve ao Estado; só nele o homem tem sua essência” (7)
A Coruja pintou um estado de natureza sem inocência, (que infância não tiveram esses gajos) alertando à tradicional violência de civilizações sem Estado.
Hegel conhecia e gostava da obra de Hobbes, sem dúvida. A velha receita determinava detonar de imediato a base do pensamento Iluminista; a tanto, quanto mais mistificação, melhor costumava ser a penetração. Seu ensaio juvenil, de idade e ingenuidade, intitulado Diversas maneiras de tratar cientificamente o Direito Natural, de 1802, anuncia o sofisma posteriormente agigantado.
-A vontade de um, sobre todos
Para Hayek (cit. Maksoud, H.: 39) a manobra é clara e tem a origem comum:
A substituição por Rousseau, Hegel e seus seguidores da palavra 'opinião' pelo termo 'vontade' foi provavelmente a inovação terminológica mais fatídica da história do pensamento político. Esta substituição teve fundamento no cartesianismo de Rousseau e foi produto de um racionalismo 'construtivista' que imaginou que todas as leis foram inventadas como expressões da vontade para um dado fim.
Bobbio demonstra que Hegel conseguiu ser “mais roussoniano que Rousseau.” (8) Este montara um contrato parcialmente inadequado. Mister melhor expressá-lo:“Para que tal aconteça, explica Hegel, é necessário que haja, por parte do Estado, autoridade absoluta e, da parte do povo, obediência incondicional. Os cidadãos do Estado de Hegel são súditos, servos, submissos, no exato sentido da palavra”. (9)
Neste caso, qualquer dialética é condenável, que dirá diversidade. John Dewey percebeu:“Onde quer que impere a autoridade, o pensamento é tido como duvidoso e nocivo.” (10)
Montesquieu bem alertara:“A extrema obediência pressupõe ignorância naquele que obedece; faz suspeitar também ignorância naquele que comanda; neste caso este não terá de deliberar, de duvidar e nem de raciocinar; não deverá senão querer.” (11) O Barão, contudo, foi usado apenas para derrubar a monarquia. Feito o serviço, aplicou-se a "Vontade Geral" de Rousseau, a vontade de sangue, de Robespierre a Danton, daí a Napoleão. Toynbee analisa volúpia dessa vontade, infelizmente exitosa, preconizada pelo genebrino:
Segundo esta concepção, o ser humano individual não é senão uma parte da sociedade de que ele é membro. O indivíduo existe para a sociedade e não a sociedade para o indivíduo. Por conseguinte, o que é significativo e importante, na vida humana, não é o desenvolvimento espiritual das almas, mas o desenvolvimento social das comunidades. Na minha opinião, esta tese não é verdadeira; sempre que tem sido considerada como tal e colocada em prática, tem produzido enormidades morais. A asserção de que o indivíduo é uma simples parte do todo social pode ser verdadeira quando se trata de insetos sociais - abelhas, formigas e térmites - mas é falsa quando se refere a quaisquer seres humanos que conhecemos. (12)
Henri Bergson rejeitou frontalmente:“Em contraposição a Hegel e toda a ala da supremacia estatal, defende Bergson o valor supremo da individualidade humana. Qualquer espécie de sociedade é um meio, e não um fim em si mesma.” (13)
Toynbee e Bergson, todavia, não eram presentes. E se estivessem, não adiantaria. Sören Kierkegaard (1813-1855) estava. Miguel Reale o cita: “Diferentemente de Hegel, que buscava o universal e a objetividade, o escritor desenvolve uma reflexão introspectiva na procura do 'eu' e das componentes 'singularidade e intimidade', através da estética, ética e religião.” (14)
O dinamarquês tentou enaltecer o valor da vida sobre as organizações, meras protetoras dos direitos individuais, mas qual cacife teriam Kierkegaard ou Schopenhauer, até mesmo Nietzsche, para suplantar o “filósofo oficial”?
Os oficiais prussianos, para desespero dos compatriotas e do mundo, logo apresentariam o "Chanceler de Ferro" Otto Leopold Eduard von Bismarck-Schönhausen.Depois do infortúnio da Primeira Guerra, vieram com um simplório debilóide: o cabo Hitler. Interessante a seqüência. Por isso se debatia o socialista BERTRAND RUSSELL (O poder: 187; cit. FONSECA: 26):
As coisas verdadeiramente valiosas na vida humana são individuais e não coisas como as que acontecem num campo de batalha ou nas lutas políticas ou na marcha de massas arregimentadas em direção a uma meta imposta de fora. Nisso reside a diferença essencial entre a perspectiva liberal e a do Estado totalitário: a primeira considera o bem do Estado como consistindo em última análise no bem-estar do indivíduo, enquanto o segundo considera o Estado como o fim e os indivíduos meramente como ingredientes indispensáveis, cujo bem-estar está subordinado a uma totalidade mística, que é simples disfarce para o interesse dos dominadores.
Por certo Hegel, do mesmo modo que Aristóteles, ainda está convencido de que a sociedade encontra sua unidade na vida política e na organização do Estado; a filosofia prática dos tempos modernos parte, como antes, do princípio de que os indivíduos pertencem à sociedade como membros a uma coletividade ou as partes do todo - mesmo quando o todo deva ser constituído somente através do vínculo entre suas partes. As sociedades modernas, todavia, tornaram-se tão complexas que não se pode mais aplicar sem problemas ambas as figuras de pensamento - uma sociedade centrada no Estado, outra no indivíduo. A teoria do discurso do direito - e do Estado de Direito - tem de romper a bitola convencional imposta pela filosofia do direito e do estado, ainda que acolha sua temática. (Habermas, Jörgen, especial para O Estado de São Paulo, 6/11/1993. )
A mais realista e significativa homenagem Jean-Jacques Rousseau a recebeu no cemitério, em Ermenonville. O próprio Bonaparte (cits. Jorge: 71) prestou o tributo às qualidades do defunto: “Era um mau homem, um homem perverso. Sem ele não haveria Revolução Francesa. É verdade que eu também não seria nada. Mas talvez a França fosse mais feliz com isto.”
O mundo também, com certeza!
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* “Doutrina segundo a qual existem leis não postas pela vontade humana - que por isso mesmo precedem a formação de todo o grupo social e são reconhecíveis através de pesquisa racional - das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou jurídica, direitos e deveres que são, pelo próprio fato de serem derivados de uma lei natural, direitos e deveres naturais." (Bobbio, N., Liberalismo e Democracia, p. 12.)
Locke enalteceu o Direito Natural como a principal fonte, para não dizer a única científica, confiável e justa da própria Ciência Jurídica. Foi claro:
“Se eliminas a lei da natureza, eliminas, ao mesmo tempo, entre os homens, toda a cidadania, todo o poder, a ordem e a sociedade”.

Paulo Nader acrescenta:
“O Direito Natural não possui a função de ocultar interesses materiais ou propósitos políticos. Não é ideológico. As diretrizes que traça para o Direito Positivo não decorrem de convenções humanas, nem são seus princípios estabelecidos à luz de acontecimentos históricos. Abandonar a idéia do Direito Natural é manifestação mais grave ainda, porque tal renúncia corresponde à tese de que não há, para o Estado, qualquer limite na sua tarefa de legislar, sendo-lhe franqueadas todas as formas de totalitarismo.”

Leo Strauss especulou pelo este óbvio:
“ O abandono da crença no direito natural, de um direito superior ao positivo, com valor objetivo e validade metahistórica, teria sido uma das causas do surgimento dos Estados totalitários, cujos principio ético consiste na máxima bárbara Gesetz ist Gesetz: a lei deve ser obedecida em si mesma, pelo fato de que é uma lei, independentemente de qualquer consideração sobre o seu valor ético."

'No Brasil nada se cria, tudo se copia," anunciou Velho Guerreiro.
NOTAS

2.Rousseau, J.-J.e Hegel, G.W., cit. Rohden, H., 1993, p. 160.
3.Hobbes, T., cit. Bobbio, N. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil e Estado, p. 41.
4.Hobbes, T., De cive, cit. Bobbio, N., idem, p. 50.
5.Hegel G W. , cit. Bobbio, N., idem, p. 40.
6.Hegel, G.W., cit. Goytisolo, J. V., p. 154.
7.Hegel, G.W., cit. Bobbio, N., p. 86.
8.Hegel, G.W. e Rousseau, J. J. , cits. Bobbio, N.,p. 86. .
9.Idem, ibidem.
10.Dewey, J., p. 144.
11.Montesquieu, p. 44.
12.Toynbee, A.J., Estudos de História Contemporânea: a civilização posta à prova, p. 217.
13.Bergson, Henri, cit. Rohden, H., A 1993, Vol II, p. 206.
14. Kiekegaard, Sören, cit. Reale, M., 1998, p. 234.


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