quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Espaço ao Acaso

Não se compreende o Direito Objetivo
a não ser em razão do Direito Subjetivo.

GADAMER, H.G.
(1)

NA TENTATIVA da busca sistematizada, seriada, o avanço positivista sempre depende do antecedente, do passo que o precede. O conceituado professor L.F. Coelho de certo modo discorda com tal método:"Direito não é o passado que condiciona o presente, mas o presente que constrói o futuro.” (2) (No que ouso discordar parcialmente de tão capacitado mestre. A Ética precede o Direito; e o futuro faz-se per se) E por ser expressão do passado, em que pese augurar o futuro, a doutrina positivista se frustra pela maior velocidade e amplitude do último. Não obstante, o parco conhecimento do que é ou do que foi, geralmente apenas impressões, não abre, automaticamente, a porta do devir: “Não se pode fundar a possibilidade de raciocinar do passado para o futuro na asserção de que, como até agora (passado) essa inferência deu resultados, voltará a dar os mesmos resultados (no futuro).” (3) Von Mises reforça:
O tema de todas as ciências históricas é o passado. Elas não podem ensinar algo que seja aplicável a todas as ações humanas, ou seja, aplicado também ao futuro. As ciências naturais também lidam com eventos passados. Toda experiência é uma experiência de algo que já passou; não há experiência de acontecimentos futuros. A informação proporcionada pela experiência histórica não pode ser usada como material para a construção de novas teorias ou para a previsão de acontecimentos futuros. Toda a experiência histórica está aberta a várias interpretações e, de fato, é interpretada de várias maneiras. É impossível reformar as ciências da ação humana obedecendo a padrões de física ou de outras ciências naturais. Não há possibilidade de estabelecer a posteriori uma teoria de conduta humana e dos eventos sociais. Os postulados do positivismo e escolas metafísicas congêneres são, portanto, ilusórios. (4)
Pois as leis físicas garantem a incerteza da órbita do elétron! Estas "ciências humanas é que tem, necessaria e humildemente, se amoldarem às implacáveis condições da natureza, senão será sempre artificial.; por conseguinte, de prazo limitado. Vejamos o que nos diz, por outras belas palavras, Deepak Chopra:
A busca de segurança é uma ilusão. Para a tradicional sabedoria ancestral, a solução deste dilema está na sabedoria da insegurança, ou na sabedoria da incerteza. Isso quer dizer que a busca de segurança e de certeza é na verdade, um apego ao conhecido. E o que é ele, afinal? O conhecido é nosso passado. O conhecido nada mais é que a prisão dos velhos condicionamentos. Não há nenhuma evolução nisso - absolutamente nenhuma. E quando não há evolução, há estagnação, desordem, ruína. (6)
Vale transcrevermos as expressões do sacerdote-cientista Pierre Teilhard de Chardin:
Cada ciência, é claro, deve debruçar-se sobre o capítulo de sua competência. Mas qual delas nos proporciona uma visão de conjunto, revelando uma significação, sentido... o tecido do acontecimento? E como fará se o livro ainda está se escrevendo e não foi lido? (7)-
O comprometimento da sociologia

O estudo da sociedade é tão precioso porque o homem é muito mais ingênuo como sociedade do que como 'indivíduo'. A 'sociedade' jamais considerou outro modo de virtude senão como meio para atingir a força, a potência, a ordem.
NIETZSCHE, Friedrich,
Vontade de potência - Parte 2: 276
A cátedra tem o escopo de a tudo prever. Por prepotência e designação de raiz, todavia, peca em desprezar detalhes, individualidades. Desconhecendo seu objeto, torna-se desacreditada:

A sociologia, que pretendeu ser científica ao trabalhar com amostras de população e de acordo com métodos matemáticos, fracassou até no campo da cientificidade. Seus resultados não têm nenhum valor cognitivo ou de prognóstico. Por isso é que estamos numa crise de sociologia. (8)
Pode-se acreditar que possuia Comte, pelo menos, alguma intuição do que se punha a orientar? Respondemos com o insólito fato trazido por Brian:
Em 1844, Auguste Comte previu que o homem nunca iria conhecer a composição das estrelas e dos planetas e que isso permaneceria um eterno mistério. Apenas dois anos após a morte de Comte, em 1857, Kirchhoff provou que ele estava errado, ajudando a desenvolver o espectroscópio. (9)
Quem, todavia, conhece Kirchhoff?
Não se pode afirmar que havia incoerência:
“Ao considerar a Sociologia como ciência positiva, [Comte] admitiu a existência de certas constantes e regularidades nos fatos sociais que lhe permitiam a indução de leis objetivas e válidas como na física.” (10)
As instituições se curvaram diante da estupenda avalanche mecanicista, forjada coincidência. Na estratégia de Bacon - “Ciência, logo previsão; previsão, logo ação”- cabia à Ciência Política, desenhar o futuro, “a fim de evitar qualquer ação inútil, efêmera ou perigosa” (11).
Vale a lembrança de Proudhon:
“A política é uma ciência, não uma estratégia e a função do legislador se reduz, em última análise, à procura metódica da verdade.” (12)
O que Proudhon não menciona é que o legislador, numa democracia, antes de sê-lo, precisa da estratégia para a própria eleição; no cargo, precisa dela para manutenção de seu status - quer dizer: no exercício democrático de poder concentrado é quase impossível dissociar a estratégia da ciência, a ideologia, da procura e aplicação metódica da verdade. Se queremos ciência, mister observarmos o mestre Einstein:
“Podemos ter o conhecimento mais claro e completo do que é, sem contudo sermos capazes de deduzir disso qual deveria ser a meta das nossas aspirações humanas.” (13)
-
A presença do acaso
Um contemporâneo de Einstein já percebia:
Nos sistemas não-lineares existe um aspecto muito significativo das bifurcações ou pontos de crise que ressalta muito bem o tempo como meio de inovação para o qual o filósofo Henry Bergson tanto procurou chamar a atenção em seus trabalhos. O papel crucial do indeterminismo, das flutuações ao acaso, é controlar o desfecho que se dá nos pontos de crise que faz do tempo uma entidade inovadora: entre um estado estável e o seguinte, o futuro do sistema inteiro está nas mãos precárias do acaso, ao contrário do passado do sistema." (14)
O professor Luiz Carlos Meneses, em programa de tv recente (Diálogos Impertinentes,TV SENAC/SP), testemunha com impecável espírito: “O acaso existe, graças a Deus!”.
José Eduardo Faria põe sua colher:
Tanto o Direito como a Política jamais poderão ser reduzidos aos esquemas axiomáticos-dedutivos, expressos pelas ciências exatas, as quais se caracterizam por conter um elemento interno de coerção, que as torne indiscutíveis - mas sim, com um repertório de topoi, ou seja, certas fórmulas de procura - para usar as palavras de Viehweg, pontos de vistas universalmente aceitos e utilizados, empregados tanto a favor como contra e parecem conduzir a verdade. (14)
Tocqueville, demonstrando uma noção da relatividade provada por Einstein, já criticara a analogia do grande barco e sua quilha, trazida por Bodin e incrementada por Comte:
“O legislador parece o homem que traça sua rota no meio dos mares. Ele também pode dirigir o barco que o transporta, mas não poderia mudar sua estrutura, criar os ventos, nem impedir que o Oceano se erguesse a seus pés.” (15)
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O fim do conto
Não por acaso entende Popper:
“Em meu Poverty of Historicism sustento (no prefácio) que a ampliação de nosso conhecimento não pode ser prevista através de meios científicos, sendo conseqüentemente imprevisível o futuro curso da História” (16)
Caro Baroja diz que “o intento de racionalizar o porvir é obra de nossos tempos, talvez mais perigosa que a piromancia, a hidromancia ou a oneirocrítica”. (17)
Físico que se preze não se mete a predizer condições atmosféricas ou a dispor sobre aerodinâmica em altas velocidades. Muito menos um sociólogo pode vaticinar e dispor sobre o futuro; exceto Comte:
Houve Augusto Comte. Pensava conhecer o futuro que estava reservado à humanidade. E, portanto, considerava-se o supremo legislador. Pretendia proibir certos estudos astronômicos por considerá-los inúteis. Planejava substituir o cristianismo por uma nova religião e chegou a escolher uma mulher para ocupar o lugar da Virgem. Comte pode ser desculpado, já que era louco, no sentido mesmo com que a patologia emprega este vocábulo. Mas como desculpar seus seguidores? (18)
Canguilhem emparelha:
Augusto Comte fica obcecado pela idéia de determinar especulativamente as leis da normalidade. Assim, um de seus amigos positivistas imagina recolher a urina nos banheiros de uma estação de trem onde passam pessoas de todas as nações. Ele quer efetuar a análise da “urina média dos europeus. (19)
Augusto Comte, cujas idéias hoje fossilizadas são simples curiosidade nos museus filosóficos, pertencia à perigosa espécie dos que se julgam donos da verdade e se auto-atribuía uma missão que o levou à beira da loucura. Suas idéias eram uma mistura de messianismo e dogmatismo: uma monomania pseudocientífica. A política devia obedecer a critérios científicos, impostos por uma minoria de especialistas. A representação política não tinha qualquer valor; o único que importava era a competência. A política “científica” consistia em fazer de cada indivíduo um funcionário social, totalmente subordinado ao poder. Nada mais estranho ao pensamento de Comte do que a noção liberal de direitos individuais: 'Todo direito individual é uma abstração, a sociedade é a única realidade'. Nada de divisão de poderes: o Legislativo e o Judiciário deviam ser inteiramente subordinados ao Executivo. Tudo para o Estado, nada para a sociedade; em suma, um completo sistema de despotismo espiritual, político e social. (20)
Miguel Reale sela o sepulcro do mito:
É sabido que Augusto Comte não teve uma compreensão plena e segura do fenômeno jurídico, tendo seu espírito dominado por um determinado tipo de ciência do direito e por uma determinada espécie de jurista: o filósofo de Montpellier tinha diante dos olhos uma Jurisprudência formalista e convencional, enclausurada no mundo dos conceitos e dos silogismos, distante das mutações sociais, por força de sua fundamental inspiração racionalista e abstrata. Pelas mesmas razões, não concebia ele o jurista senão um 'leguleio' divorciado das realidades humanas, apegado em demasia ao casuísmo, perdido no sonho de subordinar o devir histórico a regras estereotipadas e frias. (21)
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Notas
1. Elogio de la teoria, Barcelona, 1993; cit. Andrade, Manuel da Costa, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal: Uma perspectiva jurídico-criminal, p. 24.
2. Coelho, Luis Fernando, Lógica Juridica e Interpretação das Leis, cit. Reale, Miguel, O Direito Como Experiência, p. 294.
3. Silva, Porfírio, p. 23.
4. Von Mises, Ludwig, Ação Humana - Um Tratado de Economia, p. 72.
5. Chopra, Deepak, As Sete Leis Espirituais do Sucesso, p. 77.
6. Chardin, Teilhard, cit. Archanjo, Ph.D. Prof. José Luiz, p. 49.
7. Morin, E., p. 87
8. Brian, D, pg 28
9. Nader, Paulo, , p.174
10. idem, p. 15
11. Proudhom, J., cit. Woodcock, G., p. 61
12. Einstein, Albert, cit. Pais, Abraham, Einstein viveu aqui, p. 143.
13. Bergson, Henry, cit. Coveney, Peter e Highfield, Roger, p. 187.
14. Faria, José Eduardo, Justica e Conflito, Os juizes em face dos novos movimentos sociais, p. 87.
15. Tocqueville, A, A Democracia na América, p. 185.
16. Popper, Karl, A Lógica da Pesquisa Científica, p. 307.
17. Baroja, Caro, cit. Goytisolo, Juan Vallet de, p. 86.
18. Comte, Augusto, cit. Von Mises, Ludwig, p. 31/32.
19. Comte, Augusto, cit. Canguilhem, Georges, Cahiers pour l'analyse; cit. Descamps, C., p. 88.
20. Freitas, Décio, As ditaduras gaúchas, Zero Hora, Porto Alegre, 1/11/1996, p. 27.
21. Reale, Miguel, Pluralismo e Liberdade.

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