terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A Cientificidade Federalista


O Tejo desce da Espanha E o Tejo entra no mar, em Portugal
Muita gente sabe disso.
Mas poucos sabem qual é o rio de minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.

Para além do Tejo há a América.

E a fortuna daqueles que a encontram.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio de minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos.
Muitos brasileiros, entre os quais me incluo, desejam um Brasil federativo. Somos, teoricamente, “República Federativa do Brasil”, mas não passa de mito. A centralização de poderes e atribuições cresce nas mãos da União, em detrimento da autonomia dos Estados - por conseguinte, dos cidadãos que a compõe. José Celso de Macedo Soares  Federalismo: ações práticas
NA SUPERPOTÊNCIA, hoje é SuperTerça. De que modo ela atinge esse status, esse negócio de tudo ser super, por lá? A Nav's ALL, curiosa como sempre, realizou um tour à cabeceira.
Como criar organizações que continuem vivas? Como criar organizações que não nos sufoquem com seus ditames de controle e obediência? A resposta é clara e simples. Precisamos confiar no fato de que nós temos a capacidade de organizar a nós mesmos e precisamos criar condições que favoreçam o florescer da auto-organização. Whetlay; Kellner-Rogers, Um caminho mais simples: 58
O Fio-de-Ariadne
Naquela Londres pegando fogo, por volta de 1666, John Locke tornava-se médico de Anthony Ashley Cooper (1621-1683), o qual acabou por lhe atribuir a função de assessor-conselheiro. En passant, milhares conhecem Locke. Poucos sabem desse Lord Ashley, deslize histórico, injustiça intelectual. Provavelmente Ashley possuia mais capacidade, mais conhecimento e, pode-se afirmar, trabalhava com menor incidência empírica do que o próprio Locke (Dois tratados sobre o governo: 37): “Devemos os Dois Tratados ao prodigioso conhecimento das questões de Estado adquirido por Locke no curso de seus frequentes diálogos com o primeiro conde de Shaftesbury."
Seis anos após Locke ter começado a lhe prestar serviços, Ashley ganhou este título honorífico, tornando-se Presidente do Conselho de Colonização e Comércio da Royal Society. Shaftesbury discordava do grande Newton, algo que nem Locke ousou. Sua intuição, porém, era forte. Estava, de fato, mais perto da verdade. Einstein e principalmente Max Planck, trezentos anos depois, dariam completa razão a essas suas precoces observações:
Newton é um mero materialista. Em seu sistema o espírito é sempre passivo, espectador ocioso de um mundo externo... há motivos para suspeitar que qualquer sistema que se baseie na passividade de espírito deve ser falso como sistema. (Shaftesbury, carta a Thomas Poole, cit. Brett, R. L., La Filosofia de Shaftesbury y la estetica literaria del Siglo XVIII: 109)
A filha modernizada
 "A importância universal de Locke resulta da circunstância de seu Segundo Tratado sobre o Governo ser recapitulado na Declaração de Independência. O reconhecimento foi expresso por J.Adams, seu segundo Presidente." (Penna, 1997: 230)
Muitos ingleses que emigraram para as colônias conheciam as idéias de Locke. De muitas formas, Locke também passou a fazer parte da tradição política das colônias. Os estudantes das colônia iam para a Europa em busca das universidades, voltavam influenciados por Locke e pelos filósofos iluministas do século XVIII. A política iluminista atravessava o oceano e frutificava na colônia. Karnal: 62
Os americanos ainda balizaram suas ações com a coerente expressão econômica do professor de lógica e filosofia moral da Universidade de Glasgow, Adam Smith, e nas performances de La Fayette (1757-1834), o Herói dos Dois Mundos; do Herói do Progresso, T.Paine; de T.Jefferson (1743-1826), B.Franklin (1706-1790), e T.Price (1723-1791). A inevitável comparação com o simultâneo desenrolar francês (e latino, de modo geral) apresenta formidáveis diferenças. Os imigrantes da Nova Inglaterra agruparam-se em comunidades autônomas, livres mas combinadas, solidárias por opção, a fim de cumprir o marco do Mayflower Compact..

.Mercê da descentralização jurídico-administrativa os americanos surgem no berço já emancipados.Tocqueville (1998: 219) identificou a peculiaridade, distinta da européia e, notadamente, da sulamericana:
O habitante dos Estados Unidos aprende desde o nascimento que deve contar consigo mesmo para lutar contra os males e os embaraços da vida; ele lança à autoridade social um olhar desconfiado e inquieto, e só apela para seu poder quando não pode dispensá-lo.
Hoje podemos conferir: "Quanto mais perfeita a civilização, menos necessidade terá de um governo, porque mais capacidade terá para resolver seus próprios problemas e se autogovernar-se." (Paine, cit.Woodcock, vol.1, 2002: 57)
Ferguson (p. 210) concordaria plenamente: "O poder de descentralização deriva do fluxo de novas idéias, imagens e energia para todas as partes do organismo político. Concentrações de poder são tão antinaturais e fatais como um coágulo de sangue ou um fio elétrico desencapado."
O self-government, a autonomia regional, esqueleto da musculatura do Tio Sam, atende a imensidão espacial, temporal e populacional. É lógico e científico, social e humano. É, enfim e por tudo, vitorioso, malgrado os percalços da Secessão, do aparthaid, da provocada crise de 1929, de temerárias intervenções armadas, e outros defeitos ainda reinantes, bem salientes em sua atual "política externa", uma subversão vocacional levada à cabo por interesses escusos. Esses episódios, todavia, mostram-se apenas circunstanciais, efêmeros, ainda que tal efemeridade custem milhares de vida. São, contudo, identificáveis; portanto, corrigíveis.
Enquanto nos reinos europeus e na América Latina campeava a força para fazer valer os princípios de dominação total, facilitada sua imposição pela disseminação da discórdia e medo dos diabos invocados à docilidade dos pacatos povos, os EUA preferiram fundar seus alicerces no tripé da multiplicidade religiosa e da descentralização, dispensando a figura real. Todos os poderes, civis ou eclesiásticos, políticos ou meramente econômicos, diluem-se nos cidadãos, no tempo e no espaço, fazendo cada participante responsável por seu próprio destino. É a prática, efetiva e radical, das orientações combinadas de Locke, Smith e Montesquieu nas disposições de James Madison, John Jay e Alexandre Hamilton.
Os estadistas organizadores do Federalis Papers, 85 artigos publicados entre 1787/88, conseguiam até desviar a grande restrição colocada por Montesquieu ao exercício democrático. Ao iluminista francês a República só seria viável em pequena dimensão territorial-populacional. (Quando vemos a França dona de dúzia de constituições, para não falar de nosso país, completamente à deriva, e ao verificarmos o estilhaçar da China e da ex-União Soviética, em que pese o esforço desesperado de Putin, que seguramente bem merece ligar seu nome a nada recomendável, tudo coroa o certeiro prognóstico iluminista)
Mably (cit. Bobbio, 1987: 103) reconheceu de imediato a eficácia da solução, e formulou suas Observações sobre o Governo e as Leis dos Estados Unidos da América (1784):
Somente através da união federativa a república, que durante séculos após o fim da república romana foi considerada uma forma de governo adequada aos pequenos Estados, pode tornar-se a forma de governo de um grande Estado como os Estados Unidos da América.
Marquês de Condorcet (1743-1794) (cit. Chevallier, tomo II: 198) também aquilatou:
Sua posição geográfica e seu antigo estado político obrigavam-no a formar uma República Federativa; assiste-se a preparação simultânea, em seu seio, de treze constituições republicanas, tendo por base um reconhecimento solene dos direitos naturais do homem e, como primeiro objetivo, a conservação destes direitos.
Norberto Bobbio, (2001:16) o grande cientista político do século XX, recentemente falecido, reconheceu a importância e a atualidade do método:
O federalismo é o princípio mais profundamente inovador da era contemporânea... Quando se diz que o federalismo marca o rumo da história contemporânea, no sentido de uma efetiva ação de liberdade, significa dizer que o federalismo executa, no âmbito da sociedade civil, o acordo entre o poder central e os grupos periféricos, com um maior respeito às autonomias das partes individuais do que se refere ao todo, e com um menor fortalecimento do todo no que se refere às partes, levando-se em conta o que ocorreu nos sistemas históricos até aqui conhecidos.
A federação é aquela forma de Estado que garante melhor do que qualquer outra a liberdade dos cidadãos, assegurando-lhes uma mais extensa e direta participação do poder, e promove com maior zelo os seus interesses, subtraindo, o máximo possível, o cuidado do setor público a uma burocracia distante e incompetente. (Idem: 24/5)
Fracionado o poder nas três instituições, e estas multiplicadas em vários “pequenos” estados, instalava-se o promissor regime federativo. Tocqueville (A democracia na América : leis e costumes: 69) assim retratou: “São, numa palavra, vinte e quatro pequenas nações soberanas, cujo conjunto forma o grande corpo da União.”
O sistema americano tornava-se mais liberal do que o progenitor: "Os prolongados atritos com as autoridades régias haviam convencido os norte-americanos de que a principal ameaça à liberdade era um executivo sequioso de poder e, desse modo, o papel do executivo foi grandemente reduzido."(Heale: 53)
Spinoza (cit. Bobbio, 1987: 145) antecipara: "Ninguém transfere a outros o próprio direito natural de modo tão definitivo que depois não volte a ser mais consultado; mas o defere à parte maior da inteira sociedade, da qual ele é um membro."
Eis a grande diferença, que tanto encantaria Proudhon: os contratantes "ressalvaram mais direitos, liberdades, autoridade e bens do que aqueles de que se despojam ao formarem o pacto”.
Os norteamericanos retalharam o poder, intrínseca e espacialmente, relacionando-o num sistema de terminologia mecânica - “freios e contrapesos” - porém não estanques, ensejando combinações equilibradas e impedindo o crescimento de qualquer hegemonia, para completa admiração de Tocqueville (1998: 79):

Vejam com que arte, na comuna americana, tomou-se o cuidado, se assim posso me exprimir, de espalhar o poder, a fim de interessar mais gente pela coisa pública. O poder administrativo nos Estados Unidos não oferece em sua constituição nada central nem hierárquico; é isso que o faz não ser percebido. O poder existe, mas não se sabe onde encontrar seu representante.
Mercê dessa combinação poliárquica, dessa divisão do poder ao quadrado, e da compatível e incopnfundível opção pelo livre iniciativa, nosso vizinho de cima atingiu o record de desenvolvimento sócio-econômico, espalhado, de modo incrivelmente homogêneo, pela imensidão de seu território. Tornou-se isento das perniciosas alternâncias ideológicas ou hereditárias experimentadas pela França e alhures, ainda que muito antes da Revolução, em 1768, o europeu tivesse a luz de um Mably (Doutes proposes aux philosophes economistes sur l'ordre naturel et essentiel des societes politiques) para enaltecer a técnica recém burilada por Montesquieu, a partir da formulação inglesa:
Em política, os contrapesos são instituídos não para privar o poder legislativo e o executivo da ação que lhes é própria e necessária, mas para que seus atos não sejam convulsos, nem irrefletidos, apressados ou precipitados. Criam-se dois poderes rivais para que as leis tenham poder superior ao dos magistrados, e para que todas as ordens da sociedade tenham protetores com quem possam contar. Forma-se um governo misto a fim de que ninguém se ocupe só com seus próprios interesses; para que todos os membros do Estado, obrigados a ajustar-se aos interesses alheios, trabalhem para o bem público, a despeito das suas próprias conveniências.
Allons Enfant
Benjamin Constant, no célebre discurso do Ateneu Real de Paris, 1818, portanto há três décadas posteiores à funesta experiêcia da Place de La Concorde, retomou a cruzada para limitar o poder e distribuí-lo. A esperança duraria pouco. O país de Mably, Montesquieu, Condorcet, Proudhon e Constant, infelizmente, também é o de Rousseau, Comte e Descartes. Seu território não tem a extensão dos EUA, mas para pequeno não serve. Para formular a República, o regime federativo lhe é fundamental, mas Napoleão aboliu a chance. Dos sucessores, quem se interessaria em repartir o poder sobre um território tão rico, coração e filet-mignon do mundo?
No Estado centralizado, "‘à sombra da perseguição da gendarmaria, o governo da província, a golpes de telégrafo, faz manobrar oitenta e seis teatrinhos de quatrocentas mil marionetes cada um’. (Cattaneo, cit.Bobbio, 2001: 17)
A sapiência federativa
Estou convencido de que a unica maneira de salvar a paz no mundo será a fundação de uma organização mundial federalista. Albert Einstein*
O poder político norte-americano, tal qual pleiteavam Mably e Constant, foi fracionado não apenas para atender a já consagrada estratégia de freios e contrapesos, vitoriosa há cem anos na matriz. Cattaneo (cit. Bobbio, 2001: 25) traduziu: “A liberdade é república; e república é pluralidade, ou seja, a federação.”
Difuso nos vários estados, o poder chega até as bases municipais por extensões das mesmas bitolas. Nas concepções de Jay e Madison a separação espacial complementa a funcional, indo encontrar o cidadão, para o espanto até mesmo de Weber, o sociólogo mais venerado da Bobonne:
Para um espírito germânico acostumado a supor que a liberdade dependia do exercício do poder do Estado, os Estados Unidos da América, ao contrário, tinham uma mentalidade política segundo a qual a liberdade dependia de uma fuga do poder. Diggins: 40
O próprio Madison justificou: ao incluir uma “maior variedade de partes e interesses” (cit. Merquior: 74) minimizam-se as chances de usurpações do poder. Heale (p.55) comenta a implantação dessa experiência radical, capaz de encantar, além de liberais como Condorcet, Tocqueville, Mably e Constant, esquerdistas, como Proudhon, e até de direita, como Weber:
O Congresso Continental ideou, na verdade, uma estrutura constitucional nacional, os Articles of Confederation (Artigos da Confederação) que acabaram entrando em vigor em 1781. Esses Artigos permitiam que cada Estado mantivesse sua estimada soberania individual, enquanto determinadas funções eram delegadas a um Congresso, constituído por uma só câmara, onde cada Estado tinha apenas um voto. Não havia executivo nacional, e mesmo ao Congresso não se permitia que exercesse muita autoridade. Ele não podia regulamentar o comércio externo ou fixar impostos e, em certas épocas, praticamente não funcionava, pois os governos estaduais freqüentemente o ignoravam e mesmo seus próprios membros muitas vezes tinham melhor coisa a fazer do que comparecer as sessões. Os Estados Unidos continuavam sendo um ajuntamento de Estados individuais, com muito pouco que se assemelhasse a uma sociedade ou governo nacional.
Einstein, (cit. Pais, 1997: 217/8) aparentemente desconhecedor da idéia mestra de Locke e Montesquieu, pode sentir sua importância pela conduta social. Não cansou enfatizar:
Para mim os Estados Unidos se revelaram como um novo mundo de interesse essencial. É um mundo de confraternização, de cooperação, assim como a Europa é de individualismo. Aqui cada homem encontra seu círculo, ao qual pode efetivamente se integrar.
Quanto a nós, desde a queima das bandeiras estaduais, permanecemos encerrados sob a égide de um pretenso comando central, ao gosto dos velhacos que assumiram as rédeas da diligência.
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Aprecie:
A Importância da Relatividade das Leis
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* Folha da Manhã, sexta-feira, 4 de março de 1949.




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