segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A instalação da indústria de leis


Outros - como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e funcionários públicos servem ao Estado principalmente com seu intelecto e, como raramente fazem qualquer distinção moral, estão igualmente propensos a servir tanto ao diabo, sem intenção de fazê-lo, quanto a Deus. Henry David Thoreau (2)
 O "filósofo-jurista" Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798-1857), nosso Augusto Comte, conseguiu transplantar o método de aferição científica consagrado por Descartes, Newton e Rousseau à ciência política. Pela arquitetura ordenativa-normativa, era possível e recomendável balizar as ciências jurídicas, econômicas, sociais e governos, pela contundência de comparações expressadas, como esta, de Descartes:
Tal como uma casa construída por um só arquiteto será mais bela que aquela na qual vários construtores trabalharam, também uma cidade construída por gerações sucessivas não tem tanta ordem como a que foi construída de uma só vez... [ele só não pode conhecer o tédio de Brasília!] do mesmo modo também as ciências, tendo sido construídas pouco a pouco, não possuem nenhuma certeza e não ensinam a ordem verdadeira das coisas. Por isso, seria preciso que alguém empreendesse, de uma vez para sempre, reconstrui-las e pô-las em ordem. (3)
O barro cartesiano, pintado com cores de Platão e as pioneiras proposições de Rousseau, consagradas por Saint-Simon, que lhe foi mestre, formaram lastro e pano da cama elástica onde tomou impulso o “juspositivismo”, o “direito” da imposição:
Descartes nos diz com toda a clareza, na segunda parte do Discurso do Método, que uma legislação que é obra de um só vale mais do que a que foi elaborada por vários através das transformações da história, pois é mais fácil a um só seguir um plano racional e apartar-se das contingências que constituem os hábitos e os costumes dos habitantes do país. (4)
Hitler, Mussolini, Lênin e Napoleão agradecem.
Sorman endossa e aponta a gravidade do rumo tomado pelo trem:
A culpa inicial cabe a Descartes. Ele foi o primeiro a negar a sabedoria inconsciente, persuadindo-nos de que só o que era demonstrável, era verdadeiro. Rousseau substituiu-o, imaginando que não havia leis fora das desejadas pelo homem. Finalmente veio Augusto Comte, que instalou de vez a universidade no positivismo, fez as ciências humanas oscilarem para a sociologia e eliminou todo o ensinamento sério da economia (5)
Não foi mesmo necessário utilizar nenhuma originalidade:
O próprio Descartes esboçara as linhas gerais de uma abordagem mecanicista da física, astronomia, biologia e medicina. Os pensadores do século XVIII levaram esse programa ainda mais longe, aplicando os princípios da mecânica newtoniana às ciências da natureza e da sociedade humana. As recém-criadas ciências sociais geraram grande entusiasmo e alguns de seus proponentes proclamaram terem descoberto uma 'física social'. (6)
Bohr os enquadra com fina ironia:
Qual a diferença entre um especialista e um filósofo? Um especialista é alguém que começa sabendo um pouco sobre algumas coisas, vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos e acaba sabendo tudo sobre o nada. Já um filósofo é alguém que começa sabendo um pouco sobre algumas coisas, vai sabendo cada vez menos sobre cada vez mais e acaba sabendo nada sobre tudo. (7)
Bem serve ao nosso star. A energia acumulada de todos os (pré) conceitos cartesianos lhe obrigou a designar também o nome da especialidade:“Augusto Comte criou, em 1839, a palavra 'Sociologia', formada pela fusão de duas raízes, uma latina, outra grega - 'socius' e 'logos'. (8)  Guiou-lhe Timeu, a obra cosmológico-platônica. Augustinho utilizou justamente as premissas religiosas de que o tempo e o Universo tinham nascido “quando o Divino impôs forma e ordem no caos”. (9)  A presunção espatifa-se no Big-Bang, mas na época, veio a calhar. A tradição e o mito esperavam novel anunciante:
Outro exemplo de Ser Positivo é o 'Deus Organizador', em que a divindade (ou divindades) exerce o papel de controlador da oposição primordial entre Ordem e Caos. O Caos representa o Mal, a desordem, e é simbolizado em vários mitos por monstros como serpentes ou dragões, ou simplesmente deuses maléficos que lutam contra outros deuses em batalhas cósmicas relatadas muitas vezes em textos épicos, como no caso do Eubuma elis dos babilônios. (10)
O ideal do homem, à Sua imagem e semelhança, deveria também “colocar as coisas em ordem”. Então, pela lógica, o homem (o próprio, Comte, como Platão) pôs-se a ordenar as coisas, naturalmente nos termos de sua percepção ou interesse. A tanto, somente a clareza matemática é que poderia calibrar, ordenar as relações sociais em proporções precisas, em progressão, da simplicidade à complexidade, “único caminho capaz de nos libertar do erro e levar-nos ao conhecimento da verdade”. (11) "No decorrer do século XIX, a orientação mecanicista tomou raízes mais profundas - na física, química, biologia, psicologia e nas ciências sociais.". (A. Lemkow 1) No tortuoso caminho, percorrido com tanta escuridão, Comte "enxergou" uma sociedade evoluindo na ordem que entendia natural e explícita: primeiro, o indivíduo subordinado à ordem social; depois, a ordem vital e material, na obediência às tais “leis invariáveis”: “Doravante, em filosofia política, não haverá ordem e acordo possíveis senão sujeitando os fenômenos sociais e todos os demais a leis naturais invariáveis.” (12)
O filósofo embuído de decifrar as leis invariáveis da natureza negava a observação de sua própria essência:
“Nos quadros da Filosofia Jurídica a doutrina positivista se apresenta em oposição as correntes idealistas, especialmente as que sustentam a existência do Direito Natural.” (13)
Comte não poderia mesmo obter guarida em John Locke ou Adam Smith: “Portanto, embora mereçam a mais nobre autoridade, pois são registros dos sentimentos da humanidade em diferentes épocas e nações, os sistemas de lei positiva nunca podem ser considerados como acurados sistemas das regras da justiça natural.” (14)
Reale endossa:
“O positivismo jurídico é o lugar geométrico da mentalidade do técnico ou prático do direito” (15)
Os ídolos de Comte eram esses, os práticos, pragmáticos da estirpe maquiavélica. Bodenheimer cita Thomas Hobbes, assim como Bentham e Austin, como precursores do “positivismo” (16), mas verdadeiramente Maquiavel se antecipou a todos ao professar sua teoria desqualificadora da ética e do direito consensual vigente:
O relato recente da filosofia positiva inicia-se com a análise, na segunda metade do século XIX, da reação ao realismo transcendental, especialmente de Hegel; o antigo, porém, recua ao século XV, com a política prática de Nicolau Maquiavel, ao século XVI, com o método experimental de Francis Bacon e ao século XVII, com o materialismo de Thomas Hobbes. (17)
A quadrilha continua brilhando.
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Notas
1. Lemkow, Anna, p. 86.
2. Thoreau, Henry David, A Desobediência Civil, p. 11.
3. Descartes, cit. Koyré, Alexandre, Considerações Sobre Descartes, p. 44.
4. Perelman, C., p. 363.
5. Sorman, Guy, A Solução Liberal, p. 54.
6. Descartes, cit. Capra, Fritjof, O Ponto de Mutação, p. 63.
7. Bohr, Niels, cit. Pais, Abraham, Einstein viveu aqui, p. 42.
8. Comte, Augusto, cit. Bastos, Wilson de Lima, Nos Meandros da Política, p. 192.
9. "Na linguagem corrente, a palavra "caos" está indefectivelmente ligada à idéia de profunda desordem, aplicando-se tanto a uma disposição espacial quanto a uma situação social perturbada." Witkowski, Nicolas, Ciência e Tecnologia Hoje, por Bergè, Pierre, O Caos, manual do usuário, p. 275.

10. Gleiser, Marcelo, A Dança do Universo Dos Mitos de Criação ao Big-Bang, p. 31.
11. Comte, Augusto, cit. Koyré, A., p. 22/30.
12. Comte, Augusto, Cors. t. IV, p. 310, cit. Japiassú, Hilton, Nascimento e Morte das Ciências Humanas, p. 129.
13. Faria, José Eduardo, Poder e Legitimidade, p. 43.
14. Smith, Adam, Teoria dos Sentimentos Morais, p. 426/7
15. Reale, Miguel, p. 54.
16. Bodenheimer, Edgar, Ciência do Direito, Filosofia e Metodologia Juridica, p. 57.
17. Nader, Paulo, p. 173.

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