quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Futurologia jurídica

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Todo homem possui sua finalidade particular, de modo que mil direções correm, umas ao lado das outras, em linhas curvas e retas; elas se entrecruzam, se favorecem ou se entravam, avançam ou recuam e assumem desse modo, umas com relação às outras, o caráter do acaso, tornando assim impossível, abstração feita das influências dos fenômenos da natureza, a demonstração de uma finalidade decisiva que abrangeria nos acontecimentos a humanidade inteira.
Friedrich Wilhelm Nietzsche*
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HIERARQUIA é um arranjo proveniente de hieros (sagrado), mais arkhia (regra, ordem, provavelmente oriundo da figura geométrica do arco). Por ela eclesiásticos fazem carreira. Não por coincidência, foi mesmo de Roma que veio o trem:

A sociedade grega e romana se fundou baseada no princípio da subordinação do indivíduo à comunidade, do cidadão ao Estado. Como objetivo supremo, ela colocou a segurança da comunidade acima da segurança do indivíduo. Educados, desde a infância, nesse ideal desinteressado, os cidadãos consagravam suas vidas ao serviço público e estavam dispostos a sacrificá-las pelo bem comum; ou, se recuavam ante o supremo sacrifício, sempre o faziam conscientes da baixeza de seu ato, preferindo sua existência pessoal aos interesses do país.(1)
A lógica jurídica, hierarquicamente disposta, visa o efetivo controle social. Analisa o argentino Warat:

Mediante o postulado da racionalidade pressupõe-se um direito positivo coerente, preciso, completo, não redundante, 'decidível' e logicamente derivável. Mediante o dito postulado, concebe-se uma ordem jurídica sem lacunas e contradição, como forma de reassegurar ideologicamente o valor 'segurança'. O direito positivo, segundo as correntes formalistas, seria auto-suficiente, preciso, claro, neutro e, portanto, essencialmente justo. Vê-se também que o direito positivo seria, graças a sua abstração racional, uma técnica de controle social alheia a toda forma conflitiva de interação. Exercitando a racionalidade inerente a essa ordem superior, os órgãos do direito realizariam atos práticos de justiça.(2)
Perelman também assinala:
"O ideal do positivismo jurídico seria uma ordem jurídica tão bem elaborada, leis tão claras e tão completas que, no limite, a justiça pudesse ser administrada por um autômato.”
(3)
A população acredita na certeza e nos altos desígnios dos tais “descobridores das leis”, novos profetas; mas, organizado no racionalismo de integração, “à sua própria segurança e eficiência”, o homem apeia de sua própria verdade, cedendo-a ao condottieri de plantão:
“O que a ciência faz é precisamente mascarar, por detrás da racionalidade, sua função ideológica de justificar o poder, deformar o irracionalismo das relações humanas e dissimular a heteronomia dessas mesmas relações. A racionalidade, como ideologia, ocasiona uma cegueira parcial da inteligência humana, entorpecida pela propaganda dos que a forjam.”
(4)
Para impor a ideologia, o direito positivo solapa direitos individuais:

Racionalização significa a transformação do mundo dominante em nome de um plano racional: a organização construída sobre um método e uma seleção racionais, que é totalmente onipotente Sabemos por experiênciaque o totalitário não é propício à tolerância. (5)
“Ser tolerante seria mais perigoso que ser severo ou cruel, pois as consequências de qualquer complacência derramaria mais sangue e seriam mais devastadoras que a severidade momentânea”. (6)
“Do modo que, a quem examinar com cuidado os acontecimentos do passado, será fácil prever em cada Estado o que o futuro reserva e aplicar os remédios usados pelos antigos, ou se eles não usaram, arranjar novos fundados na semelhança dos acontecimentos.”
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A futurologia
Galileu abrira a picada:
“Galileu partiu da observação de fatos isolados para o estabelecimento de leis rigorosas que permitiam a previsão dos acontecimentos futuros. Em essência é a isso que se chama método científico”.
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Dois séculos depois, La Place especulava a possibilidade de “uma inteligência suficiente suficiente, conhecendo as leis da física e a velocidade e a posição de cada partícula do universo, conseguiria prever seu futuro completo.”
(9)
Einstein, contudo, a fechou:
“Qualquer tentativa de deduzir logicamente conceitos e postulados fundamentais a partir de experiências elementares está fadada ao fracasso.”
(10)
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A chicana positivista
Hegel projetara o historicismo de todo orgânico e, também à maneira de Descartes, dividira o objeto, colocando as partes contrapostas. Augusto Comte descartou um lado desta dualidade. A discordância de Comte com a dialética de Hegel proveio do fato de que, enquanto o filósofo dos contrários solicita a contraposição das facetas e, do produto do choque, estabelece sua lógica, o positivista encarava direto o lado mais interessante da medalha:

A. Comte atribui ao termo 'positivo', entre outras, a função de gerar certeza por oposição a indecisão; quando o emprega como contrário de negativo, Comte salienta que o positivo se destina, 'por sua própria natureza, não a destruir, mas a organizar'. Isto mostra que Comte não leva em conta a possibilidade de um negativismo técnico, tal qual proposto neste trabalho, sem essa carga axiológica pejorativa normalmente associada ao negativo e seus derivados. (11)
O engodo político evolui ao partido de massa, daí guinando ao governo nominativo, pessoal e (i)responsável, intolerante com “inúteis discussões parlamentares”, na ambição una, coerente, mas desmedida e gélida:

Em contraste, o conhecimento positivista relacionava-se a meras utilidades físicas, e carecia de uma associação às crenças santificadas pelos sacrifícios dos ancestrais e pelo culto dos contemporâneos. Dado o seu caráter limitado e concreto, êle era árido, rígido e frio.(12)
Ao superar o idealismo hegeliano pela preconização do realismo positivista, a pretensa exatidão científico-legalista convenceu primeiro os latino-europeus; depois, várias nações a adotaram, gerando uma infinidade de códigos e constituições pelo mundo afora:
“Um desejo de efetividade da lei, no sentido da precisão verbal, foi uma das principais razões para a codificação sugerida.”
(13)
Eugen Erhlich
(14) formula contundente crítica:

Querer encerrar todo o direito de um tempo ou de um povo nos parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma correnteza numa lagoa. Cada um desses códigos estará superado necessariamente pelo direito vivo, no momento em que estiver pronto, a cada dia ainda mais antiquado.
E pensar na infinidade de medidas provisórias nada provisórias, códigos, agências reguladoras, portarias, decretos e contra-decretos, proer, promer, cesta disso e daquilo, fome zero e bolso também, pacs e pocs. Quê sociologia!
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Notas
* Da utilidade e do inconveniente da História para a vida, p.74
1. Toynbee, Arnold J., Estudos de História Contemporânea - A civilização posta a prova, p. 196.
2. Warat, Luiz Alberto, Mitos e Teorias na Interpretação da Lei, p 46.
3. Perelman, C., p. 69
4. Coelho, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito, p. 340.
5. Gallas, Z StW, 1963, cit. Andrade, Manuel da Costa, idem, p. 27.
6. Koselleck, Reinhart, p. 22.
7. Comte, A., cit. Oliva, Alberto, Entre o Dogmatismo Arrogante e o Desespero Cético, p. 83.
8. Galilei, Galileu, cit. em Nóbrega, Clemente, p. 38.
9. Rohmann, C., p. 107.
10. Einstein, Albert, cit. Thuillier, Pierre, Ciência e Subjetividade: O Caso Einstein, in Thomas, Henry e Thomas, Dana Lee, Einsten, perfil bibliográfico: A Vida do Grande Cientista, in Einstein por Ele Mesmo, p. 131.
11. Witkowski, Nicolas, Ciência e Tecnologia Hoje, por Bergè, Pierre, O Caos, manual do usuário, p. 275.
12. Dewey, John, p. 45
13. Leoni, Bruno, A Liberdade e a Lei, p. 155.
14. Erhlich, Eugen, cit. Coelho, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito, p. 286

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