sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A última noite do general


O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Thomas Paine

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-O ELEMENTO da Teoria da Relatividade e da Física Quântica foi antecipado há muito, através do primo canto ecológico: “Foi necessário um esforço revolucionário dele (Spinoza) para se exprimir abertamente um projeto de tratar o homem como 'uma parte da natureza', submetida às suas leis.” (Granger, 1955: 80)
Thomas Paine (ps.57 e 141) portava semelhante desiderato:
"Os direitos naturais são o fundamento de todos os seus direitos civis. Direitos naturais são aqueles que pertencem ao homem pelo fato de existir. Desta espécie são todos os direitos intelectuais, os direitos da mente e também todos os direitos de agir como indivíduo para seu próprio conforto e felicidade, que não são prejudiciais aos direitos naturais dos outros. Direitos civis são aqueles que pertencem ao homem pelo fato de ser membro de uma sociedade e todo direito civil tem como fundamento algum direito natural preexistente no indivíduo. Todas as grandes leis da sociedade são leis da natureza. As leis dos negócios e do comércio, seja com respeito as relações entre indivíduos ou nações, são leis de interesses mútuos e recíprocos. Elas são seguidas e obedecidas porque é do interesse das partes agir assim e não devido a qualquer lei formal que seu governo possa impor ou interpor. Quantas vezes, porém, a tendência natural para a sociedade é perturbada ou destruída pela ação do governo!"

Justamente por prescindir de “comando”, “autoridade”, “tradição”, “revelação”, ou “verdade absoluta”, nossos ancestrais iluministas escapuliram do bitolamento científico-religioso tradicional. Coerente com o espírito libertário e diversa da ciência imperante, esta razão não se criou escrava de dados empíricos eventualmente apurados. Sua verdade não foi apenas produto da “evidência”, muito menos de cálculos, ou da simples fé. A pauta, mais profunda, foi a valorização pessoal, a criação individual como instrumento da mudança, algo do agrado e reconhecimento de ninguém menos do que Albert Einstein (cit. Pais, 1995: 47): “Esta escola deixou-me uma impressão indelével, por seu espírito liberal e a consideração espontânea dos professores, que de maneira alguma se baseava na autoridade externa.” Foi na crítica ao modelo determinista que se produziu o sistema democrático britânico. Locke efetuou legítimo corte epistemológico na ciência política conhecida e praticada a partir do Vaticano, de Maquiavel a Thomas Hobbes, embora não pudesse ter passado por sua cabeça esse encaminhamento científico que Bachelard opera a partir de Einstein. Com efeito, Locke e Montesquieu dividiram os poderes, de modo a que o poder, repartido, não pertença a ninguém: “Porque nasceu como um protesto contra os abusos do poder estatal, o liberalismo procurou instituir tanto uma limitação da autoridade quanto uma divisão da autoridade.” (Merquior: 17)
Porque não restrito o poder a uma individualidade ou mesmo ao todo anônimo? Não seria até mais simples? As dezenas de respostas são óbvias, mas Kelsen (1993: 181) abrilhanta:
"Quanto mais forte a vontade de poder, menor o apreço à liberdade. A negação total do valor da liberdade, a maximinização do domínio - eis aí a idéia de autocracia e o princípio do absolutismo político, que se caracterizam pelo fato de todo o poder do Estado estar concentrado em um único indivíduo, o governante."
Sendo da gente por definição, à democracia cabe proteger o eleitor, não seu eventual representante. Ao intentar ou abusar do poder, cidadãos não só possuem o direito, como também a obrigação de considerar esses atos delituosos esses atos e "delinqüentes seus autores.”
Ao tempo de Aristocles*, (Platão, Górgias, 484 a.C.; cit. Granger, 1955: 36) ele mesmo reconhece, Cálicles empreendera o prognóstico:
"A lei está feita para os fracos dominarem os mais fortes que aí se deixam apanhar. Mas logo que se encontre um homem bem dotado para sacudir, quebrar, rejeitar todas as cadeias, estou certo que, calçando aos pés os nossos escritos, as nossas encantasses, sortilégios e leis totalmente contrárias à natureza, se levantaria como chefe dentro de nós, ele que era o nosso escravo, vindo então a brilhar em todo o esplendor o direito da natureza." O Sol raiou há horas. Já é meio-dia: "Por que a cultura, que normalmente tende a evoluir de forma extremamente lenta, mudou de repente com extraordinária rapidez depois da metade dos anos 60?" (Fukuyama, 2000:83)
"Os guardiães da língua inglesa brigavam devido a questão da legitimidade do inglês negro. Os criminologistas brigavam devido a definição de crime. Os psicólogos discordavam das definições de personalidade. Os psiquiatras foram obrigados a rever a definição de homossexualidade como doença. Os sociólogos começaram a lidar não com problemas de pobreza, mas com a riqueza. Historiadores radicais resituaram as categorias supostamente atemporais de sexualidade, maternidade e inteligência como entidades subordinadas à historia e mutáveis, sujeitas a direcionamentos e influências humanas. Na ciência os ativistas desafiaram as instituições em questões relativas à raça e Q.I., a sociobiologia, preconceito sexual na ciência, o ensino da ciência, o controle da ciência pelas corporações e o envolvimento americano na guerra do Vietnã. A manifestação mais profunda dessa corrente pré-revolucionária nas sociedades ocidentais foi o Maio de 68, na França. Estudantes enfrentando polícia. Uma semana depois, violenta repressão aos estudantes e greve geral dos sindicatos em 13 de maio. Em Saclay, um contingente de 2000 trabalhadores organizou-se para participar da gigantesca manifestação de 800000 pessoas. As faculdades estavam ocupadas. As fábricas pararam. Os trabalhadores ocupavam-nas. Cerca de 9 milhões aderiram às greves. Todos estavam confusos com o estonteante rumo dos acontecimentos." (Schwartz: 310/11)
"Nesse ponto os Estados Unidos estão apenas numa posição dianteira pois, por mais paradoxal que possa parecer, é desde a “revolução cultural” dos anos sessenta que cresce em todo o mundo o repúdio à autoridade governamental excessiva." (Morin, E., cit. Descamps: 102)
"O que começou a aparecer em 1960 foi na verdade o surgimento da corrente de pensamento anarquista acompanhada de movimentos ativistas que surgiram entre os jovens de vários países da Europa e da América. Muitas vezes o nome não era o mesmo; muitas vezes a doutrina acabava diluída por outras correntes de pensamento radical; raramente houve a tentativa de reestabelecer a continuidade com algum movimento do passado. No entanto, a idéia ressurgiu, clara e facilmente reconhecível, em países tão diferentes quanto a Inglaterra e Holanda, a França e os Estados Unidos. Ela conseguiu atrair seguidores numa escala nunca vista desde os dias que antecederam a I Guerra Mundial. Por toda a Inglaterra começaram a nascer grupos dedicados à prática de ação direta e à exploração de uma sociedade sem guerra nem violência e, portanto, sem coerção." (Penna, 1997: 46)
Notre Dame viu De Gaulle “agonizar”, enquanto colegas, pelo mundo afora, iniciavam a debandada. A Sorbonne e o mundo se iluminavam às últimas noites dos generais:
"Parece-me que o processo surpreendente de desafio à autoridade governante está absolutamente de acordo com a atmosfera geral da Revolução liberal no mundo, a Segunda Revolução Gloriosa – que é uma Revolução contra uma classe ou um governo determinado, mas contra a própria idéia de governo e de sistema estatal hegemônico." (Woodcock, 1971: 47)
Depois de três séculos, retornava o futuro; e com ele, as mudanças:
"O ano de 1968 talvez haja constituído um divisor de águas: desde então assistimos ao progressivo refluxo da maré, o qual se acentuou em 1989/91. O século XXI poderá conhecer, após calamidades imprevisíveis - guerras, novas revoluções e catástrofes ecológicas - o princípio da reconstrução da ordem internacional, uma reorganização em escala mundial do Estado de Direito Liberal." (Penna, 1997: 433)
Galopamos estribado na ciência, finalmente desperta:
"Nos anos 70, uns poucos cientistas nos Estados Unidos e Europa começaram a encontrar um caminho através da desordem. Eram matemáticos, físicos, biólogos, químicos, todos procurando conexões entre os diferentes tipos de irregularidades. Fisiólogos encontraram uma surpreendente ordem no caos que se desenvolve no coração humano, a causa da morte súbita inexplicada. Ecologistas exploraram a ascensão e queda das populações de mariposas-ciganas. Economistas desencavaram velhos dados sobre preços de ações. Os insights que emergiram levaram diretamente ao mundo natural - as formas das nuvens, os riscos dos relâmpagos, o entrelaçamento microscópico dos vasos sangüíneos, o ramalhete galáctico de estrelas. (Gleick, James, Chaos, cit. Lemkow: 161)
Carl Rogers, (cit. Ferguson: 59/60) em 1976, reconhecia a vitória desse novo tipo de ser humano que emergia do movimento “autodeterminado”.
Na Bélgica, Ilya Prigogine demonstrara a não-linearidade da evolução sistêmica; Darwin e o método dialético saiam lascados. Na portentosa espaçonave, o também químico James Lovelock descortinava esta Terra viva, auto-organizadora, envolta numa atmosfera aberta, permeada por constante fluxo de energia e matéria, a Gaia. No Chile, Humberto Maturana delineava a auto-organização dos seres vivos, intitulando Autopoiese; e Heinz vo Foerster montava, nos EUA, uma rede de pesquisa interdisciplinar para investigar o universo das auto-organizações. Thomas Kuhn apresentava The structure of scientific revolutions; Roszac detectava a contracultura; Maslow (cit. idem: 54) propunha a feliz analogia:
"É cada vez mais claro que uma revolução filosófica se encontra em marcha. Um sistema abrangente está se desenvolvendo com rapidez, como uma árvore que começa a dar frutos em todos os seus galhos ao mesmo tempo."
Não são raros os atestados:

"O estudo de como surge a ordem, não em conseqüência de um decreto de cima para baixo da autoridade hierárquica, seja política ou religiosa, mas como resultado de auto-organização por parte de indivíduos descentralizados é um dos acontecimentos mais interessantes e importantes de nossa época." (Fukuyama, F., 2000: 18)

“ E o mesmo pode ser dito da maioria dos “direitistas”. Na verdade, quase todas as pessoas, não importando seus credos políticos, vêem o futuro como uma simples linha, reta, um prolongamento do presente. Acho que a eles está reservada uma grande surpresa. Chegamos ao fim de uma era - e nesse ponto todas as apostas são suspensas.” (Toffler, A. Previsões e Premissa, p. 96.)

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* Nome verdadeiro de Platão

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