terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O apagão do Iluminismo

A racionalidade, como ideologia, ocasiona uma cegueira parcial da inteligência humana, entorpecida pela propaganda dos que a forjam.Luiz Fernando Coelho 1
Os mestres-escolas da França são especialistas em pancadaria. Quando questionados a respeito, respondem que aquele povo, tal como dizem dos frígios, só se corrige a pauladas. Erasmo de Roterdã 2
A Inglaterra gerou ao mundo a luz de Locke. A França preferiu apagá-la, com Rousseau:
Portanto, ninguém deve se tranquilizar pensando que os bárbaros ainda estão longe de nós, porque, se há povos que deixam arrancarem-lhes das mãos a luz, outros há que a apagam, eles próprios, sob seus pés. Tocqueville, 2000: 54
Monumento a Jean-Jacques Rousseau, no museu do Louvre, ' homenagem a um dos maiores pensadores europeus no século XVIII'. atuleirus.weblog.com.pt/arquivo/2005/0
Compreende-se: saque, violência e morte desesperavam a gente do passo. Tal qual manada, ou matilha, ela deveria permanecer unida, dificultando predadores ou dividindo carniças. Qualquer alienação era preferível ao terror, sacrifício à sobrevivência, nem que fosse pela guarida de Maquiavel e, ultimamente, de Thomas Hobbes, os retransmissores de Platão. À picada grega, liberdade rima com falta de educação:
No que se refere aos animais mantidos pelos homens, ninguém que não o tenha vivenciado acreditará quão mais livres e insolentes são eles aí do que em qualquer outra parte. Conforme diz o provérbio, as cadelas são como as donas, e vê-se ainda como até cavalos e burros estão habituados, conscientes de sua liberdade e dignidade, a avançar a passos largos e embater contra todos que se encontram na rua, caso não se desviem. E todo o restante encontra-se repleto da cara liberdade.
(Platão, cit. Kelsen: 465)
O relativista sistema de Direito Natural, a filosofia de Locke, Spinoza, Lessing, Adam Smith e Montesquieu “servia apenas de invólucro”, moldura “para inglês ver.” A fim de “refrear o homem lobo do homem”, mister aquele outro tipo de contrato, (?!) no qual cada subscritor concordasse em renunciar ao direito de governar a si mesmo. Só um “pacto” cujo contratante deixava de sê-lo (?!), para se entregar nas mãos do contratado, seu novo gestor, tonificado e reinvestido de um poder soberano ainda maior do que o dos antigos reis, porque montado numa força proveniente da soma dos poderes de todos, e não mais apenas na genealogia real, por isso competente a tudo julgar depois de impor sua concepção (interesse), à paz (guerra) de todos e comum defesa (ataque), é que poderia “salvar” a população. O povo se viu governante por afogar vontades individuais; e presumia sobrepor-se ao próprio titular quando exigia suas disposições utilitaristas, de moral, política e valor econômico com a abstrata bandeira do bem-comum e necessidade geral. De todo o modo, observara Montesquieu, "para o homem que nada tem, pouco se lhe importa, sob certos aspectos, em que governo ele vive." (Montesquieu, 2002: 91)
O coletivo francês e seu correspondente científico - o determinismo cartesiano - vieram embalados com a força desse insígne tripulante, conhecido “inimigo na trincheira” do Grupo Enciclopédia, “peso pesado” de fama mundial, freqüentemente tomado como “iluminista”, mas que se fez como um dos maiores “corta-luzes”, quiçá principal responsável pela confusão que ainda perdura no conceito de democracia, ensejo às ditaduras que se multiplicam, desde então, pelo mundo afora. As aventuras megalomaníacas tem tudo a agradecer ao excepcional sofista. Sua filosofia: a “lógica” político-matemática. Seu nome: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Desde o início assemelhado a Maquiavel, e especialmente Hobbes, o franco-suíço veio com sua vida pautada pelo desastre. As patologias lhe foram equivalentes:
“Rousseau alude expressamente ao medo da morte que, como em Hobbes, domina o homem. À natureza, diz, compele o homem usar todos os meios à disposição para escapar da morte.” 3
Tal qual Hobbes, já no nascimento Jean-Jacques convivera com a morte – também sua mãe era sacrificada. Adulto, o órfão só fracassou. Ao pregar sublimes reformas educacionais, abandonava os filhos num asilo de enjeitados. Via-se livre para praticar os atos pouco recomendáveis:
O verdadeiro erro de J.-J. Rousseau não foi o de ter entregue cinco crianças às Crianças Abandonadas; foi o de se ter deixado preceder, para manifestar esta verdade, pelo libelo anónimo, injurioso, que Voltaire escreve sob o título O Sentimento dos Cidadãos (1765): o tumulto provocado na alma de Rousseau leva-o à redacção das Confissões. Por isso ele é mais sincero do que nunca ao contar – escrever – o roubo da fita da pobre Marion e o silêncio que dá origem à expulsão injusta, mais sincero que nunca ao dizer – escrever – que chegou a negar o ter tido filhos.
(Devaneio, 4 Caminhada).
A pobre Marion lhe servia para tudo:
"Descobriu-se que Rousseau estava de posse de uma fita que roubara da patroa. Essa dama, consideravelmente mais velha do que o jovem leviano, foi para ele simultaneamente mãe e amante. " (cit. Châtelet, vol. II: 271)
Historiadores o qualificam:
"Caráter volúvel, inconstante, deixou o calvinismo e se tornou católico; mais tarde, voltou ao calvinismo. Sua vida é uma longa cadeia de romances, cada qual mais descontrolado e superficial." (Russell, 2001: 338)
Em Èmile, (Perelman: 331/2), o atormentado propôs o que lhe atenuava a consciência, “a teoria aberrante segundo a qual não convém ensinar as ciências à criança: esta deve descobri-la por seus próprios meios.”
"Por seus próprios meios" Rousseau só aprendeu bobagens. Os doze anos decorridos entre 1744 e 1756, época em que Rousseau viveu em Paris, permitiram-no estreitar ligações com o círculo da Enciclopédia, mas não lucrou com o convívio: a infausta estadia serviu apenas à clarividência de que não afinava com o grupo. Optou combatê-lo, opondo-se especialmente a Voltaire, depois de enviar ao corrosivo articulista o Discurso sobre a Desigualdade dos Homens, um edifício de asneiras, nas quais fulgura o decreto que o livrava de qualquer compromisso:
"O homem que pensa é um animal degenerado."
(Santos, Francisco de Araújo, Voltaire tinha razão – Os avanços tecnológicos não são a causa do desemprego, in Zero Hora, Porto Alegre, 27/01/2001)
O sagaz ativista rebateu com a picardia:

Recebi, meu prezado senhor, seu novo livro contra o gênero humano; muito obrigado. Nunca foi usada tanta inteligência humana para nos reduzir a meros animais; a gente tem ganas de se jogar de quatro patas depois de ler sua obra. Entretanto, como já há mais de sessenta anos perdi esse hábito, sinto que é infelizmente impossível readquiri-lo.
(Idem, ibidem.)
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NOTAS
1. Coelho: 340
2. De Pueris, p. 70
3. Euvres Complète, II, 346, diz: “...uma vez que, de todas as aversões que a natureza nos dá, a mais forte é a de morrer, decorre daí que tudo é permitido por ela a qualquer um que não tenha outro meio possível de vida” (Koselleck: 146)

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