sábado, 16 de fevereiro de 2008

O eclipse da Ciência

No começo do século XVII, os matemáticos e astrônomos jesuítas do Collegio Romano eram reconhecidos entre as mais altas autoridades científicas. Augusto Forti* 
O MAIS LONGO ECLIPSE ainda produz sombra à Terra. O evento começou na singela premissa: "O prestígio das matemáticas vem-lhes do facto de a afirmação excluir nelas a própria possibilidade de controvérsias: a partir de agora, serão as matemáticas que irão fornecer a unidade na medida de todas as ciências." (Morin, 2000: 128)
Na equação E=Mc2, as letras ganham dos números por 3x1, mas esta vitória só veio depois de milhares de calamitosas derrotas. Talvez pelo costume, poucos se dão conta.
Naquela época, (e até hoje!?) divagações nada resolviam. Era tecnè, a técnica, a aplicação do conhecimento que passava a importar. De onde provinha, e para onde se dirigia, não vinha ao caso. Por dois mil anos o trem foi carreando passageiros, em todas estações, até chegar ao despenhadeiro.
* * *
Useiro crítico de Aristóteles, não por coincidência nascido na região de Maquiavel, Galileu Galilei (1564-1642) mostrava a certeza dos cálculos, a “revanche de Platão”. (Japiassú,1997: 81) (A "decisão", então, porque a revanche o grego já ganhara com Maquiavel). Mas tomemos a ficha do novo craque:
"Deixou Pisa em 1585 sem qualquer diploma, mas rico de uma cultura adequada ao ideal de erudição humanista. Nutrira-se dos diálogos de Platão e meditara no isocronismo das oscilações do pêndulo."(Alquié:7)
O know-how pirateado acabou com a intimidade da lua:
"Galileu foi o primeiro cientista a ter idéia de usar um telescópio para examinar o céu noturno. Em 1609, depois de saber que 'um certo holandês' (1) inventara um instrumento que ampliava as imagens distantes, ele construiu seu próprio telescópio." (Morris: 146)
Hawking (1992: 19/20) foca o instante:
O sopro da morte atingiu a teoria aristotélico-ptolomática em 1609. Neste ano Galileu começou a observar o céu à noite, através de um telescópio, que acabara de ser inventado. Ao focalizar o planeta Júpiter, Galileu descobriu que se fazia acompanhar de vários pequenos satélites, ou luas, que giravam a sua volta. Isto implicava que nada precisava necessariamente girar em torno da terra, como Aristóteles e Ptolomeu haviam pensado.
O môfo resgatado contaminou a humanidade:
"Trata-se de uma revolução que, além de derrubar a ditadura de Aristóteles, arruína completamente, através da luneta astronômica, o dogma da incorruptibilidade dos corpos celestes." (Japiassú, 1997: 58)
O câmbio paradigmático restringiu a ciência; e subverteu a democracia:
O método de Aristóteles era qualitativo. Recusando as idéias pitagóricas sobre a importância da matemática, ele não se deu nenhum conteúdo numérico preciso a suas explicações e se concentrou unicamente na interpretação conceitual dos fenômenos, em particular nas causas da mudança, a própria ausência de mudança não lhe parecendo exigir explicação particular.
(Ben-Dov: 15)
Receoso de repetir os destinos de Giordano Bruno e de Copérnico, aquele executado e este desmoralizado, Galileu se recusava a expor as novidades, fato que gerou um pedido especial de Johannes Kepler (1571-1630).
Galileu, bem o sabemos, acabou cedendo. E Discorsi e dimonstrazioni matematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla meccanica (2) inaugurou, oficialmente, a era mecanicista.
Ao invés da fita cortada, entretanto, tivemos cabeças; e sobreviventes mantidos em pesadas correntes, já há três séculos, atados pés, mãos e cérebros.
O mentor permanece ileso:
"É interessante registrar que tanto A. Koestler (Os sonâmbulos) quanto P. Feyrabend (Contra o método) propõem um novo 'processo Galileu', no qual a ciência perde um mártir para ganhar um fabulador e um intrigante inescrupuloso." (Japiassú, H., A revolução científica moderna: 110)
O genuíno estigma vinha para tomar o lugar das “lendas” filosóficas, políticas e religiosas:
"A física de Aristóteles quase não tinha necessidade da matemática. Em contrapartida, Leonardo da Vinci reconhece que 'nenhuma investigação humana pode ser chamada de verdadeira ciência se não passa pelas demonstrações matemáticas’. " (Idem: 71)
Esta “verdadeira ciência”, lambuzada de preconceitos, constituiu-se como guia e fim, razão e justificativa à metafísica:
"Traço provavelmente pitagórico, a oposição do par e do ímpar desempenha ainda um papel essencial na concepção acadêmica do número, como aparece em diferentes texto platônicos, e em particular no Górgias." (Granger, 2002: 29)
As formas platônicas, os desenhos mentais, destinavam-se “a fascinar os próprios matemáticos que as evocavam.” (Giorello: 53)
A idéia é originalmente devida a Platão, que, sem dúvida influenciado pelas concepções pitagóricas, foi o primeiro a afirmar que o círculo, cujas partes são todas iguais entre si, é por essa razão a mais perfeita figura geométrica, e, portanto, como os corpos celestes são eles mesmos perfeitos, o único movimento que lhes é possível é o movimento circular uniforme. A tarefa dos astrônomos a partir de então foi construir um modelo matemático que explicasse os dados observacionais da astronomia, e no qual os planetas seriam dotados de movimentos circulares uniformes.
(Ben-Dov: 19)
Astrônomos e todos adotamos o mico:
"Seja qual for, de resto, a validade desta tese geral ela é verdadeira para o século XVI. Que tudo abalou, tudo destruiu: a unidade política, religiosa, espiritual da Europa; a certeza da ciência e a da fé; a autoridade da Bíblia e a de Aristóteles; o prestígio da Igreja e o do Estado. (Koyré, 1986: 25)
O conhecimento anterior fora disseminado por inconsistentes palavras; agora, cabiam aos iniciados a promoção do novo tom:
A ciência ocidental tornou-se matematizada. A linguagem matemática da ciência, que causa tanto desânimo ao leitor de outras áreas, implantou- se como resultado do conflito entre as visões de mundo eclesiástica e leiga e seu propósito era justamente causar o afastamento do público comum.
(Schwartz: 18)
Números possibilitam mais segurança, tornam as atividades concretas, lógicas e práticas; compõem os elos da ciência, na qual a matemática é o cimento, é a garantia de sua coerência, é a defesa segura contra qualquer tentativa de acolher, “com distorções de palavras”, proposições de variadas e incompatíveis procedências:
"Em geral, nos séculos XVI e XVII estudou-se a matemática com uma indiferença helênica e tendeu-se a ignorar aquelas ciências que haviam sido rebaixadas por sua ligação com a bruxaria." (De Masi, 2001: 65)
Expulsa a bruxa, Belzebú tomou conta do salão.
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Notas
* Cit. Mayor: 36
1. Hans Lippershey
2. Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências, publicado em Leida, três décadas após. (1638)

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