sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A expressão do atraso

Vivemos sobre uma civilização. A cada escavação do metro ou abertura de poços descobrimos uma relíquia. A antigüidade nos enriquece, mas em certo sentido nos impede de viver. - Vassalis Vassalico (1)
O conceito científico do tecido do universo tem de mudar. A recém-confirmada teoria de Einstein exigirá uma nova filosofia do universo, uma filosofia que vai varrer quase tudo o que se tem aceito até agora. (Fabric of the Universe. - The Times de Londres, editorial de 7/11/1919)
“A palavra 'poder', pelo tratamento que lhe dá a ciência política, virou eufemismo para dissimular o fato da 'dominação'.” (2) As massas foram facilmente conduzidas pelos bretes positivistas:
Na euforia do racionalismo, se desvinculou perigosamente o Direito Positivo de quaisquer outros compromissos com valores fixos e imutáveis, passando tudo a depender das maiorias eventuais, comprovadamente volúveis e supostamente representativas da fonte de sabedoria, que é o povo. (3)
Maiorias eventuais, não poucas vezes, vem arranjadas por fraudes. O jornalista, editor e político das décadas de 50 e 60, ex-governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, lembra de vários instantes perdidos, propícios ao aperfeiçoamento e fortalecimento de nossas instituições democráticas. Fulguram os episódios da liquidação de um dos maiores pesquisadores humanistas que tivemos o privilégio de contar. Por ironia, a Águia de Haia acabou trucidada pela rapinagem:
No segundo decênio deste século, num Brasil que perdeu o pulo da passagem do séc. XIX para o XX, surge como expressão das oligarquias dominantes, a candidatura do marechal Hermes da Fonseca; e como reação liberal e progressista, a desse grande rejeitado que o Brasil tantas vezes usou quantas desperdiçou, Ruy Barbosa. Naturalmente, venceu Hermes da Fonseca, pois a eleição era uma ficção jurídico-política. Algumas dezenas de pessoas - se tanto! - conduziam a nação e decidiam do seu destino. O povo não participava do processo, senão como mera figura retórica. A Ruy ficou-se devendo o serviço de criar, por assim dizer, uma opinião pública atuante. Através de estados de sítio e habeas-corpus, de peregrinações cívicas, palmas e perigos, ele começou a mobilizar a consciência coletiva. E se o acusam de tê-la inventado, ainda é maior o seu mérito. Pois o homenzinho valeu, sozinho, por toda uma comunidade incapacitada para o uso da razão. (4)
Antes havia aportado o barco positivista-baconiano, ao embarque de pragmáticos juristas, economistas, políticos, educadores, interessados de todo o matiz. Valorizaram-se escolas militares, politécnicas, faculdades de Engenharia. As faculdades de Direito, de Filosofia, de Economia logo abriram os portões. Nos corredores, ecoava o canto heróico e entusiasta, refrão de Comte:
A República está próxima. E não há como resistir. As sociedades obedecem ao influxo de leis tão exatas, precisas e invariáveis como as que regem os fenômenos transformadores do mundo físico. É que os fenômenos sociais estão sujeitos às leis naturais, como os fenômenos físicos. É que há uma física social. (5)
O primeiro ato da “física social” arrasou Canudos. Não havia razão resistente à espada:
“O movimento que destruiu a monarquia brasileira não passou de um processo de institucionalização jurídico-político de forma republicana de governo através de golpe militar”. (6)
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Um pavilhão à serviço dos marechais
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Os EUA, representam as independências dos estados nas estrelas, as quais se projetam pelas harmônicas, estáveis e contínuas linhas vermelhas. Traduzem, por esta notável arte, o equilíbrio e a estabilidade de sua democracia liberal, sob o regime federativo.
No nosso, a hierarquia imperial exige comando supremo, a centralização. Mister um desenho que a exprima. Assim trocamos a cópia americana da bandeira provisória da República dos Estados Unidos do Brasil por uma geometria remetente ao centro, onde foram alojadas as estrelas. Isso, para um povo ignorante de tudo, imagine da arte, era muito pouco. Então, com indisfarçável orgulho, no “lábaro estrelado”, foi impregnada a presunção científico-militar, mais vontade do que afirmação, de que só a ordem trará o progresso, o que pressupõe ser a ordem unida a operação mais adequada à felicidade. Marchamos em ordem, ao progresso; só não se sabe de quê, ou à felicidade de quem. O dístico chega a ser cunhado na borda de moedas do real, as de cinqüenta centavos, algumas das quais, trazidas ao conhecimento público por acaso, foram imprimidas com a mensagem “Orcem” e Progresso, erro ou blague que induz supor que devamos efetuar a navegação da vida orçando... só não se sabe para que lado.
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O gênio
O “adaptador” do original “Ordre et Progrès” presidia o “Apostolado Positivista no Brasil”. Raymundo Teixeira Mendes era o nome do artista, muito usado para denominar ruas em diversas capitais. Por causa dessa excelência, a bandeira, tão habilmente desenhada, nasceu privada do céu noturno integral e as estrelas, ofuscadas pela presença intrusa da faixa imperativa. Desse modo “ciência” “intervém” na natureza... tapando-a parcialmente, numa ex(im)posição tão ridícula quanto inóqua, atestado de ignorância científica, certamente motivo de chacota entre pesquisadores mais atentos. Se acaso cores e desenhos são usados para distinção das formações nacionais, porque se faz ainda necessária a explicitação? E por que em português? Não seria o inglês, pelo fato de ser o idioma mais conhecido pelas outras nações, mais próprio para nos identificar? Tiradentes não preferiu seu lema em latim, porque internacional? As perguntas são várias, mas a resposta é unica: a mensagem serve, não para identificar a Nação brasileira, mas para represá-la, na base supostamente cientifica justificante de toda a sorte de golpes armados, trapaças, fraudes, eleições legitimadas por milícias e sustentadas por arapucas jurídico-econômicas.
Não por acaso, o deputado Wenceslau Escobar apresentou, já em 8 de junho de 1908, portanto há exato século, um novo projeto de alteração, com a supressão da faixa e do lema. Como se vê, o pleito foi arquivado. Na constituinte de 33, várias sugestões foram oferecidas, mas para a ditadura, nenhuma poderia ser mais eficaz do que o dobrado francês. Ora na faixa, em lugar da concepção de Comte, são usados todo o tipo de mensagens de marketing, a começar pela recente conclamação Avança Brasil, e até pela inserção do número 0800612211 para ligações gratuitas ao Senado. Isso mesmo – em lugar do lema, o pavilhão nacional também portou número!
Em qualquer país, a adulteração de símbolo oficial, ainda mais a bandeira, não se precisa nem vetar... mas o que significa um pavilhão a governos atolados em negociatas?

Aprecie:
A instalação da república positivista no Brasil
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Notas
1. Co-autor do filme "Z". - O Estado de São Paulo, 9/12/1995.
2. Coelho, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito, p. 133
3. Boaventura, Jorge, O Estado de São Paulo, 29/4/1996, p. A2.
4. Lacerda, Carlos, Em Vez, p. 30.
5. Castilhos, Julio, cit. Flores, Hilda Agnes Hubner, Revolução Federalista, p. 18.
6. Weffort, Francisco Correa, Por que Democracia, cap. I; cit. Coelho, Luiz Fernando, Teoria Crítica do Direito, p. 345.


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