sexta-feira, 7 de março de 2008

Mill e o hocus pocus* utilitarista

Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelhas, mas por dentro são lobos rapaces. Pelos seus frutos os conhecereis. S. Mateus (1)
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Um saco de batatas consiste de uma certa quantidade de batatas enfiadas dentro de um saco. Karl Marx (2).
JOHN STUART MILL (1806 1873) foi um filósofo e economista inglês, um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX. Foi um defensor do utilitarismo, a teoria ética proposta inicialmente por seu padrinho Jeremy Bentham.
Esta definição colhi na valiosa Wikipédia Trata-se, contudo,  de grave equívoco, ainda que muito comum, confusão levada a cabo até mesmo por diletantes liberais. Liberalismo não casa com utilitarismo. São antíteses. Ademais, o padrinho escolhido oferecia um caráter em nada recomendável : "Há cem anos, viveu um filósofo chamado Jeremy Bentham, universalmente conhecido como um homem muito perverso." (Russell, 2008:103) Ambos formaram uma assombrosa dupla, e seus efeitos pirotécnicos ainda são divisados, e assim, por facilmente copiados, configuram uma progressão atômica de difícil reparação:
Stuart Mill tratava os indivíduos com a mesma crueldade socializante com que os termitas a certos de a certos de seus congêneres, os quais cevam para depois chupar-lhes a substância. ORTEGA Y GASSET, J., A rebelião das Massas: 12
A gravidade assume maior proporção quando examinamos fontes e acões dos menos intelectualizados, e mais políticos, portanto pragmáticos. O oportunismo do utilitarismo Mill pai possuia um cabide na Companhia Inglesa das Índias Orientais, mas isso nem seria tão decisivo, não fosse John depender do mercantilismo desde o nascimento, e logo provar o fruto do positivismo. (Por esta altura lê Comte; a influência da chamada filosofia positiva faz-se sentir, informa Wiki.) Em 1856, ele próprio assumiu a direção daquela companhia mercantilista, cargo em que permaneceu por dois anos, até a extinção do empreendimento.
O pragmatismo lhe é fundamento e objetivo; e o reformismo social vem a calhar, marcando não só sua produção teórica, mas principalmente sua atuação. Por oportuno, saliente-se que Mill de fato tomou conhecimento das obras liberais, em especial das proposições de Tocqueville; entretanto, evidentemente, nada disso lhe convinha.
Visando aplacar a superversão, este formidável desvio de interpretação epistemológica, a Nav 's ALL reestabelece a rota que lhe é apropriada.-
A balbúrdia bretã
Salve bravos carregadores,
'Mais longo o trabalho, maiores favores',
Sem ânimo ou vontade de sorrir,
sempre duros de cabeça e braço,
de originalidade nenhum traço
Sans géni et san esprit 3
A Grã-Bretanha acendia o estopim da Revolução Industrial, momento fértil ao plantio da discórdia, circunstâncias que corroboravam funestos prognósticos. O utilitarismo colheu o ensejo e fez-se plataforma à decolagem marxista. A Poor Law (Lei dos Pobres), o movimento cartista e orquestradas manifestações sindicais espelhavam a impetuosidade das ambições, numa divulgação em massa à vulgarização da trapaça. Passava a ser quase um crime nascer em condições favoráveis, diante da sorte que a outros deserdava, condenando-os ao trabalho. O pathos significava lograr a felicidade para o "rebanho", na promessa de segurança, muito pasto-verde e bem-estar para todos, não só aos aristocratas. "Compaixão pelos que sofrem", diziam, como se o sofrimento da civilização fosse circunscrito à matéria inerte, e destarte pudesse ser banido pelo passe-de-mágica proposto. Enalteciam as virtudes do bem-comum, quando se sabe, justamente, que ao se tornar comum qualquer bem perde o valor. Todavia, oportunistas, demagogos e diletantes captavam simpatias; e as direcionavam aos seus interesses:
Nas décadas de 1830 e 1840, na Grã-Bretanha, certos parlamentares da aristocracia e da classe média tomaram a seu cargo a articulação de interesses das classes trabalhadoras. Nesse caso, eles não estavam respondendo a pressões e demandas encaminhadas de baixo, e sim agindo como guardiães independentes e voluntários desse interesses negligenciados ou suprimidos.
Almond, G. e Powell Jr, G.: 60
Entre aqueles intelectuais dourados progressistas, sobressaiu-se o futuro deputado inglês John Stuart Mill. Von Mises compreende o cruzador dos séculos:
O principal erro do pessimismo tão alastrado é a crença de que as idéias e as políticas destrutivas de nossa era emergiram do proletariado e são uma 'revolta de massas'. Na verdade, as massas, precisamente por não serem criativas e não desenvolverem filosofias próprias, seguem líderes. As ideologias que produziram todos os danos e catástrofes de nosso século, não são uma façanha da turba. São proezas de pseudo-intelectuais e pseudo-estudiosos. Foram propagandas das cadeiras das universidades e dos púlpitos; foram disseminadas pela imprensa, pelos romances, pelo rádio. Os intelectuais são responsáveis pela conversão das massas ao socialismo e ao intervencionismo. Para reverter o processo, é preciso mudar a mentalidade dos intelectuais. Então as massas os seguirão. (4)

Táticas
Na moda reducionista, da capo tentou voar pelos ares da Psicologia, articulando um estudo sobre os movimentos da mente conforme as orientações de Descartes.
Whitehead evidenciou o empirismo, a manipulação e a falseabilidade das presunções:
Nessa doutrina as volições são determinadas por causas e as causas expressas em termos de condições, incluindo tanto estados de espírito como estados físicos. A doutrina de Mill é geralmente aceita, em especial entre os cientistas, permitindo, em certo sentido, que nos conduza à doutrina extremista do mecanicismo materialista por lhe ter atenuado as suas conseqüências inaceitáveis. (5)
Inaceitáveis foram as consequências dessas teorias.
Mill elaborou suas sugestões com duplo matiz. Sofria, claramente, da moléstia platônico-cartesiana-hegeliana-malthusiana-darwineana:
Nenhuma comunidade jamais conseguiu progredir senão aquelas em que se desenvolveu um conflito entre o poder mais forte e alguns poderes rivais; entre as autoridades espirituais e as temporais; entre as classes militares ou territoriais e as trabalhadoras; entre o rei e o povo; entre ortodoxos e os reformadores religiosos. (6)
Do lado que lhe trouxe a fama de democrático-liberal, Mill propugnava a não intervenção do Estado nas escolhas individuais; por outro, concedia razão aos métodos empírico-dialéticos para apuração de resultados supostamente éticos como produto das constantes antagônicas:
O hábito persistente de corrigir e completar sua própria opinião pela confrontação das alheias, longe de causar dúvida e hesitação pela sua prática, é a única fundação estável para nela se depositar justa confiança. Sobre cada assunto em que uma diferença de opinião seja possível, a verdade depende de um equilíbrio situado entre os dois conjuntos de razões conflitantes. (7)
Mil propunha a falsa dicotomia para sua real mordomia.
A escassez prenunciada por Malthus e depois por Bentham a todos alarmava. Arrisco a mencionar que ambos foram prioritários em todos os estudos da época, até porque presentes nas cercanias. A biografia de Mill, elaborada já em 1873, foi enfática - ele não ficou imune:
“O princípio da população de Malthus era tão forte como uma bandeira e como ponto de união entre nos utilitaristas quanto a proposta associada a Bentham.” (8)
Embora rejeitasse em parte a máxima de Maquiavel, ressalvando que os meios deveriam ser adequados para a consecução dos fins, Mill, como Platão, foi buscar na ignorância as justificativas totalitaristas, sempre tirânicas:
“O despotismo é uma forma legítima de governo quando se está na presença de bárbaros, desde que o fim seja o progresso deles e os meios sejam adequados para sua efetiva realização”. (9)
Kadafi e Chávez agradecem a compreensão.
Sedento da utópica justiça e com a vocação deísta, o discípulo sugeriu a afamada aplicação da “justiça social” através de método legislativo. Usando sofismas da Economia, ele mirava entortar o Direito. A “justa” distribuição dos “escassos” bens, essencialmente primários, por sua pena virava produção legislativa, “positivismo balanceado” capaz de reformular as relações econômicas, esteio a formulação que seria encaminhada quase concomitantemente por Marx.
Stuart Mill aproximou-se de modo muito nítido das correntes de pensamento socialista e intervencionista. Essa evolução se processou paralelamente no plano filosófico e no econômico. Ao passar da filosofia utilitarista à filosofia de Augusto Comte e de Saint Simon, passara também do liberalismo ao intervencionismo e ao socialismo. (10)
Temos, portanto, o flagrante equvoco que o coloca na prateleira liberal.
Argumentos
“Em Um Sistema de Lógica (1843) Mill propôs um método sistemático de experimentação e raciocínio indutivo:"Em defesa da declaração de Augusto Comte de que o estudo científico da sociedade é possível e válido, procurou classificar todo o saber com bases empíricas.” (11)
Repetindo Comte, o Aristóteles da Era Vitoriana tomou o caminho do labirinto julgando poder elucidar e anunciar o portão da salvação pelo rastro das ciências naturais. Einstein o detonou:
Mill acreditava que a natureza era uniforme e previsível, de modo que um incidente isolado podia se repetir em circunstâncias similares. Nas discussões com os amigos, Einstein discordava enfaticamente: ‘Não existe nenhum método indutivo que nos leve aos conceitos fundamentais da física. A incompreensão desse fato constitui o erro filosófico básico de muitos investigadores do século XIX. (12)
Como Comte e depois Marx, Mill pensava poder se adonar da verdade. Nas questões de preços, que são relativos, o aristótélico-platônico o que fez foi confusão:
“Nada mais resta nas leis do valor a ser esclarecido por qualquer escritor atual ou do futuro.” (13)
Os Princípios de Economia Política, do fatídico 1848, instantes também de Marx, Darwin e das revoltas generalizadas em toda a Europa, tinham esta "pequena" meta - ser o encerrante das discussões.
As “despreendidas” palavras, aparentemente lógicas, refletem a presunção:
Embora as leis e as condições de produção da riqueza possuam mesmo caráter das verdades físicas, a distribuição é apenas uma questão de instituições humanas. As coisas estando disponíveis, a humanidade, individual ou coletivamente, pode fazer com elas o que quiser. A sociedade pode sujeitar esta distribuição de riqueza a quaisquer normas que ela invente. (14)
Stuart Mill só não conjeturou quais são as verdades físicas, o significado de riqueza e o que a gera, mas conseguiu seu furor.
Conseqüências
Ao se deixar contaminar, a grande ilha sofreu o tal Movimento Cartista, liderança do irlandês Feargus O’Connor, acompanhado de “barbudos vestidos com jaquetas de fustão”.
O pano de fundo, amplo e “democrático”, à la Rousseau, projetava agitação pela Carta do Povo, a fim de macular a Carta Magna com artifícios semânticos para reparação dos males apontados pela contabilidade social. A lei maior deveria se adequada positivamente; e, diante da popularização, encaminhada por demandas sindicais. “As letras de ouro bordadas sobre o veludo” (15) deveriam sofrer adição social, trabalhista.
De plano, David Ricardo
(p. 61) pode perceber:
Trata-se de uma verdade indubitável que o conforto e o bem-estar dos pobres não podem ser permanentemente assegurados sem alguma consideração de sua parte ou algum esforço feito pelo poder público para regular o aumento de seu número e para tornar menos freqüente entre eles casamentos prematuros e imprevidentes. A operação do sistema 'Poor Laws' tem sido diretamente contrária a esse fim. Elas tornaram supérflua a contenção e estimularam a imprudência, oferecendo-lhe uma parcela de salários da prudência e da diligência.
Não precisamos lembrar o quanto rendia (ainda é o que mais rende) aos aspirantes do poder acenarem com a utopia ao ingênuo eleitorado, mas vale a inusitada descrição do Prof. George Rude:
“Era uma questão tanto de sobrevivência quanto de política: uma panacéia que, pelo voto do trabalhador e pela transformação radical do Parlamento, proporcionaria ao trabalhador muitos assados, muito pudim de ameixas e cerveja forte, com três horas de trabalho diário.” (16)
Os quitutes e as horas de trabalho só deram muito trabalho:
Não dispondo de indicadores de oferta e procura gerados por um mercado competitivo, tentaram medir a economia em termos de horas de trabalho ou contando as coisas em termos de espécie, em vez de dinheiro. Mais tarde tentaram a modelagem econométrica e a análise de insumo-exsumo. Nada deu certo. Quanto mais informação tinham, mais complexa e desorganizada crescia a economia. (17)
Com tão renomados “padrinhos” intelectuais e a conturbação instalada, Karl Henrich Marx (1818-1883) e Friederich Engels (1820-1895) estavam acolhidos com hospitalidade ou indiferença, jamais com hostilidade. O Reino Unido, no respeito ao direito de expressão, permite que até estrangeiros se arvorem em palpites, mesmo sendo eles incisivos na conclamação direta à luta de classes, à aniquilação da propriedade, na tentativa de tornar o País anfitrião um “reboliço”.
Restou à Rússia cair no canto-da-sereia, para se afogar no mar da ilusão.
_Notas_________


* "Hocus Pocus era um "passe de mágica", aplicado no século XVII (hocus pocus, tontus talontus, vade celerita jubes)
1. Bíblia conforme São Mateus, 7, 15.
2. Marx, Karl, cit. Cony, Carlos Heitor, O saco de batatas, Folha de São Paulo, 3/4/1997, p. 2.
3. Nietzsche, F., Acima do bem e do mal, p. 121
4. Von Mises, L., cit. Leoni, Bruno, A liberdade e a lei, p. 167.
5. Whitehead, A.N. A reação romântica cit. Deus, Jorge Dias de, org, p. 222
6. Mill, J. S., cit. Bobbio, Norberto, Democracia e Liberalismo, p. 71.
7. Mill, J. S., Autobiography, p. 107.
8. Mill, John Stuart, cit. em Clemens, John K. e Mayer, Douglas F., p. 191.
9. Mill, J.S., cit. Hugon, P., História das Doutrinas Econômicas, p. 139.
10.
Hayek, F.A., Os erros do socialismo - arrogância fatal: 127
11. Rohmann, Chris, p. 274
12. Mill, J. S.; Einstein, A., cits. Brian, D., p. 51.
13. Mill, John Stuart, Principles of Polítical Economy, Vols 2 and 3 of Collect Works of John Stuart Mill, ed. J.M. Robson (Routdledge & Kegan Paul, Ltd.), cit. Hayek, Friderich August von, p. 198.
14. Mill, J. S., cit. Hayek, F.A., p. 127; Mill, J. S., cit. Hugon, P., p. 160.
15. Definição de Bonaparte sobre a Carta Magna Inglesa.
16. Rude, George, p.196.
17. Toffler, Alvin e Toffler, Heidi, p. 87.

Obras de MILL
Ensaios sobre algumas questões duvidosas da economia política,
Sistema de lógica dedutiva e indutiva,
Sobre a liberdade,
Idéias sobre reforma parlamentar,
Utilitarismo,
Auguste Comte (1798-1857) e o positivismo,
A submissão das mulheres.

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