quarta-feira, 12 de março de 2008

Leviathan à lá italiana

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Contempla o rebanho que passa diante de ti pastando.
Não sabe o que era ontem nem o que é hoje: corre daqui
para lá, come, descansa e torna a correr e assim de manhã
à noite, dia após dia, qualquer que seja o seu prazer ou desprazer.
Amarrado ao piquete do momento, não manifesta nem melancolia
nem aborrecimento.

F. Nietzsche *
ORA COMO PROVEDOR de um povo milenar, ora como justiceiro implacável de seus pares, o golpista dividia os cidadãos em escala. A primeira, mais geral, entre patrões e empregados, que por sua vez se dividiam por semelhança de profissão; daí, outra divisão, em incontáveis e muitas vezes antagônicos sindicatos, na maquiavélica arquitetura econômica elaborada pelo "gentleman" Giovanni Gentile, teórico do “Estado empresarial italiano, no qual as atividades econômicas serão reguladas por empresas e por grupos de trabalhadores sob o controle do Partido Fascista.” (1)
O sedutor embalo do canto paternalista modificava imediatamente a vida singular e pacífica do meio rural pela “glória” do alistamento, massa compactada e sob controle.
A família italiana, mais uma vez ansiando pela paz, pela concórdia, pela salvação, não percebeu o objetivo, a trama arranjada e tomara o purgante. Vejamos a bestialidade que se viu envolta:
O fascismo não acredita na possibilidade nem na utilidade da paz perpétua (refutando Kant). Rejeita o pacifismo que esconde uma fuga diante da luta e uma covardia diante do sacrifício. Só a guerra eleva ao máximo de tensão todas as energias humanas e imprime uma marca de nobreza aos povos que tem coragem de enfrentá-la. O fascismo é contrário a todas utopias e às inovações jacobinas. Não crê na possibilidade de felicidade sobre a terra, no sentido pregado pelos economistas do século XVIII. (2)
O brado levava a conotação de heróica lucidez:
Il Consiglio Nazionale delle Corporazioni definisce le corporazioni como lo strumento che, sotto l’’egide dello Stato, attua la disciplina integrale, organica ed unitaria delle forze produtive, in vista dello sviluppo della richezza, della potenza politica e del benessere del popolo italiano. Dopo il 1870 questo periodo cambia. Si inizia l´era dei cartelli, dei sindicati, dei consorzi, dei trusts. (3)
A raposa vinha a “defender” as galinhas. O alvo primeiro foi o próprio guardião da democracia. Mussolini não teve escrúpulos para atacar o fragilizado poder legislativo. Tal qual Marx, Lênin e Stálin, passou a justificar todas suas atitudes pelo viés da economia. A ojeriza ao liberalismo, manifestação imprescindível a todos os insaciáveis do poder, manifestou-se no Duce por várias vezes. Seu veredito, feito no calor da corrupção, revelou-se um misto de interesse, insensatez, desprezo e ignorância:
Il liberismo che non é che un aspetto piú vasto della dottrina del liberalismo economico, il liberismo viene colpito a morte.” (4)
A legislação pré-fabricada, totalmente integrada, força total contra o inimigo mortal, culminou na Leggi di Riforma Sociale, no aprisionamento das relações de trabalho e produção.
Não foram poucos os intelectuais que lhe prestaram guarida: Benedetto Croce, Jean Cocteau, Luigi Pirandello, Giovanni Gentili, James Burnham, W. B. Yeats, T. S. Eliot e Filipo Marinetti, assim como os verdadeiros intelectuais do fascismo - Charles Maurras, Louis-Ferdinand Celine, Ezra Pound, Oswald Spengler e Martin Heidegger são citados. (5)
Discordo com a inclusão de Croce, mas Gaetano Mosca, Roberto Michels e George Sorel compartiam da mesma inspiração:
Em todas as sociedades a desigualdade é a regra: a democracia não passa de uma ilusão ou de mistificação, porque é impossível. Em toda a parte e sempre o poder é exercido por uma minoria restrita que se impõe às massas. A escola maquiavelista considera fundamental e inelutável essa distinção entre o pequeno número de poderosos e a massa. (6)
Incontáveis características foram e são levantadas pelos dedicados aos estudos sociais e todos são unânimes em perceber o motor estatolatra do fascismo, culto supremo ao Estado pela sugestão de Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel, Sorel:
“É bem verdade que na cultura italiana daquele tempo o Filósofo por excelência era Hegel.” (7)
O próprio Croce pode testemunhar:
Quase totalmente ignoradas eram as obras de Locke (a primeira tradução completa de Dois Tratados sobre o Governo somente aparecerá em 1948) Constant, Tocqueville, Benhtham e Mill. Haviam florescidos estudos sobre Maquiavel: basta recordar os nomes de Ercole, de Russo, de Chabod. Nas breves notas Para a história da filosofia política, escritas em 1924, os autores levados em consideração eram (pareceria incrível nos dias de hoje) Maquiavel, Vico, Rousseau (maltratado), Hegel, Haller e Treitschke. A grande tradição do pensamento liberal e democrático da qual nascera o Estado moderno (também o estado italiano) era completamente ignorada. (8)
O Estado da Itália tinha outra cara. Não necessitava partidos; tampouco de eleições:
O Estado transcende a vida pública e abarca as mais diversas manifestações de atividade social: a vida familiar, econômica, intelectual, religiosa, etc. Sua indiscrição é completa. Penetra no interior das famílias e das empresas; desce até ao segredo das consciências; julga as intenções e abstenções; retira todo o sentimento ao qualitativo privado e arrasa alegremente o famoso 'muro' simbólico tão penosamente edificado pelo direito do século XX. Sendo controlador o Estado torna-se o único motor social. Dirige o trabalho, mas ocupa-se também dos tempos após o trabalho - dopo lavoro: proíbe certos espetáculos e incita a que assistam outros; são criadas colônia de férias para as crianças e viagens de núpcias para jovens casais; ordena que usem chapéu de palha e que desçam a bainha dos vestidos. Opõe a autonomia do indivíduo liberal, que ele julga irrisória às vantagens da poderosa solidariedade orgânica que ele realiza. Não se limita a enquadrar e apoiar a nação, confunde-se com ela. (9)
Só em pensar que o mentecapto angariou simpatia em dois terços do globo dá dó; mas pior ainda é constatar a presença de seus seguidores, ora espalhados alhures.
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Notas
* Da utilidade e do inconveniente da história para a vida, p. 19.
1. Rohmann, C., p. 54.

2. Mussolini, Benito, cit. Challita, Mansour, 3. Vol. p. 157.
3. Mussolini, Benito, Opera Omnia.
4. Idem, ibidem
5. Sobre os intelectuais de "direita", Griffiths, Richard, Fellow-Travellers of the Right:British Enthusiasts for Nazi Germany 1933-38, London, 1980 e Hamilton, Alastair, The Appeal of Fascism 1919-45 London, 1971; Malcolm Muggeridge, The thirties, p. 281-2. cits. Johnson, Paul., p. 234.
6. Mosca, G., Michels, R. e Sorel, G., cits. Schwartzenberg, Roger-Gérard, Sociologia Política, p. 226.
7. Hegel, G.W., cit. Bobbio, Norberto, Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil, p. 92.
8. Croce, B. Per la storia della filosofia política, 1924, cit. Bobbio, Norberto, idem, p. 92.
9. Mussolini, Benito, Lo Estato Corporativo.


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