terça-feira, 4 de março de 2008

A epistemologia do Volksgeist

Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha se apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciante. Friedrich Nietzsche *
Os germânicos viviam  espraiados, autorganizados em quase quinhentas unidades políticas, muitas com moedas, leis, costumes e governos apropriados, Em 1806 Napoleão invade a Alemanha.e acabava com a festa, dizimando os indefesos. Mister o reforço da nacionalidade para fazer frente a novas intempéries, até mesmo retaliar o malvado vizinho. "Em 'Discursos a Nação Alemã', publicado em 1808, o fortalecimento nacional passava de novo como única receita capaz de brecar ou mesmo reiniciar contendas e barbarismo." (1). Hegel, Johann Gottlieb Fichte Schelling Johann Gottfried Herder partiram à tarefa de conjugar a nação germânica.
Shelling (1775-1854), assim como Hegel e o poeta romântico Hölderlin, era de origem suábia e os três se tornaram amigos quando Schelling entrou para a Universidade de Tübingen, aos quinze anos. Kant e Fichte foram as principais influências filosóficas que absorveu.Tanto em Fichte como em Schelling, encontramos formas que Hegel mais tarde utilizou como método dialético. Com Hegel, a filosofia idealista alemã recebeu a sua forma final e sistemática. (Russell, B., 2001, p. 352)
A unificação prussiana, além de defender a área, ensejaria coroar o objetivo hegemônico. O heróico brado retumbava: "Só a Alemanha, doravante, e não mais qualquer Estado e principalmente a França, se acha qualificada para realizar a humanidade. O problema presente, a primeira tarefa é simplesmente o de preservar a existência e a continuação de tudo o que é alemão." (2) 
Doutrinas de vários redutos logo se perfilaram a socorrer as pretensões. Os estudos sobre a mente, na Alemanha, bem que tiveram Leibniz e sua doutrina dos nômades - todas as substâncias possuiriam mesma natureza, dotadas de percepção e apetite, diferenciando-se apenas em função da maior ou menor perfeição com que se processariam essas operações. Na sincronicidade resplandescia o potencial harmônico que se distanciava do mecanicismo newtoniano. Leibniz, contudo, também ficou eclipsado pelas práticas proposições de Wundt e de Wilhelm Dilthey, as quais exibiam a versatilidade do modêlo Volk, agora usado como gênese da psicologia de massa.
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A psicologia do brete

Embora relegasse o positivismo comtiano a exclusividade de aplicação jurídico-sociológica, Dilthey o transplantou ao estudo da psicologia histórica. Tencionava identificar, por dialéticas, a hermenêutica, o objetivo, o interesse coletivo. A psicologia, biológica por essência, virou “política positivista-sociológica”: “A influência de Comte no desenvolvimento posterior da psicologia é indiscutível. Ela se revela na própria obra de Wundt, obviamente enfatizado aqui o caráter científico da psicologia.” (3)
O arguto Gaston Bachelard sai desmistificando o Volk usado por Dilthey: “Termo inoportuno porque evoca muito mais a sociologia do que a genética - designa o patrimônio psíquico hereditário”. (4)
O termo, contudo, apareceu bem oportuno. Com o veículo, Wundt alcançou sistematizar a Volkerpsychologie (psicologia de massa) enfatizando os prejuízos (?!) da mentalidade gregária nebulosa, difusa, do pacífico povo.
O conhecimento de Wundt também proveio dos organicismos e determinismos gerais, senhas à entrada na constelação científica. No trabalho é visível os marcantes traços do estilo de Hegel. Tendo como verdade absoluta a impossibilidade de qualquer coisa passar pela nossa consciência sem ter um fundamento sensorial regulado por processos físicos determinados, ele não fazia mais do que construir, na ilusão, o contraponto capaz de desvendar mistérios traumáticos, proposituras dialéticas e platônicas que o Grundiss de 1896 se ocupou: prazer e desprazer, tensão e relaxamento, excitação e calma. Apresentou-se, então, Wundt, ao estudo e aplicação de funções mentais que tornariam possível a vida espiritual coletiva e a conseqüente evolução do povo como um todo, tais como a língua, arte, mitos, costumes, etc. O povo, disperso, era estéril; a Psicologia poderia reuni-lo.
A sociologia do brete 

As funções sócio-psicológicas e étnicas dependeriam, essencialmente, de uma interação, elemento que prendeu outro grande sociólogo - E. Durkheim (5) - agora já por volta de 1893: “Essa tese durkheimiana prende-se, como é sabido, à sua concepção da consciência coletiva como “repositório de valores” como algo transcendente às consciências individuais.” (6)
Kelsen (7) viu de onde partiu o trem:
O sociólogo francês Durkheim proporciona um exemplo típico deste método que abandona gradualmente a esfera do conhecimento psicológico causal e penetra a das considerações ético-políticas ou jurídicas. Também ele insiste em estabelecer a sociologia como uma ciência natural, orientada segundo as leis da casualidade. Aceita o princípio de Comte de que 'as manifestações sociais são fenômenos naturais e, como tais, estão sujeitas às leis da natureza'.
O historiador Toynbee (8) explica-nos sobre algumas origens da cátedra:
Uma escola de antropologia, no início do século XX, de que Durkheim foi o principal representante, traçou um quadro do homem primitivo classificando-o como quase pertencendo a uma espécie mental e espiritual diferente da nossa. Esta escola apresenta o homem primitivo como sendo governado pela emoção conjunta da coletividade e não pelo processo racional do intelecto individual.
O consagrado Maurice Duverger (9) completa:
Os sociólogos franceses da escola de Durkheim, impressionados com a importância das relações coletivas e dos fenômenos de consciência na vida social, tenderam a definir as classes por critérios de gêneros de vida. Opõe-se ao livre jogo da concorrência individual.
Lacan (10) protestou: “Os programas que se esboçam como devendo ser das ciências humanas não têm outra função senão a de ser um ramo acessório a serviço dos poderes.” O Direito passou envergado; e a ciência, desvirtuada :
Nas ciências humanas, não basta, pois, como acreditava Durkheim, aplicar o método cartesiano, por em dúvida verdades adquiridas e abrir-se inteiramente aos fatos, pois o pesquisador aborda muitas vezes os fatos com categorias e pré-noções implícitas e não conscientes que lhe fecham, de antemão, o caminho da compreensão objetiva. (11)
A razão do brete  
A isto pode-se chamar astúcia da razão - o fato de por as paixões a trabalhar por si mesmas, embora aquilo que lhe desenvolva a existência através dessa compulsão pague o preço e sofra a perda.O particular é, na maior parte, demasiadamente insignificante quando comparado com o geral: os indivíduos são sacrificados e abandonados. Hegel, G.W., The philosophy of history; Introdução; cit. Sabine, G. p. 62.
Não é difícil divisar a escada estendida: “O nacionalismo era o único sentimento que encerrava capacidade de atração geral.” (Sabine, G., p. 848.)
Quando Hegel estudava o destino do sujeito racional sobre a linha do saber, ele não dispunha mais do que de um racionalismo linear, de um racionalismo que se temporalizava sobre a linha histórica de sua cultura, realizando movimentos sucessivos de diversas dialéticas e sínteses. BACHELARD, G.,:5
De que maneira esta estratégia ideológica pode ser acolhida, ainda mais como manifestação científica, embora repleta de carências e absurdos? Como a dialética recebeu tão cobiçado galardão? De que modo a simples lei positiva, essa expressão de vontade unilateral e e comumente paranóica brilha tal qual pura expressão da ciência, e até da democracia?  Desde o momento em que o Estado assume a realidade do direito como desenvolvimento de uma pura idéia, pretensamente moral, em pleno voluntarismo jurídico, a tarefa de legislar tende a converter-se num facere. Trata-se de um fazer mediante o qual sua vontade à prática a construção de uma sociedade nova através do método que combina o idealismo, que lhe ministra o modelo, e o empirismo, com o qual trata de construí-lo. Assim ficam abertas as portas a todo o intento de realizar científicamente qualquer tipo de utopia. “A cisão é a fonte da exigência da filosofia”, diz Hegel no Differenzschrift". (CÍCERO,  A., : 73)
Embora não se extraísse do modo a compreensão objetiva, havia o interesse objetivo. Colocados os fenômenos como elementos de um sistema unido, coerente, lógico, pode fomentar-se a unidade imprescindível aos propósitos totalitaristas - o domínio da psicologia das massas - cada vez mais justificado: “A ciência política opera com material humano e os fundamentos do poder e da obediência são de natureza psicológica.” (12)
O projeto ideológico-psicológico não detinha segredos. O Estado (o eventual governante) punha-se como criador da arte, da lei, do moral, da religião, etc. Cabia ao cidadão ser seu produto, subliminar confirmação da perfídia roussoniana. Com a observação do der Gang der Sache selbst (13), ou seja, a dinâmica interna dos fatos (de novo as concepções dialéticas em cima do universo-relógio a ser esmiuçado, peça por peça e função, até acertarem-se ponteiros) acreditava-se na lógica seguinte ou no destino manifesto a partir desse determinado estado de coisas e isto já provara Comte. A busca do entendimento pela revisão passada, a síntese da dialética constituiria, afinal, a “verdade” da disciplina, proposição da Ciência da Lógica. O que acontece com a pretensão? P. Soupault responde: “A lógica tem sido o veneno que lentamente tem paralisado todas as forças da imaginação do homem. Em nome da lógica foram condenadas descobertas científicas e invenções poéticas, explorações de sonhadores e evasão de clarividentes.” (14)
A justiça do brete
A convicção de que a Alemanha esteve até agora enferma de muitas moléstias graves, de que pode e deve melhorar, é universal. O precedente domínio francês muito contribuiu para isso. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que as instituições francesas estão encerradas muitas coisas boas e que o Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o código prussiano e o austríaco, trouxeram para nossa filosofia mais vitalidade e arte civilista que as acaloradas discussões dos nossos tratados sobre direito natural. (Thibaut, Antonio Frederico Justo (1772-1840), cit. Bobbio, N., 1995, p. 57-8)
“A filosofia do direito de Hegel foi capaz de funcionar como apologia do Estado prussiano. ‘Assim como não se passeia impunemente por entre palmeiras tampouco se vive impunemente em Berlim,’ diz Karl Rosenkranz.” (Cits. Cicero, A., p. 134)
-A lógica encarava um corpo acionado por leis mecânicas, contrapondo-se às virtudes da alma, identificada com a consciência. A luta entre corpo e alma, espírito e matéria dava origem à “confrontação” dos elementos no organismo entendido sempre doente. O “homem-porco”, às vezes só homem, às vezes só porco, estava fadado a correr enlouquecido, de um a outro extremo da meia-verdade ingênua ou maquiavelicamente estendida para os grandes combates dos bons costumes contra os bárbaros:
“O organicismo ético e idealista cultivou-o a escola histórica, sobretudo a concepção de Savigny acerca do espírito popular - o Volksgeist - tomado como fonte histórica, costumeira, tradicional, geradora de regras e valores sociais e jurídicos” (15)
A Fichte, Hegel e Savigny somou-se o brilhantismo jurídico de Rudolf von Ihering este discípulo do último. Para todos o Direito deveria se iniciar no Volksgeist - o tal espírito do povo - (16) da psicologia de Herder, Dilthey e Wundt.
O gênio ou o espírito de uma nação atuaria através dos indivíduos independentemente de suas próprias vontades e intenções conscientes, os diferenciando de outras nações.
Considerado isoladamente, o indivíduo era meramente nocivo, um animal governado por instintos bruscos, como dissera Rousseau, sem nenhuma norma de ação mais alta que impulsos, apetites e inclinações, e sem regra de pensamento mais importante que fantasias subajetivas. Os direitos e liberdades do indivíduo seriam aqueles que correspondessem aos deveres impostos pela situação que desfrutava na sociedade. Hegel fundiu a idéia da vontade geral incoerentemente formulada por Rousseau. ( Rohden, H., 1993, p. 160.)
Desde o momento em que o Estado de Hegel assume a realidade do direito como desenvolvimento de uma pura idéia, pretensamente moral, em pleno voluntarismo jurídico, a tarefa de legislar converte-se num facere. Trata-se de um fazer mediante o qual sua vontade trata de levar à prática a construção de uma sociedade nova, por um método que combina o idealismo, que lhe ministra o modelo, e o empirismo, com o qual trata de construí-lo. Assim abriram-se portas e corações inclinados à utopia.Quem, finalmente, poderia implementar o rumo dessa força concentrada? Quem realizaria o Volksgeist, pelos regulamentos, pela ordem unida em busca daquela vida mais "cômoda" acenada por Savigny?
Bismarck e Hitler se convenceram capazes. Ambos acabaram com ela.

A falha de Einstein

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Notas
* Prólogo de Além do Bem e do Mal
1. Cit. Bastos, Wilson de Lima, Nos Meandros da Política, p. 140.
2. Fichte, J.G., Discursos a Nação Alemã: Nacionalismo e Formação Nacional, cit. Edward McNall, Lerner, Robert E. e Standish, Meacham, p. 573.
3. Comte, Augusto, cit. Penna, Antônio Gomes, História das Idéias Psicológicas, p. 118.
4. Bachelard, Gaston, cit. Quillet, Pierre, p. 84.
5. Durkheim, Emile, De la Division du Travail Social, p. 46 e sgs.
6. Idem, cit. Reale, M., Pluralismo e Liberdade, p. 79/80
7. Kelsen, Hans, A Democracia, p. 331.
8. Toynbee, Arnold J., Estudos de História Contemporânea - A civilização posta a prova, p. 217.
9. Duverger, Maurice, p. 7.
10. Lacan, M., cit. Japiassú, Hilton, Um Desafio à Filosofia: Pensar-se nos Dias de Hoje, p. 37.
11. Goldman, Lucien, p. 33.
12. Heras, Jorge Xifra, Introdución à la Política, Curso de Derecho Constitucional, 2. ed., Barcelona; cit. Bonavides, Paulo, Ciência Política, p. 51.
13. Japiassú, Hilton, Nascimento e Morte das Ciências Humanas, p. 126.
14. Soupault, Phillipe, cit. Oliveira, Beneval de, Nietzsche, Freud e o Surrealismo, p. 41.
15. Bonavides, Paulo, p. 57.
16. Bastos, Wilson de Lima, p. 197.

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