sábado, 29 de março de 2008

O tíbio Maquiavel


A DIMINUIÇÃO DO PODER político da corporação romana precipitava formações sociais enfeixadas. Foi imperativo à civilização compor estados nacionais. Fito primordial: autodefesa. Para tanto, manutenção e acréscimo do Estado, expansão universal. Para alguém ganhar, alguém tinha que perder; melhor que fosse o estranho. Todos concordavam - a riqueza só poderia ser alcançada através das operações bélicas, de saques. Para defesa, também guerras e saques. Nem os que não desejavam conquistas podiam depor as armas, sob pena de perderem propriedades e serem transformados em escravos. Para atender Platão e essa brutal realidade vivida no meio da bota, uma arena gigante onde se digladiavam espanhóis, franceses, italianos e outros mais, é que Maquiavel propugnou pelo avassalador domínio do Rei, sobre uma população atônita, requisitada a granel para fazer frente aos combates:
Quando Maquiavel fala do Estado, pretende falar do máximo poder que se exerce sobre os habitantes de um determinado território e do aparato de que alguns homens ou grupo se servem para adquiri-lo e conservá-lo. O Estado assim entendido não é o Estado-sociedade mas o Estado-máquina¹
Contribuíram os infelizes com toneladas de carne. Era fácil convocar; e grátis. A atenção de Maquiavel, voltada com tal intensidade ao capricho do Rei e do Estado, fê-lo “criador” do termo, embora saibamos que Platão é quem merecesse a primazia:
E foi precisamente Maquiavel, consoante patenteamos na Introdução acima, que, de modo pioneiro, conferiu a palavra Estado seu significado autêntico, ao cunhá-la e imprimir-lhe essência e conteúdo, embora sem apresentar propriamente uma definição.²
Santi Romano também reconhece: “Na literatura científica a palavra Estado foi pela primeira vez empregada no sentido coincidente ao do moderno por Maquiavel.” (3)
O sentido coincide também com o arcaico! Mas o que vinha a ser “Estado” ao oportunista renascentista? Ele mesmo responde:“Todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados.” (4)
Ou seja, Estado é um instrumento de dominação, por lei instituída ou vontade da milícia. Koyré sustenta:
O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. E só. Dentro do cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo a modificar o resultado. (5)
Na imortal concepção é o papel sempre estúpido, mas preponderante, dessa força, sem compromisso com qualquer escrúpulo, dissimulada na fabricada razão de Estado, o garantidor da miserável vida. O apelo mostra-se realista e coadunado com os princípios basilares da Física conhecida. Marcílio Marques Moreira o retrata: “O secretário da República florentina era amigo das leis e teórico empírico da força.” (6)
Força, não se discute, é conceito de Física. Ainda mais força-bruta; e sobre a amizade de Maquiavel com as “leis”, principalmente aquelas de seu próprio interesse, podemos ver, com Chevallier, os “tipos” legais que mereciam a atenção :
A primeira lei é a da conservação, lei egoísta que é válida tanto para o Estado como para tudo o que vive, mas que, no caso do Estado, se amplia e se reveste de um caráter quase sagrado. A segunda é a lei da concorrência vital que, num mundo dividido em Estados distintos, decorre irresistivelmente da primeira. (7)
Nesse espírito, à bête-machines, bem cabia o azeite da oficina florentina: “Antes que Descartes dissesse que sua metafísica não era senão geometria, Maquiavel pode ter pretendido que sua política não era mais que matemática, com seus signos fundamentais, mais, menos, igual.” (8)
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Notas
1. Maquiavel, N., cit. Bobbio, N., 2000, p. 50.
2. Cassirer, Ernst, cit. Bastos, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional, Introdução, p. 5/6
3. Romano, Santi, cit. idem, p. 9.
4. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, Capítulo A Arte da Guerra, 1521; D' Elia, Antônio, p. 24.
5. Koyré, A., p. 11.
6. Moreira, Marcilio Marques, O Pensamento Político de Maquiavel, p. 14.
7. Chevallier, Jean Jacques, História do Pensamento Político, Tomo 1, p. 273.
8. Descartes, R. e Maquiavel, N., Corte, Marcel de, cits. Goytisolo, Juan Vallet de, p. 28.

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