segunda-feira, 31 de março de 2008

O oportunismo do utilitarismo


Salve bravos carregadores,
'Mais longo o trabalho, maiores favores',
Sem ânimo ou vontade de sorrir,
sempre duros de cabeça e braço,
de originalidade nenhum traço
Sans géni et san esprit
NIETZSCHE, F.,
Acima do bem e do mal: 121
Nas décadas de 1830 e 1840, certos parlamentares da aristocracia e da classe média britânica tomaram a seu cargo a articulação de interesses das classes trabalhadoras. Nesse caso, eles não estavam respondendo a pressões e demandas encaminhadas de baixo, e sim agindo como guardiães independentes e voluntários desses interesses negligenciados ou suprimidos. ALMOND & POWELL (1)
Thomas Robert Malthus (1766-1834), amigo de David Hume e adepto de J.-J. Rousseau (cits. Fadiman Clifton: 197), afirmara e convencera: os recursos eram quase inflexíveis, porém a população cresceria de modo geométrico. .A “situação”, provável pela aritmética de Descartes, agora equacionada pelo reverendos, mostrava-se fatal e indiscutível - muitos estariam antecipadamente condenados a morrer de fome. Tal cascata engolfou não só Marx e muitos economistas, como vários pesquisadores de inúmeras outras disciplinas, a começar por Hegel e pelo próprio Darwin.
Na pole-position se postaram os lobos, famintos pelas ovelhinhas.
O “Direito Natural”, pelo esperto jogo de palavras, cedia a “reivindicação social”, “justa” e prescrita a partir das constatações do esperto reverendo, e assim o rebanho vinha cantarolante até o brete, para contribuir com sua lã, antes de ser carneado.
A existência na humanidade de uma tendência a crescer, na ausência de controle, além da possibilidade de um suprimento adequado de alimentos num território limitado deve conduzir, de imediato, a questão do direito natural dos pobres em pleno sustento numa situação social em que o direito de propriedade é reconhecido. A questão reduz-se, basicamente, portanto, a uma dúvida quanto à necessidade daquelas leis que estabelecem e protegem a propriedade privada. (Idem: 199)
Cabia ao governo, pois, "limitar o apetite individual natural", compelindo a que cada um sacrificasse uma porção de seus interesses, em prol da maioria, útil bandeira ao benefício do mentor, a meta verdadeira:
A ética dominante na História da Humanidade foi uma variante da doutrina altruísta-coletivista, que subordinava o indivíduo a alguma autoridade superior, mística ou social. Conseqüentemente, a maioria dos sistemas políticos era uma variante da mesma tirania estatista, diferindo apenas em grau, não em princípio básico, limitada apenas pelos acidentes da tradição, do caos, da disputa sangrenta e colapso periódico." (2)
As paixões seriam "úteis" se guiadas por interesses racionais; portanto, devidamente calculados. Nada melhor do que uma ciência arranjada à justificativa furada:
Foi portanto do utilitarismo do século XIX que nasceu a idéia de que se podia subordinar a atividade do legislador a uma teoria 'científica' da justiça, definida pela maximização do prazer, a um algorritmo que daria automaticamente a solução 'correta' e que permitiria fazer a economia do político. (3)
Bobbio apreciou as intenções de Jeremy Bentham, o pai do utilitarismo:
Deste modo revelava mais uma vez sua mentalidade tipicamente racionalista: um código unitário, coerente, simples, um código, pois, que pudesse valer como lei universal só podia ser obra de uma única pessoa, com princípios estáveis e idéias claras. 'O código deve ser completo ou, em outros termos, abarcar todas as obrigações jurídicas às quais o cidadão deve estar submetido.' (De l´organisation, p. 334.) Evidentemente pensava nele mesmo.(4)
Ancorado em Bacon, Helvetius e Hume, parafraseando Rousseau e Napoleão, utilizando-se do método cartesiano, lembrando Malthus e Hegel para municiar Comte, Mill e Marx, concluía Bentham que a glorificação feita em cima da Constituição Britânica e sua suposta divisão de poderes movia-se na esfera dos mitos. Os poderes legislativo e judiciário não poderiam mais ser limitados. Desse modo, Bentham, acabou aperfeiçoando os fundamentos positivistas no campo econômico, (5) era da “democracia social”, para delírio de John Maynard Keynes, aplicação do welfare state e dos totalitarismos fascistóides. Russell (2008:103) não perdoou: "Há cem anos, viveu um filósofo chamado Jeremy Bentham, universalmente conhecido como um homem muito perverso." Lacoste oferece a precisão de Rawls para demonstrar a razão do embuste benthamniano:
Esta teoria imagina uma espécie de espectador imparcial que, por dispor de todas as informações, seria capaz de determinar, por um balanço de perdas e ganhos, qual a regra de maior utilidade - total ou média - para o maior número. É claro que o utilitarismo pode servir para justificar - em nome da justiça e por uma espécie de ardil do 'bem-estar geral' - qualquer sistema de opressão geral. (6)
Claríssimo, até pela história de todos os países que caíram no conto.
Depreende-se que Bentham conhecia alguns aspectos da relatividade trazidos pelos trabalhos de Locke e Montesquieu. Em nuances que pode entender, interessasse, ou pelo menos não atrapalhasse, o astuto ofereceu respeito. Todavia, ao propugnar a contraposição direta ao individualismo preconizado pelos baluartes liberais, a máscara foi subsituída pela cara-dura da concordância com o Estado Leviathan, não escondendo, além dos aspectos éticos e jurídicos desvirtuados, o brutal instrumento que mirava - a intervenção direta da Coroa nas relações privadas, especialmente na economia: “A influência do governo se estende praticamente a tudo, com exceção do temperamento, da raça e do clima.” (7)  Este tipo de argumento, sempre presente também nas obras de Hobbes, Rousseau e em seguida nos trabalhos de Hegel, propiciou a perigosa e ladina experiência da escamoteação de interesses escusos através de oratórias ambíguas.
O que pode ocorrer com a civilização perante essa visão utilitarista que leva a descambar no interesse puro e simples, desprovida de valores de alçada superior, sem aquele ideal que possa significar a civilização plena baseada nos valores do homem indivíduo, da sociedade individual, da sociedade em geral, como somatória das unidades sociais que a compõem? BRAGA, Antonio Carlos, in NIETZSCHE, F., O livro do filósofo:8
No embalo se apresentou Mill, com a dialética de Bentham de tal odo aprimorada que não poucos chegam a confundi-lo como filoósofo da liberdade.

JOHN STUART MILL (18061873) foi um filósofo e economista inglês, um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX. Foi um defensor do utilitarismo, a teoria ética proposta inicialmente por seu padrinho Jeremy Bentham.

Trata-se, contudo,  de grave equívoco, ainda que muito comum, confusão levada a cabo até mesmo por diletantes liberais. Liberalismo não casa com utilitarismo. São antíteses. Padrinho e afilhado formaram assombrosa dupla. Seus efeitos pirotécnicos ainda são divisados, e assim, por facilmente copiados, configurando uma progressão atômica de difícil reparação:
Stuart Mill tratava os indivíduos com a mesma crueldade socializante com que os termitas a certos de a certos de seus congêneres, os quais cevam para depois chupar-lhes a substância. ORTEGA Y GASSET, J., A rebelião das Massas: 12
O resultado de tão elevada  contribuição surtiu imediato efeito
A nova lei redigida por Edwin Chadwik, ex-secretário particular de Jeremy Bentham, e aprovada quase sem discórdia, refletia de modo claro a idéia burguesa e liberal sobre o propósito de 'alcançar o maior número defelicidade para o maior número de pessoas'. As depressões econômicas dadécada de 1840 mostraram ser falsa essa idéias e arruinaram os planos dos cuidadores das leis dos pobres. Novamente instituíram os donativos e novamente aumentaram os impostos. BURNS: 561.
Eis, no final da oração, a razão da instituição.Os pobres não tiveram acréscimo nenhum, mas seus administradores foram bem contemplados. Walter Lippmann (cit. POPPER, K., Sociedade Democrática e Seus Inimigos, p. 88) bem identificou os tipos:
Os coletivistas tem o empenho de progresso, a simpatia pelos pobres, o ardente sentido do injusto, o impulso para os grandes feitos, coisas que tanto vem faltando ao liberalismo nos últimos tempos. Mas sua ciência se baseia num profundo mal-entendido; e suas ações, portanto, são intensamente destrutivas e reacionárias. Assim, os corações dos homens são destroçados, suas mentes divididas e são apresentadas alternativas impossíveis.
A aparente obviedade do princípio colocava nas mãos do legislador hábil instrumento de aplicação universal. Isso era o que importava, conquanto a presunção de que a felicidade de todos até pode ser aumentada mostrava lógica de difícil desmonte, embora a obra de Adam Smith já fosse conhecida. Imperava a já velha crença do movimento da natureza sob o signo da engenharia mecanicista, linear e preconceituosa. Essas proposições emanadas no espírito geométrico, mensurações calculadas, não contempla nenhuma "alma", exceto a do propositor. Koyré (cit. MATOS, Olgária, Filosofia a polifonia da razão: Filosofia e educação. - São Paulo, Scipione, 1997:107) vai além: "Resulta daí que desejar aplicar as matemáticas ao estudo da natureza é cometer um erro e um contra-senso"
Ao tentar cultivar o tecido da felicidade com as mãos dessa razão ao direito, Bentham ensejou o desfile de vários porta-bandeiras da codificação jurídica, começando por John Austin (1790-1859) outro Pai do Positivismo (8):
“Enquanto Bentham concebia a codificação como um instrumento de progresso político-social, Austin a concebia como um instrumento de progresso puramente técnico-jurídico.” (9)
A desconsideração ao Direito Natural indicou o caminho a disposição dos assaltantes do poder: “Em 1791 nosso autor escreve para seus amigos da Assembléia Nacional um Ensaio de Tática Política, bem como um projeto de prisão moderna. Ao mesmo tempo em que criticava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.” (10)
Como alimentador de demagogo, Bentham também se portou pioneiro. A aparente obviedade do princípio levava às mãos do Rei o poder total e sua índole seria “regulada pela necessidade humana”, constituindo sua satisfação a única justificativa. A idéia pode ser até bonita, mas é por demais pretensiosa, como toda a ciência arruinada. Objetiva dizer mais ou menos a definição político-tecnocrata agonizante:
Na tecnocracia os especialistas são aqueles que nos governam porque conhecem (com segurança) [quem será que lhes fornece tamanha segurança?] tudo quanto diz respeito a nossa sobrevivência e felicidade: necessidades humanas, a engenharia social, planejamento econômico, relações internacionais, invenção, educação, etc. (11)
Nietzsche não se furtou: “Os utilitaristas são ingênuos. E, no fim, teríamos em primeiro lugar que saber o que é útil; aqui novamente a visão deles não se estende além de cinco passos. Eles não tem idéia de nenhuma grande economia que não saiba lidar com o mal.” (12)
Ingênuo era Nietzsche. Utilitaristas sempre foram muito oportunistas, isso sim:
O Estado de bem-estar era um ardil político: uma criação artificial do Estado, pelo Estado, para o Estado e seus funcionários. É um eco irônico da democracia de Lincoln de, por e para ‘o povo’. Quando seus bem escondidos, porém crescentes, excessos e abusos no governo central e local foram revelados recentemente, havia se passado um século de defesa falaciosa. Seldon: 60.

Mas o dinheiro vai em grande parte não para os pobres, que ficam com as migalhas, mas para aqueles grupos de interesse poderosos o suficiente para subornar e fazer lobby a favor da redistribuição. O dinheiro real vai é para os 'pobristas"'- os reais defensores da pobreza -, para os consultores, para as empreiteiras que constroem as moradias populares, para os funcionários de hospitais públicos, e principalmente para os próprios membros da burocracia que coordena todo o esquema. Os pobres são maldosa e intencionalmente transformados em uma subclasse perpétua, dependente do governo, para que alguns parasitas possam viver confortavelmente bem à custa de todo o resto da sociedade. Graças ao estado assistencialista, praticamente não há mais uma genuína mobilidade social. Os degraus mais baixos da escada foram retirados em nome da compaixão.
ROCKWELL, Lew, Por que o estado cresce? (E o que podemos fazer quanto a isso)


Veja também:
O mau tom de Bentham

Mill e o hocus pocus* utilitarista

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Notas
1. Almond, G. e Powell Jr, G, p. 60.
2. Rand, A., p. 118.
3. Audard, Catherine, cit. Rawls, John, Justiça e Democracia, p. XXX.
4. 1995, p. 99

5. Bentham, Jeremy, cit. Hayek, F., Os erros do socialismo - A arrogância fatal, p. 78.
6. Rawls, John, cit. Lacoste, Jean, A filosofia no século XX, p. 139.
7. Bentham, Jeremy, cit. Gusdorf, Georges, As revoluções da França e da América, p. 378; idem in Falcon, Francisco José Calazans, p. 69.
8. Austin, John, cit. Reale, Miguel, O Direito como experiência, p. 181:
"Seu pensamento procedeu-se paralelamente a Escola Exegese francesa. O Direito foi concebido como reunião de normas que guiam o ser inteligente e impostas por outro ser inteligente e superior: o soberano. O Direito levaria sempre a chancela do Estado, pois as normas são criadas pelo soberano ou mediante sua autorização. Para Austin nada haveria de superior ao Estado, que não se subordinava sequer as regras jurídicas que criava. De outro lado, ele revelou-se adepto do utilitarismo (N. O que explica seu anseio de Estado) afirmando que a felicidade deve ser o alvo do govêrno. Na visão de alguns juristas, a adoção da filosofia de utilidade comprometeu a coerência lógica da doutrina austiniana."
9. Bentham, J. e Austin, J., cits. Bobbio, Norberto, 1995, p. 114.
10. Bentham, J., idem, p. 93.
11. Roszac, Theodore, A contracultura, p. 212.
12. Nietzsche, F., cit. Diggins, John Patrick, p. 162.

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