sábado, 29 de março de 2008

A "razão" de Maquiavel

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O gênio de Maquiavel consistiu em aplicar ao domínio humano as normas da revolução mecanicista um bom século antes do advento da física experimental¹.
.O mentor da física experimental desfraldou a bandeira da cascavel:
Temos uma grande dívida para com Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem e o que não deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente e a inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o dardo. (2)
A “genialidade” maquiavélica vem desse empírico e obsoleto paradigma anexado, conexão de racionalidade mecanicista flagrada por Gusdorf. A própria “razão” provém do cálculo. Seu designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar:
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política. (3)
A “sociologia maquiavélica” nasceu banhada dessa ratio:
Com Maquiavel estamos de fato num mundo completamente diverso. A Idade Média está morta; mais do que isto, é como nunca ela tivesse existido. Todos os seus problemas: Deus, salvação, ligações entre o lá em cima e o cá embaixo, justiça, fundamento divino do poder, nada disto existe para Maquiavel. Há uma única realidade, a do Estado, um único fato, o do poder. E um problema: como se afirma e se conserva o poder do Estado. O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. E só. Dentro do cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo a modificar o resultado. (4)
Todos os cálculos provam-se miseravelmente errados:
O racionalismo priva de energia tudo aquilo que os homens mais amam: o sonho, a fantasia, o vago, a fé, a afirmação gratuita. Acrescentemos que isso é essencialmente inumano: o racionalista persegue seu raciocínio, não se importando em saber se ofende os interesses da família, da amizade, do amor, do Estado, da sociedade, da humanidade. Na realidade, o racionalista é um monstro. A humanidade se afirma nas suas religiões mais vitais atirando-lhes na cara o seu ódio. (5)
Este racionalismo compõe os sistemas normativos, intrínseco na formulação das leis, muitas francamente anticientíficas, e no conceito de Justiça. (Do conceito de justiça*) Desde o grego ela significa bem dividir, ou igualar. Sofre o ordenamento jurídico e as correspondentes sentenças os efeitos do “calculismo”, pensado racional, mas que se torna evidentemente parcial, se não coletadas todas as variáveis incidentais, ainda que matemáticas. Diante de tal impossibilidade praxeológica e científica, temos um notável paradoxo, apagado por acomodação.
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A multiplicação da discórdia
Mutatis mutandis, as repetidas ambições de insaciáveis amantes da tirania, da riqueza, da corrupção e do poder fizeram do maligno plano, genuinamente maquiavélico, mas até então insignificante e circunstancial, pobre de espírito e de forma, um tormento que arrasou as gentes, de todos os séculos e continentes:
O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel. (6)
Foram estes estúpidos personagens tomados como inteligentes? Não há dúvidas, mas raros tiveram morte por velhice. O próprio Maquiavel não chegou lá, sequer viveu com um mínimo de dignidade. Morreu distante da glória, do poder, sem nenhuma popularidade ou amizade, enterrado no dia seguinte em Santa Croce. E a “coincidência” da má sorte iria perseguir todos que tentaram implementar sua cartilha. Ele mesmo teve tempo de assistir a desgraça que se abateu sobre o governo do “primeiro Príncipe”:
De outra parte, César Bórgia, vulgarmente chamado Duque Valentino, obteve o Estado graças à condição (fortuna) de seu pai, com a qual o perdeu, embora tivesse feito e tudo houvesse tentado no sentido de conduzir-se como um homem virtuoso e prudente que deita as suas raízes nas terras que as armas e a fortuna alheias lhe outorgaram. De resto, se a sua política não o premiou com melhores resultados não foi por culpa sua, mas decorrência de uma extremada e extraordinária má sorte. (7)
A “má sorte” lhe acompanhou no caminho à morte. Seu fim só poderia ser trágico. O “Príncipe” terminou com uma faca pelas costas, no exilío da Espanha, depois de para lá ter fugido envenenado:
A doença, mortal do pai e gravíssima do filho, foi diagnosticada como sendo o efeito de um veneno que os Bórgia haviam tramado administrar a alguns dos seus inimigos, veneno este que eles próprios, inadvertidamente, acabaram por ingerir. (8)
Naturalmente que tal epílogo é olvidado pelos discípulos que se sucedem alhures.
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O destino dos atores
Assim acaba a grande peça, não contada no compêndio, destino velado aos principais atores, refrão da história desde o tirano de Platão. Danton e Robespierre a resgataram, em que pese circularem advertências. A intensidade da obssessão sufocou a plácida razão. Acabaram quase como o original, tomando do próprio veneno ao sentirem a lâmina do terror tantas vezes acionada, parricídio do objeto contra seus criadores. O jóckey do flamante branco também morreu envenenado, no exílio de Santa Helena. Lenin abandonou o mundo não sem assistir, paralítico, patético e inconformado, o ativo lobo Stálin se refastelar. A Salazar recaiu um cavalo tordilho, responsável por sua cegueira e paralisia. O valente Mussolini acovardou-se em fuga. Pela última vez não seria feliz. Acabou humilhado, vilipendiado na praça de Milão, alvo de escarros, pedras, lanças e pontapés. No fim espirrava sangue, de cabeça para baixo, pendurado feito carneiro, numa viga de um posto de gasolina, batendo cabeça com a fiel Clara Petazza. De Hitler, seu macaco evoluído, não precisamos relembrar. Não foram poucos os que se suicidaram ou promoveram tragédias assemelhadas, entre os quais nosso Getúlio Vargas:
E sei, por testemunho de Augusto Frederico Schmidt, via Oswaldo Aranha, que Getúlio Vargas leu e teceu comentários à margem de 'Machiavel e o Brasil', encontrando-se, evidentemente, na figura desse chefe carismático idealizado, a imagem, certa ou errada, de Benito Mussolini. (9)
Seu exasperados inimigos rotularam-no de maquiavélico. Essa denominação era exata; Getúlio também a teria achado lisonjeira. Na morte como na vida os atos de Getúlio foram cuidadosamente calculados para produzir o máximo efeito político. (10)
O que Gegê montara assim o fizera para seu teatro. Parte da farsa, mais latente, tornou-se exposta. Matou-se para viver. Sangrando o peito covarde, ele encurtou o caminho, mas a Nação, graças a tapeação de uma carta-testamento forjada, ficou pendurada no pêndulo. Embalada no devaneio, nunca mais pode se soltar.

Aprecie:
A perene atualidade de Maquiavel

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Notas
1. Maquiavel, N., cit. Gusdorf, G., p. 163.
2. Bacon, Francis, Advencement of Learning, 1629, II, XXXI.
3. Koselleck, Reinhart, p. 24.
4. Koyré, A. , p. 11.
5. Benda, Julien, cit. Bobbio, Norberto, Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea, p. 56.
6. Jorge, Fernando, p. 90.
7. Bórgia, César e Maquiavel, N., cits. Wells, H. G., tomo II, p. 505.
8. Machiavelli, Nicoló, O Príncipe, De principatibus novis qui alienis armis et fortuna acquiruntur – Dos novos principados conquistados pelas armas de outrem e pela fortuna , p. 37.
9. Sadek, Maria Tereza Aina, Machiavel, machiavéis: a tragédia octaviana (Estudo sobre o pensamento político de Octávio de Faria), p. 186.
10. Skidmore, Thomas E., Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p. 57/60.

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