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O gênio de Maquiavel consistiu em aplicar ao domínio humano as normas da revolução mecanicista um bom século antes do advento da física experimental¹..O mentor da física experimental desfraldou a bandeira da cascavel:
Temos uma grande dívida para com Maquiavel e alguns outros, que descreveram o que os homens fazem e o que não deveriam fazer, pois não é possível unir a duplicidade da serpente e a inocência da pomba, quando não se conhecem exatamente todos os recursos da serpente: sua baixeza rasteira, sua flexibilidade pérfida, o ódio que afia o dardo. (2)A “genialidade” maquiavélica vem desse empírico e obsoleto paradigma anexado, conexão de racionalidade mecanicista flagrada por Gusdorf. A própria “razão” provém do cálculo. Seu designativo vem de ratio, latim, significando ratear, contar, dividir, multiplicar:
Para cumprir com sua responsabilidade universal, o príncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsíveis que suas ações trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha também a obrigatoriedade de ser o mais previdente possível. O cálculo racional de todas as possíveis consequências tornou-se o primeiro mandamento da política. (3)A “sociologia maquiavélica” nasceu banhada dessa ratio:
Com Maquiavel estamos de fato num mundo completamente diverso. A Idade Média está morta; mais do que isto, é como nunca ela tivesse existido. Todos os seus problemas: Deus, salvação, ligações entre o lá em cima e o cá embaixo, justiça, fundamento divino do poder, nada disto existe para Maquiavel. Há uma única realidade, a do Estado, um único fato, o do poder. E um problema: como se afirma e se conserva o poder do Estado. O imoralismo de Maquiavel é simplesmente lógica. Do ponto de vista em que ele se colocou, a religião e a moral são apenas fatores sociais. São fatos que é necessário saber utilizar, com os quais é preciso contar. E só. Dentro do cálculo político, cumpre levar em conta todos os fatores políticos: que peso pode ter um juízo de valor sobre a soma? De nenhum modo a modificar o resultado. (4)Todos os cálculos provam-se miseravelmente errados:
O racionalismo priva de energia tudo aquilo que os homens mais amam: o sonho, a fantasia, o vago, a fé, a afirmação gratuita. Acrescentemos que isso é essencialmente inumano: o racionalista persegue seu raciocínio, não se importando em saber se ofende os interesses da família, da amizade, do amor, do Estado, da sociedade, da humanidade. Na realidade, o racionalista é um monstro. A humanidade se afirma nas suas religiões mais vitais atirando-lhes na cara o seu ódio. (5)Este racionalismo compõe os sistemas normativos, intrínseco na formulação das leis, muitas francamente anticientíficas, e no conceito de Justiça. (Do conceito de justiça*) Desde o grego ela significa bem dividir, ou igualar. Sofre o ordenamento jurídico e as correspondentes sentenças os efeitos do “calculismo”, pensado racional, mas que se torna evidentemente parcial, se não coletadas todas as variáveis incidentais, ainda que matemáticas. Diante de tal impossibilidade praxeológica e científica, temos um notável paradoxo, apagado por acomodação.
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A multiplicação da discórdia
Mutatis mutandis, as repetidas ambições de insaciáveis amantes da tirania, da riqueza, da corrupção e do poder fizeram do maligno plano, genuinamente maquiavélico, mas até então insignificante e circunstancial, pobre de espírito e de forma, um tormento que arrasou as gentes, de todos os séculos e continentes:
O Príncipe, este 'breviário prático do déspota' fascinou reis e imperadores resolutos, os derrubadores de regimes legais ou constitucionais. Cromwell obteve sua cópia. Luís XIV, o Rei-Sol, fez dela sua 'leitura noturna predileta'. E Napoleão assegurava que de todos os livros acerca da política, o único digno a ser estudado era o Príncipe. Quanto ao chanceler de ferro - Bismarck - sua falta de escrúpulos, sua política hábil, tortuosa, complexa, tudo indica que adotava Maquiavel. (6)Foram estes estúpidos personagens tomados como inteligentes? Não há dúvidas, mas raros tiveram morte por velhice. O próprio Maquiavel não chegou lá, sequer viveu com um mínimo de dignidade. Morreu distante da glória, do poder, sem nenhuma popularidade ou amizade, enterrado no dia seguinte em Santa Croce. E a “coincidência” da má sorte iria perseguir todos que tentaram implementar sua cartilha. Ele mesmo teve tempo de assistir a desgraça que se abateu sobre o governo do “primeiro Príncipe”:
De outra parte, César Bórgia, vulgarmente chamado Duque Valentino, obteve o Estado graças à condição (fortuna) de seu pai, com a qual o perdeu, embora tivesse feito e tudo houvesse tentado no sentido de conduzir-se como um homem virtuoso e prudente que deita as suas raízes nas terras que as armas e a fortuna alheias lhe outorgaram. De resto, se a sua política não o premiou com melhores resultados não foi por culpa sua, mas decorrência de uma extremada e extraordinária má sorte. (7)A “má sorte” lhe acompanhou no caminho à morte. Seu fim só poderia ser trágico. O “Príncipe” terminou com uma faca pelas costas, no exilío da Espanha, depois de para lá ter fugido envenenado:
A doença, mortal do pai e gravíssima do filho, foi diagnosticada como sendo o efeito de um veneno que os Bórgia haviam tramado administrar a alguns dos seus inimigos, veneno este que eles próprios, inadvertidamente, acabaram por ingerir. (8)Naturalmente que tal epílogo é olvidado pelos discípulos que se sucedem alhures.
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O destino dos atores
Assim acaba a grande peça, não contada no compêndio, destino velado aos principais atores, refrão da história desde o tirano de Platão. Danton e Robespierre a resgataram, em que pese circularem advertências. A intensidade da obssessão sufocou a plácida razão. Acabaram quase como o original, tomando do próprio veneno ao sentirem a lâmina do terror tantas vezes acionada, parricídio do objeto contra seus criadores. O jóckey do flamante branco também morreu envenenado, no exílio de Santa Helena. Lenin abandonou o mundo não sem assistir, paralítico, patético e inconformado, o ativo lobo Stálin se refastelar. A Salazar recaiu um cavalo tordilho, responsável por sua cegueira e paralisia. O valente Mussolini acovardou-se em fuga. Pela última vez não seria feliz. Acabou humilhado, vilipendiado na praça de Milão, alvo de escarros, pedras, lanças e pontapés. No fim espirrava sangue, de cabeça para baixo, pendurado feito carneiro, numa viga de um posto de gasolina, batendo cabeça com a fiel Clara Petazza. De Hitler, seu macaco evoluído, não precisamos relembrar. Não foram poucos os que se suicidaram ou promoveram tragédias assemelhadas, entre os quais nosso Getúlio Vargas:
E sei, por testemunho de Augusto Frederico Schmidt, via Oswaldo Aranha, que Getúlio Vargas leu e teceu comentários à margem de 'Machiavel e o Brasil', encontrando-se, evidentemente, na figura desse chefe carismático idealizado, a imagem, certa ou errada, de Benito Mussolini. (9)Seu exasperados inimigos rotularam-no de maquiavélico. Essa denominação era exata; Getúlio também a teria achado lisonjeira. Na morte como na vida os atos de Getúlio foram cuidadosamente calculados para produzir o máximo efeito político. (10)O que Gegê montara assim o fizera para seu teatro. Parte da farsa, mais latente, tornou-se exposta. Matou-se para viver. Sangrando o peito covarde, ele encurtou o caminho, mas a Nação, graças a tapeação de uma carta-testamento forjada, ficou pendurada no pêndulo. Embalada no devaneio, nunca mais pode se soltar.
Aprecie:
A perene atualidade de Maquiavel
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Notas
1. Maquiavel, N., cit. Gusdorf, G., p. 163.
2. Bacon, Francis, Advencement of Learning, 1629, II, XXXI.
3. Koselleck, Reinhart, p. 24.
4. Koyré, A. , p. 11.
5. Benda, Julien, cit. Bobbio, Norberto, Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea, p. 56.
6. Jorge, Fernando, p. 90.
7. Bórgia, César e Maquiavel, N., cits. Wells, H. G., tomo II, p. 505.
8. Machiavelli, Nicoló, O Príncipe, De principatibus novis qui alienis armis et fortuna acquiruntur – Dos novos principados conquistados pelas armas de outrem e pela fortuna , p. 37.
9. Sadek, Maria Tereza Aina, Machiavel, machiavéis: a tragédia octaviana (Estudo sobre o pensamento político de Octávio de Faria), p. 186.
10. Skidmore, Thomas E., Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), p. 57/60.
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