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A subversão do Direito
Na construção de sua utopia, o engenheiro social substitui a vontade das pessoas pela sua própria vontade. A humanidade se dividiria em duas classes: de um lado, o ditador todo-poderoso e, do outro, os tutelados, que ficam reduzidos à condição de meros peões de um plano ou engrenagens de uma máquina.Se isto fosse possível, o engenheiro social não precisaria preocupar-se em compreender as ações das demais pessoas. Teria ampla liberdade de lidar com elas, como a tecnologia lida com madeira e ferro. Ludwig von Mises (1)
DISFARÇADA NA FALSA ciência expressa pelos padrões da maquinaria financeira do Estado, a política dispensa conceitos éticos; mas antes ainda, a "vã filosofia" e o Direito Natural:
O que ocorreu foi que as premissas tecnocráticas quanto à natureza do homem, da sociedade e da natureza, deformaram-lhe a experiência na fonte, tornando-se assim os pressupostos esquecidos de que se originam o intelecto e o julgamento ético. (2)
Foi o mesmo que detectaram Jacques Attali e Marc Guillaume:
A teoria econômica veio a ser uma ampla empresa de terrorismo intelectual, cujo aspecto pseudo-científico serve, na realidade, de coerção para excluir todos os verdadeiros problemas da sociedade contemporânea. Seu exagerado profissionalismo, herdado de sua mitologia científica, e todo o aparato matemático que a rodeia, servem para mascarar seu objetivo ideológico, que transforma sua disciplina numa máquina para estabelecer as leis das relações de força que existem na sociedade, numa civilização materialista e produtivista, orientada totalmente para a acumulação de bens materiais. Seu dinamismo serve, na realidade, para legitimar a posse do poder em mãos daqueles que dominam o aparato produtivo, quer seja a tecnocracia, nos países ocidentais, ou a burocracia planificadora, nos países socialistas. (3)
O Direito desceu do pedestal. Ficou à mercê dos "engenheiros sociais", como queria Roscoe Pound (4); ou serviu de "instrumento", na expressão querida de Rudolf von Ihering, em Teoria do Fim. (5)
Isso tudo nem era novidade - desde Rousseau, Napoleão e Comte, o Direito assumira o caráter teleológico, por isso transformado em mecanismo ordenativo a realização das finalidades propostas pelo Estado; ou melhor, por e para seu jockey eventual:
"A racionalidade jurídica é uma imagem ideológica para legitimar o sistema jurídico positivo a partir de uma aparência de racionalidade, cujo fundamento é mais mítico do que racional, ou seja 'mitológico'." (6)
Esta "racionalidade" é que "legitima teses políticas vitoriosas" (7):
O surgimento do Direito Positivo, longe de negar, reforçou o poder, pois lhe deu um conteúdo preciso e um sistema de garantias em forma de sanções, também definidas e precisas. O direito, uma vez positivado, torna possível ao Estado encabeçar e dirigir o fenômeno que Harold Laski descreveu concisamente como o processo de organização do poder coativo.(8)
O jurista Alfredo Buzaid concorda:
"As leis positivas estão sujeitas às contingências da vida política..." (9) e define: "Organizar um povo significa determinar-lhe a ordem jurídica." (10)
Para tanto, implica-se tudo:
"O poder é hoje tido, nas Ciências Sociais, como um fenômeno fundamental, a partir do qual se edificam a Política, o Direito e a Estratégia." (11)
H. Laski só não menciona que por ali se edificaram ainda a Economia e a Sociologia.
Legitimação
Para Renè Konig, professor das Universidades de Zurique e Colônia, a Sociologia representa "um elemento do processo de autodomesticação social da humanidade". (12)
Não é mesmo o método de recrutamento utilizado em muitas religiões?
J. F. Lyoard chama esses edifícios de "grandes narrativas legitimadores", tais como
o marxismo, o freudismo ou o funcionalismo, baseados numa visão positivista, teleológica e material da evolução humana. Sistemas ministas, igualmente, na medida em que assentam sobre um casualismo exclusivo e excludente. Daí o fideísmo rigoroso, com seu cortejo de fanatismos, de dogmatismos, de escolásticas de todas as espécies, sem esquecer, naturalmente, as intolerâncias, exclusões e demais excomunhões. (13)
Em História da Loucura Michel Foucault demonstra como "o tratamento da demência constitui uma forma de domínio social". (14)
Japiassú se alia e reclama:
Mas tudo indica que, nos dias de hoje, é a ciência que se encontra instalada no lugar de Deus. Desde há algum tempo, ela vem se atribuindo o papel de referência absoluta. Impõe-se o positivismo, que gera o cientificismo acreditando que a ciência tudo pode explicar e apresentando o seguinte aspecto político de seu projeto: o recrutamento da ciência a serviço de uma concepção política que a aproxima da religião. Uma vez envolvida, a ciência se curva às ordens da política que tem por missão justificar. Ao fetichizar a ciência e sacralizar a política, o cientificismo termina por ceder o lugar ao tecnologismo que hoje nos invade e se torna a mentalidade hegemônica, muito embora se revele impotente para mobilizar nossos afetos (a serviço de um ideal), a não ser sob as formas mais lúdicas e mais ou menos moralizantes da ciência-ficção. (15)
Atuando pela implementada ordem jurídico-institucional, o "processo de autodomesticação" reforçou linhas ideológicas e também legitimou a solução classificada (as ciências gostam das separações cartesianas) nos "elementos da produção": terra e capital quase misturados, de um lado; a força de trabalho, de outro.
A lei, pela ótica do economês, deve ser usada a serviço da organização:
"A economia tornou-se o pavilhão afetado, rococó, de uma exibição de vaidades pueris e uma competição de sôfregos interesses entre grupos econômicos e grupos ideológicos". (16)
A contabilidade, aferida por simplificadas variáveis, senão dialéticas já pontuadas por Marx, dava impressão de retorno ou manutenção daquele poder supremo, "cientificamente correto", na plena segurança do novamente "divino" Estado protetor, o "justo".
A responsável pela "liberdade" chama-se "linha de produção":
"O todo da política interna de Hitler, até 1939, foi esboçado seguindo esses padrões: usar o imenso Estado paternalista para persuadir as massas a abrir mão da liberdade em troca da segurança." (17)
Weber antecipou os paradigmas administrativos adotados por nazistas e bolcheviques:
A administração burocrática pura, ou seja, a administração burocrático-monocromática aplicada ao expediente é, consoante a experiência, a forma mais racional de se exercer uma dominação. É racional nos seguintes sentidos: em precisão, em continuidade, disciplina, rigor e confiança; implica, portanto, para o soberano e os interessados, exercício de cálculo; pressupõe, também, aplicabilidade formalmente universal a todo o tipo de tarefas; pressupõe, outrossim, possibilidade de aperfeiçoamento técnico para atingir o melhor resultado. O desenvolvimento das formas modernas de associações em todo o tipo de terrenos (estado, igreja, exército, partido, exploração econômica, associação de interessados, uniões, fundações e quaisquer outras que possam ser mencionadas) coincide totalmente com o desenvolvimento e incremento crescente da administração burocrática: a sua aparição é, por exemplo, o germe do estado moderno ocidental. (18)
Nesta arquitetura de ordem econômico-sociológico-jurídico-positivista, nessa hierarquia de direito vilipendiado já não se observa a propriedade tão privada. Aceitas e divulgadas como capazes de decifrar o mapa da felicidade geral porque centrada na certeza numérica, a Economia, somada às concepções legalizantes secundadas na cumplicidade sociológica e psicológica, escoltou as elucubrações com as tonalidades comunistas/marxistas e keynesianas/fascistas. Humanistas foram substituídos pelos novos práticos. Acordos e naturais divergências pessoais sofreram crescente participação dos usurpadores armados com o racionalismo pragmático, enquanto o "utilitarismo" (sempre de fachada) ofuscava torpes atitudes. Eis o novo norte, senso de Justiça - a repartição (da escassez, nunca da abundância) social, assim justificado pelos "cientistas" sociais:
A idéia de que a política é por um lado uma luta, um combate entre indivíduos e grupos, pela conquista de um poder que os vencedores utilizam em proveito próprio e em detrimento dos vencidos e, por outro lado, ao mesmo tempo, um esforço no sentido de realizar uma ordem social em proveito de todos, é o fundamento essencial de nossa teoria de sociologia política. (19)
Wayne W. Dyer sintetiza o "pensamento" daqueles "Estados-provedores", algo que, embora bastante anacrônico, ainda perdura em muitos países:
Não confie em si próprio. Você não tem a capacidade e todo o instrumental necessários para funcionar sozinho. Tomaremos conta de você. Vamos reter os seus impostos, porque senão você vai gastar tudo antes que seja a hora de receber a cobrança. Vamos obrigá-lo a se filiar à Assistência Social, porque você seria incapaz de decidir por si próprio - ou economizar para si mesmo. Não precisa pensar sozinho, vamos regular sua vida para você. (20)
Penna pinta um quadro daí derivado:
A função dos parlamentos consistiu, inicialmente, em votar os impostos pedidos pelo poder soberano executivo, controlando o orçamento e sua aplicação. Ora, ocorreu o inverso: os governos democráticos que haviam prosperado a partir desse principio fundamental não tardaram a aumentar a tributação, na crença de que quanto mais pudessem arrancar da renda privada para encher as burras do Tesouro, tanto melhor se tornaria a comunidade como um todo. Uma minoria privilegiada se beneficiaria, invariavelmente, da generosidade pública. (21)
O protesto de Einstein
Sempre atento às questões humanas, Einstein retomou as preocupações originais de Locke e Montesquieu, mesmo aparentemente desconhecendo as obras desses autores liberais. Fulminou:
"A burocracia prende o espírito como as faixas da múmia." (22)
A preocupação de Grande Relativo teve a constante:
"Como é possível, em face da ampla centralização do poder político e econômico, evitar que a burocracia se torne todo-poderosa e arrogante? Como proteger os direitos do indivíduo e, com isso, assegurar um contrapeso democrático ao poder da burocracia?" (23)
A centralização do poder, ele identificou, é o caminho do poder do indivíduo para o todo arrogante. Em outras palavras: o poder é usurpado do povo pelo governo: enquanto os direitos individuais eram tornados cada vez mais massificados, com as "conquistas sociais" almejadas e implementadas recaiu a tradicional obrigação do assistido: a entrega da própria liberdade, da vida, do trabalho e da afeição ao cada vez mais necessitado estado de contingentes.
A democracia liberal, ainda remanescente em pequenas unidades, concorrentes, solidárias, autônomas, onde o acaso, a incerteza, o indeterminismo, o impulsivo, o estético, a idéia e a forma brotavam da diversidade, por criação do maior número possível de atores, agora virava planejamento macroeconômico, dirigido, burocratizado pelo que Maurice Duverger chama de "vastas organizações, complexas, hierárquicas, racionalizadas no predomínio de grandes conjuntos organizados em que as decisões são geralmente tomadas no quadro de um grupo estruturado, ligado a outros grupos" (24)
Era bula "neofascista":
Já não reúne apenas os proprietários dos instrumentos de produção e seus fideicomissários. Engloba com eles um grupo social mais amplo, que compreende os técnicos, os administradores, os organizadores, os quadros. E esta nova oligarquia depende muito mais do Estado que a antiga. O capitalismo liberal desejava um Estado tão apagado quanto possível. Ao contrário, a era de produção de massa, o neo-capitalismo exigem um Estado forte e ativo, para coordenar e planificar o crescimento, assegurar a regulação de conjunto da economia, modular o consumo, desenvolver infra-estruturas e os serviços públicos não-rentáveis e até subvencionar as empresas em perigo, etc. Daqui provém a interpenetração da tecno-estrutura econômica e da tecno-estrutura política, interpenetração naturalmente crescente num sistema em que o Estado exerce importante influência na produção, nas trocas e no consumo, por intermédio de uma planificação, da regulação monetária, do controle de preços e salários, do incentivo aos investimentos, do auxílio às empresas, da segurança social, etc. Assim se desenvolvem os contatos e se atam os laços entre a tecno-estrutura pública e a tecno-estrutura privada, que se ajustam, acordam decisões em comum e trocam seus dirigentes. Assim se estrutura e unifica uma nova oligarquia. (25)
Valemo-nos da conceituação de Roszac:
A tecnocracia assume uma posição semelhante a do árbitro inteiramente neutro numa disputa atlética. O árbitro é normalmente a figura menos ostensiva entre os participantes do espetáculo. Por que? Porque concentramos a atenção e a lealdade apaixonada nas equipes, que competem dentro de certas regras; inclinamo-nos a ignorar o homem que se coloca acima da disputa e que simplesmente interpreta e faz cumprir as regras. Entretanto, num certo sentido, o árbitro é a figura mais importante do jogo, uma vez que somente ele fixa os limites e as metas da competição e julga os contendores. (26)
A incidência do Estado nos meios de produção era o que preocupava Hayek:
É este o ponto crucial da questão. O controle econômico não é apenas o controle de um setor da vida humana, distinto dos demais. É o controle dos meios que contribuirão para a realização de todos os nossos fins. Pois quem detém o controle exclusivo dos meios também determinará a que fins nos dedicaremos, a que valores atribuiremos maior ou menor importância - em suma, determinará aquilo em que os homens deverão crer e por cuja obtenção deverão esforçar-se. (27)
Ora no Brasil apuramos o bizarro, jamais cogitado: o ladrão está solto; e quem o acusa, sofre processo, por difamação!
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Notas
1. Mises, Ludwig, Ação Humana - Um Tratado de Economia, p. 112.
2. Leoni, Bruno, A Liberdade e a Lei, p. 66.
3. Guillaume, Marc e Attali, Jacques, cits. Goytisolo, J. V. , p. 94.
4. Pound, Roscoe, Interpretations of Legal History, 1923; cit. Coelho, L. Fernando, Teoria Crítica do Direito.
5. Ihering, Rudolf von, Teoria do Fim, cit. Nader, P., p. 55.
6. Lenoble, Jacques e Ost, François, Droit, Mythe e Raison, cit. Coelho, L. F., p. 128.
7. Nader, Paulo, p. 200.
8. Laski, H., El Estado en La Teoria y en la Pratica, p. 20 e sgs; cit. Moreira Neto, D.F., Teoria do Poder, Sistema de Direito Político, Estudo juspolítico do poder, p. 258.
9. Buzaid, Alfredo, Conferências, p. 139.
10. Idem, ibidem.
11. Laski, Harold, El Estado en La Teoria y en la Pratica, p. 20 e sgs; cit. Moreira Neto, Diogo de F., p. 258.
12. Konig, Rene, Soziologie heute, cit. Goldman, L., Ciências Humanas e Filosofia - Que é a Sociologia, p. 40.
13. Lyoard, J. F., cit. Maffesoli, Michel, Para Navegar no Século XXI.
14. Foucault, M., cit. Rohmann, C., p. 168.
15. Japiassú, Hilton, Um Desafio à Filosofia: Pensar-se nos Dias de Hoje, p. 64.
16. Lacerda, Carlos, O Poder das Idéias, p. 51.
17. Hitler, A cit. Johnson, P., p. 108.
18. Webber, Max, cit. Rodríguez, Ricardo Vélez, A Democracia Liberal Segundo Alexis de Tocqueville, p. 16
19. Duverger, Maurice, Sociologia Política, p. 27.
20. Dyer, Wayne W., p. 55.
21. Penna, J. O. de Meira, prefácio à edição brasileira de Jouvenel, B., A Ética da Redistribuição, p. 14.
22. Einstein, A. e Rockfeller, J. D. Liberty magazine, 9/1/ 1932; cit. Pais, A., Einstein viveu aqui, p. 216.
23. Einstein, A., Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, religião, relações sociais, racismo, ciências sociais, p. 137.
24. Duverger, Maurice, Janus, Les deux faces de l'occident, ps. 135, cit. Schwartzenberg, R.-G., Sociologia Política, p. 363.
25. Roszac, Theodore, p. 19.
26. Idem, p. 24.
27. Hayek, Friderich von, O Caminho da Servidão, p. 101.
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