sábado, 29 de março de 2008

O grego desagregador

É, portanto, o aparecimento do Estado, esta invenção que nada tornava inevitável, que vai desarrumar fundamentalmente estas sociedades e depois a história do mundo. Christian Descamps
NICOLAU Maquiavel (1469-1527), de Florença, formulou o protótipo que seria aperfeiçoado por Bacon, Hobbes, Hegel, Bentham, Comte e muitos, por todos os séculos, amém:
“Até Maquiavel, Estado e sociedade não se diferenciavam no 'todo orgânico da existência humana'.” (1)
Até então, bem que a vida transcorria na diversidade:
A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se apresentava como um fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela sociedade civil. (2)
Fustel de Coulanges aprecia:
"O antigo direito não é obra do legislador; o direito, pelo contrário, impõe-se ao legislador. " (3)
Agora, era o Estado, ou melhor, o Príncipe quem dava as cartas; e ficava "de mão":
O Príncipe deve armar-se, porque todos os profetas armados venceram. Deve ser forte e basear suas forças nas próprias tropas. Com elas deve conquistar, manter e defender o seu Estado. A conquista, a manutenção e a defesa do Estado exigem, no entanto, não apenas as virtu do comandante - como a sabedoria do chefe de Estado. E o Príncipe pode ordenar as execuções sem receio, desde que não lhe falte - e nunca lhe falta - o pretexto conveniente. É preferível ser temido a ser desconsiderado, pois o mal, no terreno político, não é mal, mas - como qualquer outro - é meio de alcançar o fim: a segurança do príncipe é, portanto, a segurança do Estado é, em última instância, a dos súditos.(4)
Que fontes poderiam abastecer o mais famoso florentino para capacitá-lo a tão perene obra, tão destrutivo cocktail, além das circunstâncias reais e latentes que lhe atemorizavam, mas que também serviam de argumento, de alavanca à expansão de seu egoísmo?
Excetuando-se a história romana, Maquiavel não cita mais nada. As opções eram escassas. Podemos supor o que conhecia a torpe mente examinando o caráter de suas proposituras, e quem compunha seu EspaçoTempo.
A filosofia tomista não o atingiu, obviamente. De Aristóteles, não tomou conhecimento. Mas havia um mapa para o tesouro. Mofava à prateleira, quando seus astutos patrões o resgataram:
A Academia Platônica, fundada por Marsilio Ficino, com consentimento de Cosme de Medici, elabora com efeito uma doutrina destinada a uma larga difusão, por longo tempo benéfica à manutenção da hegemonia cultural florentina, mas da qual os Medici são os primeiros a tirar vantagem concretamente. (5)
O disco-voador
Platão (428-347 a. C.) ensinara tese, estilo de vida, propósitos e atitudes:
Quer se suceda que governem com a lei ou sem a lei, sobre súditos voluntários ou forçados; quer que purguem o estado, para bem deste, matando ou deportando alguns de seus cidadãos... enquanto procederem de acordo com a ciência e a justiça e preservarem o estado, tornando-o melhor do que era, esta forma de governo pode ser descrita como a única que é certa. (6)
Quem se punha fazer a ciência e a dizer a justiça? Seu principal interessado e criador:
“Platão, sonhando com uma retórica digna do filósofo, queria que os discursos deste pudessem convencer os próprios deuses”. (7)
O professor Júlio César Pereira completa:
O conceito de justiça é o primeiro conceito democrático mistificado por Platão. A justiça surgiria como uma propriedade do Estado. Seu totalitarismo é disfarçado sob a capa de 'verdadeira justiça', e se legitima teoricamente mediante a subversão doutrinária do humanitarismo em três frentes: defendendo o privilégio natural, postulando o coletivismo, advogando a tese de que o indivíduo existe para o Estado. (8)
Para a empunhadura do poder, Platão “inventara” a justificativa basilar do coletivismo, a redução do homem a mero número:
“Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o Estado; coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor.” (9)
As regras do jogo também lhe pertenciam:
“Mas o Número era, indubitavelmente, uma invenção do próprio Platão” (10)
O grego bem soube promover a dialética aprendida com seu mestre, o "belo" Sócrates, incitendo-a na promoção da grande luta - uma luta tão covarde e desigual quanto sua própria personalidade: a dialética Estado x cidadão, certamente sua mais genial armadilha:
“A identificação do individualismo com o egoísmo fornece a Platão poderosa arma para atacar o individualismo.” (11)
“No campo da política o indivíduo é, para Platão, o Mal em pessoa.” (12)
Esta é a base na qual Hobbes erigiu seu Leviathan; também o método canônico aplicado ao rebanho. Eis a fonte na qual Maquiavel instituiu a barragem aos seus precários objetivos:
Vemos que que Platão só reconhece um derradeiro padrão, o interesse do Estado. Tudo o que beneficia é bom, virtuoso e justo; tudo quanto o ameaça é mau, perverso e injusto. As ações que o servem são morais; as que o põem em perigo, imorais. Em outras palavras, o código moral de Platão é estritamente utilitário. O critério de moralidade é o interesse do Estado. (13)
Como o Estado não tem interesse, porque desprovido de vontade, o que vale é o desejo de seu condutor. Eis a grande utilidade do presente. Eis o tobogã pelo qual a humanidade despenca, especialmente desde a Renascença, para morrer alhures, em efervecências.
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Notas
1. Cassirer, Ernst, cit. Costa, V., p. 27
2. Bobbio, N., 1995, p. 27.
3. Coulanges, F. p. 100.
4. Machiavelli, Nicoló, O Príncipe, De principatibus mixtis, Dos principados mistos, p. 11/2
5. Larivaille, P., p. 161.
6. Platão, Estadista, cit. Popper, Karl M., Sociedade Democrática e Seus Inimigos, Tomo I, p. 184.
7. Platão, Fedro, 273e, cit. Perelman, C., p. 536
8. Platão, cit. Pereira, Julio Cesar R., Epistemologia e Liberalismo - Uma Introdução a Filosofia de Karl R. Popper, p. 116/17.
9. Platão, A República cit. Popper, K., 1998, p. 123.
10. Idem, p. 169
11. Idem, p. 116.
12. Idem, p. 118.

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