domingo, 16 de março de 2008

A prisca sapiência dos programas sociais

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Fora do Estado, acha-se o domínio das paixões, a guerra, o medo, a
pobreza, a incúria, o isolamento, a barbárie, a ignorância, a bestialidade.
No Estado, acha-se o domínio da razão, a paz, a segurança, a riqueza,
a decência, a sociabilidade, o refinamento, ciência, a benevolência.

Thomas Hobbes (
1)
DESDE O GOLPE bolchevique (2), o arranjo tecnocapitalista de Keynes se apresenta como seu inteligente anteparo. Se entendermos que à mordida de cobra o remédio é seu próprio veneno, fica claro porque a maioria das nações partiu freneticamente rumo ao totalitarismo invertido. Itália e Alemanha foram as primeiras precipitadas. Em seguida submeteram-se Portugal, Polônia, Hungria, Áustria, Turquia, Grécia, Romênia, Japão, Espanha, todos devidamente apoiados por Roosevelt. Os espanhóis trocavam o ritmo das castanholas pelo das metralhadoras. Garcia Lorca e milhares pagaram a discórdia com a vida, e de nada adiantou. Tomava o cetro a maior ditadura já sofrida por aquele valoroso povo. Rendidos por Franco, os soviéticos obtiveram a desforra na II Guerra. Agigantaram-se. Então a bula fascista, mais uma vez, até na terra da liberdade, em seu nome seria aplicada; e, de novo, junto com a Inglaterra, a mesma que, no ato insólito, relegava seu maior artífice – W. Churchill - à aposentadoria:
"Em seguida à II Guerra Mundial, a Grã-Bretanha entregou-se a um socialismo limitado, sob os auspícios parlamentares. Os britânicos, que possuem um instinto superior de administração, reconheceram a necessidade da autonomia nacionalizada." (Galbraith, 1968: 110).
Os novos governantes propunham “refrear” a fúria proletária internacional, ao galante empresarial. Os operários, insuflados, trocaram a pacífica tradição liberal pela reivindicação dos “programas sociais”. Seria possível “forrar” a classe por designação oficial:
"Em adição, na esteira do que é hoje chamado de Revolução Keynesiana, o Estado encarrega-se de regular a renda total disponível na economia para a compra de bens e serviços." (Galbraith, 1968: p. 9).
Influentes comentaristas e atentos executores se postaram a responder. Ofereciam medições e abstratos índices extraídos das confusas marchas e contramarchas cartesianas, eventualmente coincidentes com uma realidade previamente disposta na mente de todos. Tudo, porém, já era arranjado, a começar pela maciça publicidade, marketing exportado por Goebbels.
Vale a sátira de Bertrand Russell (cit. Schwartz: 86):
Todos sabemos dessas expectativas bastante grosseiras de uniformidade que são passíveis de desencaminhar-nos. O homem que alimentou a galinha diariamente por toda a sua vida, no final, estrangula o animal, mostrando que visões mais refinadas quanto à uniformidade da natureza por parte da galinha lhe teriam sido úteis.
Variações de renda nacional baseadas em simplórias quando não distorcidas amostras, volume de produção contabilizado sabe-se lá de que modo, como se fosse possível chegar, sequer, a um número aproximado que não seja mero palpite, oferta de emprego, mão-de-obra disponível (como se trabalhadores fossem peças de estoque/reposição), incomensuráveis taxas de retorno, medições de renda, poupança, consumo, investimento, só faltando medir também o QI de toda a população, regularidades apuradas pela fria e dura, sempre patrocinada, porém “científica” fórmula estatístico-matemática, serviam a balizar pari passu os maquinistas dos rolos compressores. Edgar Morin (Compreender não é preciso; in Martins e Silva: 30) descreve a ironia proporcionada:
Assim, a economia, a ciência social matemáticamente mais avançada, é também a ciência social e humanamente mais fechada, pois se abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, etc., inseparáveis das atividades econômicas. Por isso, os seus experts são cada vez mais incapazes de prever e de predizer o desenvolvimento econômico, mesmo a curto prazo.
A prisca sapientia provém de Keynes:
"Essa perda da compreensão dos fatores que determinam tanto o valor do dinheiro como os efeitos dos eventos monetários sobre o valor de bens específicos é um dos principais danos que a avalanche keynesiana causou ao entendimento do processo econômico." (Hayek, 1986: 73).
Presença fulgurante se deu an Argentina:

"O peronismo representou, com certeza, a apoteose do chamado Estado Social; quer dizer, daquele que sacrifica o desenvolvimento por políticas redistributivas, acreditando com isso estar remediando injustiças ou desigualdades sociais." (Mendoza, Montaner: 295)
Todos conhecemos os custos de los hermanos por entregarem o cofre à guarda do cleptomaníaco coronel, e sua bela partner.
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Objeto contábil
Certo dia, Vossa Excelência, o senhor criará um imposto para uso disso.
(Michael Faraday, ao chanceler britânico, sobre o uso da eletricidade.
Cit. Zeilenger, A face oculta da natureza, p. 131)
Metros, litros, quilogramas, quantidades até podem ser relacionados pelas quatro operações; porém, onde existe gente, fulgura a mais notável diferença:
A economia industrial era baseada na produção em série e no consumo de bens materiais, na utilidade marginal destes bens e na possibilidade de contá-los, pesá-los e medi-los. Por este motivo, ela aprimorou sobretudo os métodos para compreender e aperfeiçoar fenômenos de natureza métrico-decimal. Esta economia sente-se incomodada diante de recursos intangíveis, como as idéias, os valores, a estética, e é tentada a aplicar – de forma desajeitada – também a estes, os mesmo parâmetros e os mesmos métodos desenvolvidos em função dos bens tangíveis.
(De Masi, 2001: 15/6)
Santin concorda:
Medir ativos intangíveis é uma realidade delicada uma vez que costumam ser incertas, principalmente no caso do ‘conhecimento’. No mundo intangível sempre se estará diante de um cenário onde um indicador não revela a imagem completa. Geridos adequadamente, os ativos intangíveis podem ser a base de uma economia de retorno crescente.
(Lisete Santin, Conhecimento como Ativo Intangível, Jornal do Comércio, 16/10/2001: 25)
O aperfeiçoamento mercantilista
A avalanche tecnicista desencaminhou todas as relações. No século XVIII um escocês já conhecia os efeitos da promiscuidade entre governos e falsos empresários:
Todo o sistema de política que se esforce, seja por extraordinários incentivos, para destinar a uma espécie particular de indústria uma parte do capital da sociedade maior do que naturalmente atrairia, seja por extraordinárias restrições, para afastar de uma espécie particular de indústria parte do capital que do contrário nela se teria empregado, na realidade subverte o grande propósito que deveria promover. O Sr. Smith investigou, com grande engenhosidade, que circunstâncias, na Europa moderna, contribuíram para perturbar essa ordem da natureza e, sobretudo para encorajar a atividade nas cidades, à custa daquela do campo.
(Cit. Dugald Stewart in Smith, A., Teoria dos Sentimentos Morais: LXIV).
Montadoras de automóveis, bancos, empreiteiras, agências de publicidade, institutos de verificação, e as teles não concordam, mas até Voltaire (Vida e obra; Cartas Inglesas: Décima Carta: Sobre o Comércio: 16), que não era economista, tampouco cientista, muito menos empresário, mas apenas jornalista, reportou-se à diferença:
“Enriquecendo os cidadãos ingleses, o comércio contribuiu para torná-los mais livres, e, por sua vez, a liberdade ampliou o comércio”.
Ensina a modernidade:
O verdadeiro gerenciamento da economia do país reside na busca incessante de formas que permitam o funcionamento mais livre não só do sistema de preços, como do restante da economia nacional, com a respectiva eliminação das barreiras de mercado, pois elas tolhem a livre competição entre as empresas e premiam a ineficiência e o desperdício, impedindo que a economia otimize resultados, obtenha um melhor nível de produção e emprego e minimize o período de tempo necessário a recomposição dos desajustes.
(Peringer: 8)
Infelizmente, permanecemos na forquilha composta por por Hegel, Comte e Gramsci, pela haste que corresponde à legitimação da trapaça. E por Keynes, naquela que a completa.
A Nação padece, à despeito da avalanche de press-releases e estatísticas desvirtuadas. "Nunca, na história deste país", houve tanta corrupção, tanto crime, êxodo em massa, humilhações no exterior, tanto soldado nas ruas, e desemprego crescente, tanto juro cobrado, e instituto comprado. É hora de acordar do berço esplêndido:
Entre nós, o sintoma mais típico e persistente desse atraso é a confusa expectativa de que há uma espécie de 'força superior', o 'Estado', capaz de distribuir a todos os bens desejáveis deste mundo: emprego, salários altos, bem- estar - em suma - 'felicidade geral da nação'. Qualquer jornal que se pegue ao acaso revelará, enxertadas, notas de fundo populista, 'progressista' e nacional-corporativista que não mudaram nestes 30 anos passados, exceto que agora a encarnação do Satã a ser exorcizada não e mais o 'neocolonialismo' e sim o 'neo-liberalismo'. Só quando o público impuser ao Estado um profundo respeito pelos contribuintes e quando as fantasias de onipotência da burocracia forem contidas (e punidas) é que alcançaremos afinal o liberalismo.
(
Campos, Roberto, Do Estado gendarme ao Estado babá. - Zero Hora, 19/1/1997, p. 24)
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Notas
1 Hobbes, T., cit. Bobbio, N., 1991: 41.
2 Bolchevique significa ”maioria”, termo apropriado por Lenin contra os adversários liderados por Martov, que tiveram que se satisfazer com a designação de minoria, menchevique.

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