segunda-feira, 10 de março de 2008

Sobre Stálin

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A esclerose precoce condenou Lênin a vivenciar sua realização por pouco tempo. Em 1924 o espólio dos desatinos recebeu o novo tutor, Joseph Vissarionovitc Dzhugashvili, conhecido  mundialmente pela alcunha de Stálin (1), um “bruto demais”,  no adjetivo do próprio carrasco Lênin (2), em 1922:
Stálin é demasiado grosseiro, e este defeito, perfeitamente tolerável nas relações entre nós, comunistas, torna-se insuportável no cargo de Secretário Geral. Por esta razão, proponho aos companheiros estudarem um meio de removerem Stálin de seu posto.
NESTE PONTO Lênin tinha dupla razão. O comunismo é mesmo a expressão mais grosseira de uma organização popular; e Stálin lhe deixou muito longe. Lefort comenta a renovada barbárie:
Unificada, massificada e organizada por um partido único, a sociedade totalitária subverte todas as representações precedentes. O Uno totalitário - Stálin - inventa um Ego absoluto. Devorando seus próprios agentes, a “ciência do poder” constitui uma terrível unidade. O terror é aí regulamentado minuciosamente por um partido que detém as chaves 'científicas' do futuro. Aqui a história não passa de um imenso canteiro - Brejnev gostava muito deles - onde os cadáveres são desprezíveis em vista do grande desígnio da locomotiva burocrática. O terror se torna, então, o instrumento da sociedade e do Estado. (3)
Os que queriam reformar o sistema, “torná-lo mais humano e eficaz” fizeram as chacinas do Gulag iguais aos massacres de campos de concentração:
“O leninismo pode ser contemplado à luz do seu desenvolvimento como o primeiro movimento fascista do século 20.” (4)
D. Volkogonov viu nazismo e stalinismo serem a mesma coisa. (5) En passant pelo III Reich, Adolf Hitler realçou a semelhança:
“Se Stálin roubou um banco, não o fez para encher de dinheiro os próprios bolsos, mas para ajudar o seu Partido e movimento. O senhor não pode considerar isso um roubo de banco.” (6)
Os discutíveis fins continuaram “legalizando” os criminosos meios, para o doloroso, nem por isto menos veemente protesto, acima de tudo científico, porque pautado na quântica, onde há interação, trazido pela visitante Ema Goldmann:

Essa perversão dos valores éticos cedo se cristalizou no lema dominante do Partido Comunista: os fins justificam os meios. Não há maior falácia do que a crença de que objetivos e propósitos são uma coisa e métodos e táticas outra. Essa concepção é uma poderosa ameaça à regeneração social. Toda a experiência humana ensina que métodos e meios não podem ser separados de seu objetivo principal. Os meios empregados acabaram por se tornar, através de hábitos individuais e da prática social, parte e parcela do objetivo final; eles exercem sua influência sobre ele, modificam-no até que objetivos e meios se tornem uma coisa só. Desde o dia de minha chegada na Rússia eu senti isso, a princípio vagamente, depois com uma clareza cada vez maior. Os grandes e elevados objetivos da Revolução tornaram-se tão enevoados e obscurecidos pelos métodos utilizados pelo poder político para atingi-los, que é difícil distinguir entre os meios temporários e o propósito final. Psicológica e sociologicamente, os meios irão necessáriamente influenciar e alterar os fins. Toda a história do homem é uma prova contínua da máxima de que retirar conceitos éticos dos métodos utilizados significa mergulhar nas profundezas da desmoralização total. É aí que reside a verdadeira tragédia da filosofia bolchevique tal como foi aplicada à Revolução Russa. Que esta lição não tenha sido em vão. (7)
A lição demorou mais de sessenta anos para ser observada. Marc Ferro sabia quão elevada e respeitosa se fazia a “democracia” bolchevique:

Aquele que contesta as decisões do Partido não é um oponente, já que se opor à ciência é loucura. Aquele que contesta é irracional, doente, anormal; ele pensa 'diferentemente' e como tal é enviado, não para a prisão, mas para o asilo. (8)
Um dos mais “confortáveis” asilos foi instalado na Sibéria.
Jürgen Habermas, assistente de Adorno nos anos 50, foi dos quem mais se preocupou em estudar os mecanismos psicológicos e culturais desta alienação e dominação. (9)
Stálin, quiçá por estes “talentos”, liquidou com Trótski, até então pretenso herdeiro do esbulho, assumindp as rédeas e os chicotes para esfolar o lombo de um povo ineditamente oprimido.
O baixinho troncudo, fruto do ajuntamento de uma desconhecida lavadeira e de um sapateiro alcoólatra, expulso do Seminário de Tifilis (1899) e na posse do materialismo científico, rígido e decidido, estava completamente credenciado. De economia, ou do marxismo, não necessitava entender.
Dez anos depois do golpe as grandes cidades soviéticas estavam a beira de um colapso, na escassez de alimentação. O ex-padre até já havia herdado uma economia exaurida, debilitada, estéril e desmotivada, conseqüência da “habilidade” de seu antecessor. O novo gangster não titubeou: repetindo os atos leninistas, colocou o exército a invadir os campos, saqueando a humilde gente. Resolvido o problema daquele ano, no próximo não haveria mais produção, mais nada a retirar, exceto vidas. A caçada humana, desta feita, foi ainda mais farta e variada: nos festejos de aniversário, em dezembro, o criminoso apagou cinqüenta velinhas e cinco milhões de camponeses, sobrando ainda dez milhões para campos de trabalho forçado. Soljenitsyn refere-a à estarrecedora soma de sessenta milhões de mortos durante o período da tirania stalinista. (10)
O fim de Joseph não foi melhor do que o do colega Vladimir:
“Assim como Lênin foi para a eternidade delirando sobre a eletricidade, também partiu Stálin ouvindo uivar dos lobos imaginários.” (11)
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O melancólico fim
As mãos pós-stalinistas, de linhas cada vez mais sulcadas, continuaram mostrando o caráter sanguinário do mito soviético. A II Grande Guerra escancarara porteiras. As atrocidades podiam serem carreadas a outros cenários, novas vítimas. A covardia perpetrada na Hungria e na Polônia, anexada do espólio nazista, ofereceram seqüelas irrecuperáveis.
Operários e campesinos de diversas nações, mulheres e crianças, ironicamente, pela ciência que se dizia das classes inferiores, nunca tinham sido tão sacrificados. Isso não podia mesmo se perpetuar.
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O farol da liberdade
Andrei Sakharov almejou e predisse, em julho do marcante ano de 1968, portanto na geração precedente, o desmonte, a sucumbência natural da cruel ditadura marxista:
“A 'ocidentalização', a liberação do sistema soviético são não só desejáveis, mas prováveis.” (12)
Sobre o vaticínio Schwartzenberg concordou:
“É a tese de “convergência”. Os países do Leste e os do Ocidente convergem para um modelo comum”. (13)
Reagan, seis anos antes do muro virar pó, prognosticava, à senhora Tatcher, ao parlamento britânico e ao povo em geral, que qualquer tirania tinha como destino “a pilha de cinza da história”. Muito mais do que governos ou países, são os indivíduos que convergem:
Uma ética de uma sociedade pós-tradicional globalizante implica o reconhecimento da santidade da vida humana e o direito à felicidade e à auto-realização – ligado à obrigação de promover a solidariedade cosmopolita e uma postura de respeito perante ações e seres não humanos, atuais e futuros. Longe de vermos o desaparecimento de valores universais, talvez esta seja a primeira vez na história da humanidade en que esses valores apresentam um verdadeiro ponto de apoio. (14)
Essas torpes concepções cientísticas, necessária e finalmente, se modificam; cedem lugar à nova ordem, (ou desordem) nem toda expressa por códigos comportamentais posto que muito mais ampla, mas legal e legítima, cientificamente correta e apreciada, numa reversão por convergência.
A China, um dos últimos rincões do barbarismo, tem, na megacapitalista e liberal Hong-Kong, sua esperança, sua alegria, seu orgulho; e, agora, até sua renda, proveniente dos capitais privados ali investidos. Sua economia finalmente muda, molhada pela Coca-Cola e pelo furacão Hong-Kong, “como se o fantasma do liberal escocês Adam Smith estivesse fazendo um estágio por lá. Seu Produto Interno Bruto tem crescido a quase 10% ao ano, nos últimos anos.” (15)
De Mao, ela passa a bem. Ao invés dos vícios sustentados pela visível e tétrica mão de ferro, surrupiadora do suor de cada um, os chineses podem começar a conhecer as virtudes da mão invisível estabilizadora, a qual paira sobre a ética da realização individual e, por extensão, social.

O grave dano social cartesiano

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Notas
1. Stálin, cit. Burns, Edward McNall, Lerner, Robert E. e Standish, Meacham, p. 695.
2. Lênin, cit. Jorge, Fernando, p. 60.
3. Lefort, Claude, cit. em Descamps, C., p. 75
4. O Estado de São Paulo, 18/6/1995, p. A19.
5. Hook Sidney, O Estado de São Paulo. 17/7/1994, p. 2.
6. Documentos da Polícia Alemã; cit. Toland, John, Adolf Hitler, p. 657.
7. Goldman, Emma, My Further Disillusionmet with Russia, 1924, cit. Woodcock, p. 14.
8. Ferro, Marc, L'Histoire sous surveillance, p. 124.
9. Habermas, Jürgen, cit. Lacoste, p. 142.
10. Soljenitsyn, cit. Jorge, Fernando, p. 64.
11. Lênin, Stálin, cits. Johnson, Paul, p. 383.
12. Sakharov, Andrei, Manifesto publicado no The New York Times, 22/7/1968.
13. Schwartzenberg, Roger-Gérard, Sociologia Política, p. 213.
14. Giddens, A., p. 286.
15. Econ. Guilherme Socias Villela, Aí vem a nova China, Zero Hora, 6/2/1998.


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