domingo, 2 de março de 2008

A voracidade legiferante

-
Este estudo foi encetado há 10 anos.A década dos gangsters e cangaceiros recém começava. Infelizmente o approach continua atual. Ei-lo.-
A instabilidade de nossas leis é realmente um inconveniente gravíssimo. Acho que deveríamos remediá-la decidindo que sempre haveria um intervalo de um ano entre a apresentação de uma lei e o voto definitivo. Seria em seguida discutida e votada, sem que se pudesse mudar uma só palavra nela e, se as circunstâncias parecessem exigir uma resolução mais pronta, a proposta não poderia ser adotada por maioria simples, mas por maioria de dois terços de ambas as Câmaras. Thomas Jefferson¹
A tempestade legislativa
O progresso encaminhado pela ordem central é sempre avanço ao governante; e um atraso ao cidadão. Sem embargo, só enseja a perfídia cada vez mais exacerbada, imprescindível a diletantes e tiranos:
Outros paradigmas, estes forjados e consolidados no decorrer da modernização sócio-econômica do país induzida pelo Estado com grande ênfase especialmente a partir da segunda metade dos anos 50, estão basicamente vinculados ao caráter normativista do positivismo de inspiração kelseniana. Tais paradigmas consideram o Estado como fonte central do direito e a lei como sua única expressão, formando um sistema formalmente coerente. Esta abordagem implica, de acordo com o que já foi dito antes, a concepção de dogmas, atuando como um código latente que determina a natureza, o sentido e o alcance das atitudes, dos valores e das orientações dos manipuladores técnicos do direito. (2)
Kelsen havia se arrependido ainda antes de 50, mas a obssessão ordenativa que ele ajudou a plantar, como vimos, não parou mais de dar frutos, ainda mais no Brasil:
Deixada de lado qualquer preocupação ideológica e apenas para conceder às novas gerações brasileiras o direito de conhecer o que se passou no país durante um período assinalado por grandes transformações no mundo, referimos que, no bojo da Carta de 37, criou-se a figura da legislação autoritária, fruto exclusivo da vontade do Executivo. Por incrível que isso possa parecer, o decreto-lei ficou para sempre nas constituições promulgadas após. Apenas mudou de nome na carta vigente, em cujo texto surge como 'medida provisória', adequada a situações de excepcional urgência para matérias de grande importância. Condicionamento apenas lírico, porque, em verdade, o Executivo usa e abusa da MP. É de esperar prevaleçam o bom senso e a auto-estima do Congresso para acabar com a postura imperial do Poder Executivo. (3)
Não sabemos o que significaria “bom senso”, mas a “auto-estima” foi vendida por R$200.000,00 a cabeça. E a reeleição, assim legitimada, consagrou o mensalão.
A permanência de milhares de dispositivos só podem gerar o colapso:
Leis demais confundem Justiça brasileira - O País tem 16.946 leis em vigor, das quais 9.252 são ordinárias, que dizem respeito ao dia-a-dia do cidadão. Elas são distribuídas em 17 códigos.” (4)
É inviável, sequer, ler o exemplar do Diário Oficial no dia de sua publicação.
Para tanto, são necessários semanas, ou até meses:
Diário Oficial no Guiness - A edição de ontem do Diário Oficial da União bateu o próprio recorde e circulou com 2.472 páginas. Gasta 1,1 toneladas de papel. Deve conquistar mais uma vez o título no Guiness Book 99.” (5)
"Desde a Constituição Federal de 1988 até o ano passado, 3.994 leis foram questionadas no Supremo Tribunal Federal. 'Número recorde em qualquer democracia', comentou a professora e pesquisadora do Judiciário brasileiro, Maria Tereza Sadek." (6)
Os estados padecem:
Assembléia remove entulhos legais - O ex-coordenador técnico do projeto, ex-senador José Paulo Bisol calculou que de 1947 a 1996 existam 12 mil leis e 36 mil decretos sem qualquer função prática. O grupo descobriu muitas aberrações jurídicas.” (7)
Emaranhado jurídico confunde cidadãos - O presidente da Câmara criou uma comissão de deputados-juristas para consolidar e atualizar a legislação” (8)
Há quem fale em duzentas mil leis. (0)
“Nos últimos quatro meses o Senado enviou à sanção presidencial e promulgação nada menos do que 144 novas leis e decretos. Ou seja, aprovou nove leis diferentes a cada semana. Dois terços foram fabricados pelo Governo Federal”. (10)

Taylorismo legislativo
Pode haver, nesta velocidade, algum esteio legislativo formal e intrinsecamente correto? Quantos lêem e o corrigem antes da publicação? E depois? Há algum instrumento de análise, de acompanhamento fático da disposição teórica tornada positiva? Esta linha de produção acelerada traduz ou visa o bem comum? E quando a planta da produção é transferida às salas do Planalto a parir milhares (disse milhares mesmo, não existe este absurdo) de Medidas Provisórias, artifícios jurídicos “inventados” para “deliberações de extrema urgência e notório interesse público”, mas invariavelmente usados no interesse particular do Executivo, do detentor eventual mas quase eterno, o que isto tem a ver com democracia? Vejamos o que dizem de uma das tais leis positivas - a protecionista lei de Reserva de Mercado da Informática:
Ficamos impedidos de presenciar a crise gerada pela introdução de novos veículos e o transe transformador processado. Isto porque para os poderes constituídos parecia não interessar a difusão daquilo que estava longe de seu alcance, isto é, de sua compreensão e possibilidade de domínio. (12)
Uma dantesca, fruto de mensalão, coibiu importações de automóveis por particulares e pequenas empresas. "O Brasil não tem dinheiro para ficar aí, importando automóveis", disse o da Bobonne. Então adquiriu o porta-aviões, que é mais moderno.
Bruno Leoni tem explicação bastante racional:
A legislação é o ponto terminal do processo no qual a autoridade sempre prevalece, possivelmente contra a iniciativa e a liberdade individuais. Considerando que os resultados científicos e tecnológicos são sempre devidos a minorias relativamente pequenas ou a indivíduos isolados, com freqüência, se não sempre, em oposição as maiorias indiferentes ou ignorantes, a legislação, especialmente hoje em dia, reflete o desejo de uma maioria contingente, dentro de um comitê de legisladores que não são necessariamente mais instruídos ou mais esclarecidos do que os dissidentes. Onde prevalecem as autoridades e as maiorias, como na legislação, os indivíduos precisam se render, não importando se estão certos ou errados. (13)
Lamentáveis estados
Nestes termos prevaleceram a Revolução Francesa, a Bolchevique, o nazismo e o fascismo. E, certamente, outras armações estão por vir. Como sair desta? O professor Leoni indica pelo menos como não entrar:
“A formulação de leis é muito mais um processo teórico do que um ato de determinação e, enquanto processo teórico, não pode ser resultado de decisões emitidas por grupos de poder, às custas das minorias dissidentes.” (14)
Miguel Reale, de certa forma, dá razão a Leoni, Platão e Júlio de Castilhos e suspeita da capacitação aferida por uma via de poder capaz de despejar índios, cantores, artistas, jornalistas, atletas e metalúrgicos, eleitos pelos mais variados critérios, nenhum deles por conhecimento, formação ou talento para o que se dispõe:
“O sistema jurídico não é tarefa a ser executada por leigos, visto que o Direito é Ciência.” (15)
Entre direitos e obrigações inventados por nossos estabelecimentos legislativos, um dos mais pitorescos ganhou a votação da maioria e agora se permite, no estado do Rio de Janeiro, que o consumidor leve sua bebida para degustá-la dentro dos bares, desde que neles se gaste com outra mercadoria qualquer." (16)
São Paulo também produz as suas, entre elas a que “proíbe a venda de café com açúcar” e a lei que “obriga a venda de preservativos em bancas de revistas, floriculturas e postos de gasolina”. A fonte não informou se motéis já tem sua própria regulamentação.
O Rio Grande do Sul, pródigo em leis pela influência positivista, vê no proprietário de automóvel o dinheiro a ser arrancado:
Já está vigorando a lei que obriga a trafegar com faróis acesos durante o dia nas estradas estaduais do Rio Grande do Sul. Está vigorando a lei que obriga a usar cinto de segurança para quem dirige ou é passageiro de automóvel.Vigora a lei que obriga ao proprietário de automóvel do estado do Rio Grande do Sul a pagar, a título de imposto anual, o dobro do que é cobrado no vizinho estado de Santa Catarina. Está vigorando a lei que obriga a não fumar em recintos públicos ou fechados. E por aí vão as leis, obrigando as pessoas a tudo. (17)
Devemos lembrar, ainda a “venda”, a “privatização” das estradas, a qual o poder público enseja que grupo econômico, que bem se assemelha a uma quadrilha, construa castelos à beira do leito, com o fito de extorquir esmola de cada transeunte, flagrante desrespeito a inúmeras disposições jurídicas, sociais, morais, éticas e comerciais.
A Câmara Municipal da Porto Alegre de 1996 aprovou o projeto de lei que proíbe o auto-serviço em postos de gasolina na justificativa de evitar os “riscos de segurança”, o que foi copiado imediatamente pela legislação nacional. (O governo americano, ao permitir o auto-serviço, revela descaso com o cidadão, ou crê que ele não é tão imbecil?) A “lei”serve, também, segundo as justificativas, para “impedir o desemprego dos frentistas”. Devemos então, como no fim do século passado, para defender os empregos, destruirmos todas as máquinas? Acabar com tratores em prol do trabalhador rural? E agora com os computadores?
Há rumores de que o afã de conscientizar o cidadão está precipitando uma “lei” que obriga o uso do guarda-chuva na chuva, sob pena de severas multas a alguém pilhado em tamanha infração contra si próprio, algo que poderá trazer prejuízos ao Estado, eventualmente obrigado a prestar assistência médica.
O renomado escritor João Ubaldo Ribeiro, leigo em formação jurídica, surpreende-se com o modo, intensidade e abrangência das leis produzidas:
É possível matar um fiscal do Ibama, responder a processo em liberdade e - quem sabe - obter-se uma absolvição. Mas matar um papagaio pode ser crime inafiançável. Legisla-se tão abundantemente sobre impostos que a convicção geral é de que quem pagar tudo, observando rigorosamente a norma legal, quebra em questão de meses. E por aí vamos. Não acho que esteja longe da cabeça de algum legislador apresentar projeto abolindo a pobreza ou a mortalidade infantil. E revogando-se todas as disposições em contrário, o que, já por aí, é uma bestice, pois se há uma nova lei, ela passa a vigorar, não podendo viger dispositivos que a contrariem. Mas fica bonitinho, no final de uma nova e supimpa leizinha que vai resolver tudo. (18)-
Fascismo
Era do que ironizava Joseph Proudhon:
“Ser governado é ser cuidado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, identificado, doutrinado, aconselhado, controlado, avaliado, pesado, censurado e mandado por homens que não tem nem o direito, nem os conhecimentos, nem valor para fazê-lo.” (19)
O socialista Poulantzas, cansado de tanto “legalismo”, afirmou categoricamente:
"A lei não passa de um conglomerado de interditos e de censura.” (20)
Duverger mostra como ascende o macête:
Os positivistas do século passado chegavam, portanto, a negar a liberdade do homem, que eles consideravam como puramente ilusória, a fim de tornar possível a existência das ciências sociais. Engajavam-se assim em debates filosóficos sem conclusões. Estão hoje ultrapassados, pelo menos no que concerne às ciências sociais. (21)
Getúlio se matou, mas o positivismo vive. Duverger não conhece "este país":
“O Brasil ainda é seu mais influente reduto.” (22)
O fascismo, mutatis mutandis, continua impregnado no tempo e no espaço:
Hoje, o subdesenvolvimento pede o superpoder. Como se os Estados do Terceiro Mundo muitas vezes dilacerados por divisões étnicas ou tribais, prejudicadas pelo atraso econômico, tentassem compensar esses obstáculos através de um acréscimo de autoridade política. Como se um poder unificado e concentrado fosse melhor capacitado para impor a unidade nacional e a modernização econômica. Como se o déficit econômico pudesse ser contrabalançado por um excedente político. (23)
Há quem o veja agigantado:
O modelo monopolista sindical que temos é fascista. Só que o corporativismo fascista falava, pelo menos, na harmonização dos interesses de toda a sociedade, em oposição à luta de classes que o ex-recente líder socialista Mussolini conhecia bem. Conseguimos combinar resíduos do corporativismo fascista com o mercantilismo colonial e acabamos reduzidos à condição de súditos, não de cidadãos. (24)
__________
Notas
1. Cit. Tocqueville A Democracia na América, p. 237.
2. Casado, José, Folha de São Paulo, Planalto tenta mapear labirinto jurídico, 18/6/1995, p. A12
3. Correio do Povo, Editorial, Limitação constitucional as MPs, Porto Alegre, 11/12/1996, p. 4.
4. O Estado de São Paulo, 10/11/1996, p. A4.
5. Zero Hora, Porto Alegre, 5/12/1998, p. 10.
6. http://conjur.estadao.com.br/static/text/67173,1 - 13/6/2008.
7. Vargas, Milton, História da Técnica e da Tecnologia no Brasil

8. Zero Hora, Porto Alegre, 6/4/1997, p. 16.
8. Monforte, Luiz Guimarães, O Estado de São Paulo, 5/11/1995, p. D2.
10. Correio do Povo, Porto Alegre, 20/10/1996, p. 2.
11. Idem, 22/12/1996 p. 7.

12. Idem, ibidem
13. Leoni, Bruno, A Liberdade e a Lei, p. 24.
14. Idem, p. 200.
15. Reale, Miguel, O Direito Como Experiência, p. 97.
16. Lei aprovada pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Zero Hora, 12/5/1996.
17. Santana, Paulo, Insânia Dominante. - Zero Hora, 9/5/ 1996.
18. Ribeiro, João Ubaldo, Manchete, Rio de Janeiro, 24/8/1996, p. 34.
19. Proudhom, J., Os grandes escritos anarquistas, p. 15.
20. Poulantzas, Nicos, O Estado, O Poder, O Socialismo, p. 93.
21. Duverger, Maurice, p. 6.
22. Bastos, Wilson de Lima, p. 78.
23. Schwartzenberg, Roger-Gérard, O Estado Espetáculo, p. 83
24. Campos, Roberto, O Estado do Abuso, Jornal do Comércio, Porto Alegre, 22/05/1995, p. 4.

Nenhum comentário:

Postar um comentário