A serração teórica de Maquiavel, Hobbes, Rousseau, e as conseqüências das elevadas ações de César Borgia e principalmente de Napoleão permaneciam na retina do pacífico povo germânico, por demais atingido. Os alemães também passaram a querer o destino histórico glorioso, com solução definitiva. Numerosos e importantes intelectuais se perfilaram para ajudar no embarque. Outrora a salvo pela descentralização tradicional, e não alinhada com a ordem eclesiástica, o povo agora precisava de “contraveneno” às agressões. A “deplorável desorganização por desagregação” só poderia ser suprida com um reagrupamento étnico-linguístico, a totalidade orgânica preconizada por Hegel, o Estado da Prússia, agudo apelo emocional que encontrava facilidade de penetração diante de uma gente amedrontada, ignorante, sem qualquer outro meio de comunicação que não fosse a escrita, ainda escassa, e de poucos adeptos. Continuava fácil embrulhar incautos. E lá se foram eles, intrépidos, em assustador tropel de cavalos, com a falsa sensação da onipotência de São Jorge, rumo aos canos de grande calibre. A teoria, a experiência e o lirismo indicavam a única estratégia verdadeiramente eficaz - a união em torno da bandeira humilhada:A derrota frente a Napoleão e a resoluta defesa por parte dos intelectuais da supremacia da cultura germânica converteu-se em ideologia popular: surgiu o sentimento de que a verdadeira força de uma nação residia no âmbito do espírito e da cultura. Segundo Soppè, entre 1850-80 dominava na ciência alemã um materialismo mecanicista, segundo o qual a realidade obedeceria a leis inerentes às próprias coisas, matéria e força seriam constituintes últimos do real. Dentro desta perspectiva, o objetivo da ciência seria o estudo da matéria com vistas a descobrir as leis mecânicas que regem o mundo.(3)Que lei adotava a sociedade? A força do bem, contra a força do mal, ou animal. A Nação, força da raça pura, para se afirmar requeria a batalha. Dos combates só poderia sair um vencedor: o que detivesse maior poder de destruição. O exemplo de liberdade francês paradoxalmente propugnava pelos direitos do homem, mas as vitórias daquela Nação vieram pelo exército. E o Código de Napoleão ensinara como ordenar o “gado” em torno de “altos propósitos”.-A astúcia da cobraAs garantias individuais, mal expressas na Revolução Francesa, foram logo suprimidas pelo ímpeto totalitário. A velha justificativa determinava ao Estado desconsiderar opiniões isoladas, eis que em jogo a “segurança nacional”, bem maior conjugado com a afirmação da personalidade abstrata do país, mito nacionalista irracional, romântico sonho de coletivismo tribal, mais uma vez consagrado para ser “vendido” à obscura gente:
Contemporaneamente o mito vai se identificando com a ideologia política: é que o processo mitológico sempre coloca suas crenças a serviço de uma ideologia. Barthes,coincidindo com este entendimento, afirma que através do mito consegue-se transformar a história em ideologia.“Jurisconsultos” positivistas são imprescindíveis à propagação mitológica:
(4)
Com efeito, hoje sabemos que o direito está imerso numa atmosfera ideológica e a teoria geral do direito, empenhando-se em abstrair este aspecto do direito, só pode falsear as perpectivas e, com isso, fica, por sua vez, sujeita à acusação de ser mais ideologia do que ciência. (5)O veículo da cobraA ideologia dos diabólicos Reichs iniciara já no século XVIII, através de Johann von Herder (1744-1803). Na década de 1780, quando começavam as peripécias francesas, Herder identificava a genuína cultura comum do seu povo - o Volk - robusto e versátil veículo, apto a abrigá-la e levá-la a vários terrenos: na Psicologia, na História, na Política, na Sociologia, no Direito, na Economia, na Antropologia, no barro, no asfalto e, por fim, no precipício. Continuaram a obra Friedrich Schegel (1772-1829) e Friederich Karl von Savigny, este influente às ciências jurídicas européias pelo sucesso da ênfase legalista-positivista. Buscando, pelo método de averiguação histórica, estabelecer laços e procedimentos comuns à propositura orgânica de Hegel, Savigny dizia captar o “espírito do povo”, a "genuína cultura" de Herder. Apresentou-se a prescrever as tais leis “justas” daí emanadas. O título espelha o grau da febre que se instalou na Europa após o furacão napoleônico: A Vocação de Nosso Século para a Legislação e a Ciência do Direito (1814). Nader corrobora:
A orientação codicista, que ainda hoje impera, lamentavelmente, em pretórios, alcançou sua fase de ouro com a Escola da Exegese, na França do Séc. XIX. Sua formação positivista é indiscutida, pois identifica o Direito com o conteúdo do Codex operando apenas no plano da Dogmática Jurídica.(6)Savigny enalteceu as “forças espirituais da Nação” (Volksgeist), única fonte legitimadora de qualquer ação. Para tanto, o precedente da Polizeiwissenschaft,
aquilo que tende a afirmar e aumentar a potência do Estado, a fazer bom emprego de suas forças, a procurar a felicidade de seus súditos e, principalmente, a manutenção da ordem e da disciplina, os regulamentos que tendem a lhes tornar a vida mais cômoda e a lhes dar aquilo que necessitam para a subsistência. (7)Para sobrevivência, o imediatismo positivista saído da escola maquiavélica, mais que sedutor, aparecia necessário. E porque todo o poder também necessita de uma ideologia que o justifique, precisa também de intelectuais que o costurem. A Germania então, vítima direta dos propósitos hegemônicos e que já havia parido Hegel, viu nascer uma plêiade de notáveis construtores de ilusão. Inúmeros adeptos, intelectuais, a Polizeiwissenschaft, todos esquentaram as caldeiras do Volkswirtschaft, a presença do Estado na direção e controle de todas as atividades culturais e econômicas de seu povo. Explica-nos mais detalhadamente Ludwig Von Mises:
O termo Volkswirtschaft foi empregado na Alemanha, durante muito tempo, pelos partidários da onipotência governamental. Com a tendência moderna de planejamento nacional e de autarquia nacional, a doutrina implícita nessa palavra alemã tornou-se popular por toda a parte. É o socialismo realizado nas fronteira políticas de cada nação. (8)O cidadão honrado deveria colocar sempre os interesses volkswirtschaftliche (os interesses da nação) acima de seus próprios e egoístas interesses. O bem-estar (que provou-se o maior mal-estar) nacional passava a preceder o indivíduo, flagrante alinhamento ao “Contrato Social” de Rousseau. Mais uma vez, ainda aquém do conhecimento, faltou imaginação.
Destarte, as pacíficas e liberais fundamentações político-jurídicas de Frederico II e sua corte, de Goethe a Kant, e mesmo as de Arthur Schopenhauer, viram-se neutralizadas pelos projetos alemães positivamente combinados de Herder, Hegel, Fichte, Schelling, Ihering, Hans Kelsen, Karl Savigny, Dilthey, Wundt, Gobineau, Engels, Marx, Freud, Jung, Max Weber, Franz Oppenheimer, Friederich Wieser e Carl Schmitt.
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O professor de filosofia Johan Gottlieb Fichte (1762-1814) merece destaque. Como todos os passageiros do trem dos infortúnios, defendia a Revolução Francesa e glorificava a obra de Rousseau; com a adesão, tomou fama de democrata, já moldada por ser aluno e até meio discípulo de Kant. Fichte, todavia, modificara seu entendimento a partir da decisiva invasão napoleônica, quando então perverteu a base teórica de Kant, criando chicanas no trabalho do ex-afeto. Teve sucesso. Fichte foi precisamente descrito como “pai da unidade alemã, filho da Revolução e de Napoleão” (9).
Para o plagiador Johan, como fora para Hegel, Savigny e Comte, o Direito deveria pautar a política da força, do determinismo vetorial, da lei do mais forte, do controlador.
Bertrand Russel enquadrou a bestialidade:
Fichte estabeleceu que a educação deveria ter por objetivo destruir o livre arbítrio, de modo que as crianças, depois de deixarem a escola, fossem incapazes, pelo resto de suas vidas, de pensar e agir de maneira diversa daquela que seus mestres teriam desejado. Mas este era, em sua época, um ideal atingível. O que ele considerava o melhor sistema, Karl Marx produziu. (10)O que o mundo assistiu, a partir de então, de Bismarck a Hitler, foi uma coleção de insanidades.
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Notas
1. Cit. Fadiman, Clifton, org., p. 264.
2. Leadership and the new science, cit. Nóbrega, Clemente, p. 197.
3. Pereira, Julio Cesar R, p. 38/39.
4. Warat, Luiz Alberto, Mitos e Teorias na Interpretação da Lei, p. 128.
5. Perelman, p. 621.
6. Nader, Paulo, p. 174.
7. Foucault, Michel, Resumo, p.85.
8. Ação Humana - Um Tratado de Economia, p. 316.
9. Cit. Jouvenel, Bertrand de, por Chevallier, Jean Jacques, p. 232.
10. Cit. Russel, Bertrand, p. 94.
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