segunda-feira, 17 de março de 2008

For the bigode

Não é afinal tão grande a diferença entre autocracia de um monarca hereditário, legitimada através da fórmula da representação, e a pseudodemocracia de um imperador eleito.
Hans Kelsen*


PELO MAR viajavam as caravelas, mas também algumas pragas, para o desencanto de Gabriel García Márquez:
"Acabamos por nos tornar um laboratório de ilusões falidas. Nossa maior virtude é a criatividade; no entanto, não temos feito muito mais do que viver doutrinas requentadas e guerras alheias, herdeiros de um Cristóvão Colombo desventurado, que nos encontrou casualmente quando estava à procura das Índias." (Ilusões para o Século 21; Folha de S.Paulo, 14/3/1999: 3).
Podemos compreender nosso maldito desiderato:
"Na Argentina, como no Brasil, na década de 20, há um esforço poderoso de definir a identidade nacional: estamos no momento da criação dos nacionalismos. Em ambos os países critica-se o modelo liberal conservador adotado no século anterior. O liberalismo e o democratismo são postos em xeque. Os fantasmas vermelhos do democratismo e do bolchevismo são agitados para reivindicar a ordem autoritária e disciplinadora, formadora de um povo uniforme que, no caso argentino, identifica-se como não nacional, estrangeiro e freqüentemente judeu. Em ambos os países se afirma que a fórmula, inautêntica, inexpressiva, é cópia de instituições alienígenas que não correspondem ao país real. Foi nesta mesma época da visita de Einstein que se publicou a obra organizada por Licínio Cardoso, ‘À Margem da História da República’, na qual essas críticas são formuladas por O. Vianna e outros. Dez anos antes essa linha de argumentação tinha seu expoente em Korn, na Argentina e Torres, no Brasil. Na construção do nacionalismo autoritário argentino prevalece uma perspectiva ‘romântica’ que procura na história nacional e ibérica, na sua continuidade, os fundamentos de uma identidade cultural e política que apela ao autoritarismo. No Brasil, a descrição sociológica, de raiz positivista e especialmente comtiana, é um fundamento importante de sua construção que, por certo, coexiste com outras fontes de fundamentos." (Hugo Lovisolo, Einstein: uma Viagem, duas Visitas, Estudos Históricos: 55-65; Moreira, e Videira, 234/238).
Atolamos na lama alastrada, do Oiapoque à Patagônia:
"O peronismo representou, com certeza, a apoteose do chamado Estado Social; quer dizer, daquele que sacrifica o desenvolvimento por políticas redistributivas, acreditando, com isso, estar remediando injustiças ou desigualdades sociais." (Mendoza, Montaner: 295).
Falsos empresários, banqueiros de ocasião, burocratas e formadores de opinião preferiam a hipocrisia fascista, em vez do monstro vermelho, assim cumprindo a narração e profecia de Ruy Barbosa:
"Deste feito, o presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo." (Cit. Bonavides: 317).
E lá vinha a justificativa correspondente:
"Os efeitos da guerra sobre a economia brasileira forçaram o governo a encarar com mais urgência o problema das indústrias básicas, levando-o a não hesitar mesmo diante de favores considerados como uma intervenção direta do Estado na esfera econômica." (Korontai: 112).
Se Donald Duck engolira o blefe, a Zé Carioca tocou o requentado:
"Getúlio Vargas, líder da Revolução de 1930, é apoiado por políticos reformistas e liberais [?] e inspirado na doutrina keynesiana. Na realidade, o desenrolar de seu governo não representou ruptura com o passado, mas reacomodação de interesses." (Bilhão: 138).
Se os fascismos italiano e alemão correspondiam a uma fase capitalista desenvolvida, o Estado Novo deveria corresponder a uma etapa capitalista inicial. E se aqui havia quermesse, lá o banquete era farto e rendoso, ou oneroso:
"Em 1929, as despesas federais para todos os bens e serviços montavam a 3,5 milhões de dólares; em 1939, eram de 12,5 bilhões; em 1965, foram aproximadamente 57 bilhões. Em relação ao Produto Nacional Bruto cresceram de 1,7% em 1929 para 8,4% em 1965 e anteriormente, na mesma década, ultrapassaram 10%." (Galbraith, 1968: 251).
Johnson (p.232) sublima: “Os anos 30 formam uma época de mentiras heróicas”.
A multiplicação da mentira
Mentiras têm pernas curtas, mas podem se multiplicar.
Grande amigo de Einstein, David Bohm foi um dos baluartes da Teoria Quântica. Nasceu na Pensilvânia de 1917, para falecer recentemente, em 1992. O renomado físico morou no Brasil, trabalhando na USP, entre 52 e 54. Ao presenciar o “festival da corrupção” e desrespeito à ciência, e escreveu ao célebre amigo:
"O que caracteriza esse governo (Getúlio Vargas) é uma incrível e absoluta corrupção, de tal intensidade que nem mesmo um norte-americano imaginaria antes de vê-lo de perto. Do topo à base, todos aceitam propinas. Para ilustrar melhor o grau de corrupção, posso mencionar o fato de um homem, Adhemar de Barros, além de pobre e muito endividado, ao se tornar governador de São Paulo conseguir, em cinco anos, ser o mais rico da América do Sul. Poucas pessoas reagem com indignação contra esse fato. Notei que quando as pessoas se manifestam a respeito é para usar o ‘slogan’ de que ele ‘rouba mas faz’. Isso o diferencia de outros políticos que também roubam, mas nada fazem. O governo brasileiro fundou um Conselho Nacional de Pesquisas, com um orçamento para pesquisa de cerca de 10 milhões de dólares por ano. O Conselho, entretanto, não tem sido útil para a física brasileira. A maior parte do orçamento é usada para: A) despesas com uma grande estrutura burocrática; B) prospeção de urânio e de tório para envio aos Estados Unidos." (Einstein e a Ciência no Brasil; Ciência Hoje, v. 15, n. 90: 44/47; cit. Moreira e Videira: 267/268)
Eis a melhor explicação:
"Para Michaël Zöller, sociólogo alemão da universidade de Bayreuth, o que se chama de Estado é certamente um sistema de interesses pessoais organizados, uma Nova Classe. Como todos nós, sua ambição é aumentar a remuneração e a autoridade. Como classe, ocupam-se, pois, a desenvolver seus poderes, suas intervenções e sua parte no mercado, isto é, a apropriação pelo setor público dos recursos nacionais, operada através do imposto sobre a sociedade civil." (Sorman:74).
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* La democrazia, il Mulino, Bolonha, 1981, nova edição 1998: 131; cit. Bobbio, N., Teoria Geral da Política: a Filosofia Política e as Lições dos Clássicos: 373.

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