quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sobre o automóvel

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Tenho relutado em falar dessa paixão. São relevantes as razões. Diante do infausto, todavia, todo dia renovado, ora tomo coragem para abordá-lo.-
O AUTOMÓVEL promete a liberdade, a facilidade de mudar o cenário, influencia o trabalho, permite visitas a entes queridos e inimigos, se preferir. Tornou-se ícone do capitalismo, símbolo de status. Do transporte se faz até meio de esporte. São milhões de pessoas que gravitam nas suas possibilidades, desde sua montagem, aos produtos que lhes são imprescindíveis - governos, estradas, postos de gasolina, pneumáticos, autopeças, seguradoras, sinalizadoras, autoescolas, hotéis, órgãos publicitários, etc. etc. Tal envolvimento provém de nossa infância. Ainda antes de ensaiarmos os primeiros passos, somos sentados nos carrinhos. Em seguida, lá vem outros carrinhos, os de brinquedo, acenando um futuro de roda-viva, onde nada se repete, onde tudo pode ser novidade, sem rotina, um mundo de constante aventura.
Paulatinamente o automóvel se tornou um dos maiores apelos à ambição individual; e, por ser maior, tornou-se coletiva. Assim é que agentes publicitários acenam com veículos para atrair consumidores. TVs prometem carros de prêmio. Motivadores oferecem fotos de conversíveis, para mostrar que o êxito é possível, e desejável.
Toda esta parafernália, que de certo modo é compreensível, mas antes de tudo é antinatural, como quase todo artefato, corre paralela ao estupendo paradoxo: quanto mais seu desenvolvimento é incrementado, na mesma proporção carreia o infortúnio.
Jeremy Bentham, o célebre utilitarista do século XIX costumava pautar as ações de governo àquelas que atingissem o maior grau de felicidade, ao maior número de pessoas. Com o carro dá-se justamento ao contrário - atrai cada vez mais a infelicidade para um maior número de pessoas.
O rapaz, ainda antes de receber seus primeiros proventos, independentemente de classe social, já sonha com as quatro-rodas. Em seguida, pronto: lá está ele, endividado, mas sentindo-se realizado. Qual nada. Há muito mais a que se endividar - impostos, seguros, gasolina, estacionamentos, achacadores, manutenção, garagens, pequenos acidentes, desvalorizações e depreciações. Resultado: no mínimo a metade de sua jornada é consumida para suprir a garganta profunda ensejada.

Da inviabilidade
Mas há dois pontos mais decisivos de minha abordagem. Refiro-me ao colossal e crescente índice de acidentes 1, os quais ceifam incontáveis vítimas, diariamente, da face da terra. Certamente, sua ação é mais nefasta do que todas as drogas reunidas. Por outro lado, vislumbro sua virtual impossibilidade: é que a maciça fabricação, a industrialização e comercialização seriada não se fazem acompanhadas, e nem seria mesmo possível, da construção seriada de meios de rodagem.
Malthus se enganou apenas no fulcro, não no método, tampouco na observação. Os consumidores de veículos crescem de modo geométrico; mas os esteios de locomoção, sequer de modo aritmético.
Os fabricantes, sentados em suas pranchetas, permanecem a sonhar:
Quase 40 novos carros estão sendo criados e desenvolvidos no Brasil. Segundo Gerson Barone, gerente de Design da Volkswagen, há planos de criar dois novos carros por ano até 2012. '
Colocá-los no mercado vai depender da viabilidade econômica'. A Ford informa ter nove projetos em andamento, de diferentes segmentos. A GM tem 38 projetos em andamento no País. A Renault, que este ano inaugurou um centro de design em São Paulo, tem cinco. A Peugeot tem seis. A Citroën, tem três carros a caminho 2
Sugiro-lhes trocar de ramo. A viabilidade não é financeira, mas operacional. Aliás, o termo provém de via, não de recursos. As artérias estão cada vez mais escassas, e não há reparo.
Já não são poucos os alertas. Dentro em breve, as pessoas sairão de suas casas devidamente motorizadas, sentadas em cada vez mais confortáveis poltronas, com ar, som e até vídeos, para pararem, ainda antes da esquina, até a hora do almoço (quiçá do jantar), quando voltarão às suas casas, completamente exaustas.
Não me pergunte o quê colocar no lugar. Exatamente hoje a Europa viu um gajo voando com asas turbinadas, amarradas na cintura. Vai ver é essa a solução de nosso século.
De todo modo, posso afirmar: o futuro é maior do que o presente e o passado, que são limitados. Para adentrá-lo, basta ficar quieto. A Terra, ao girar pelo Sol, faz o futuro chegar até nós, e muito mais rápido do que qualquer veículo, queiramos ou não.
Como disse Lao-Tzè, "pela não-ação tudo pode ser feito".
É bom que tudo pare, mesmo. Especialmente o tráfego.
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1. A Polícia Rodoviária Federal registrou 1.345 acidentes, com 86 mortos e 867 feridos no feriado de Corpus Christi.
2. Estadão, 15/5/2008
3. idem,em 29/5/2008 - No melhor momento da sua história no País, a indústria automobilística foi a mais beneficiada pelos incentivos fiscais a investimentos concedidos pelo governo no pacote da nova política industrial. Dos R$ 6,1 bilhões em desonerações fiscais previstas para estimular os investimentos dos diversos setores da indústria até 2011, as montadoras e os fabricantes de autopeças vão ficar com R$ 3,2 bilhões, o que representa mais da metade (52,8%) dos subsídios.
A razão da barbada não é benemerente, tampouco estímulo industrial, pela obviedade da pujança, da produção e lucratividade que essas multinacionais tem apresentado. As montadoras costumam participar das contribuições de campanha. Na próxima eleição, parte da vultosa quantia perdoada retornará, porém diretamente, aos bolsos dos ora benfeitores.

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