terça-feira, 27 de maio de 2008

A dialética de Thomas Hobbes

O medo foi a única paixão da minha vida. Thomas Hobbes
Hobbes exigia a onipresença salvadora do soberano, com  seu Estado, montado e mostrado como uma engenharia perfeitamente organizada, apta a alimentar e socorrer o indivíduo diante da natureza perversa do seu semelhante. “É como um gigante constituído de homens comuns, um Leviathan. É maior e mais poderoso do que o homem e, por conseguinte, é como um deus, embora compartilhe com os homens comuns a mortalidade.”(2)
The Leviathan é “uma espécie de crocodilo, dragão, baleia ou serpente marinha”.(1) O título foi plagiado na Bíblia, de Jó (41:1) e dos Salmos (74:14, 104:26). A capa original traz desenho do monstro coberto por uma multidão de indivíduos microscópicos grudados como sanguessuga no corpo do boi.
POR DOIS MIL ANOS os governantes utilizaram as forças extra-terrenas para controlar populações.
Mesmo os ateus estão de acordo acerca de que não há coisa que mais mantenha os Estados e as Repúblicas do que a religião, e que esse é o principal fundamento do poderio dos monarcas, da execução das leis, da obediência aos súditos, da reverência dos magistrados, do temor de proceder mal e da amizade mútua para com cada qual; cumpre tomar todo o cuidado para que uma coisa tão sagrada não seja desprezada ou posta em dúvida por disputas; pois deste ponto depende a ruína das Repúblicas. BODIN, Jean, cit. CHEVALIER, Jean Jacques: 55
A astronomia, contudo, colocava em xeque tamanha abstração. Mister algo palpável, pelo menos de ser medido.  Foi o próprio Galileu quem incitou os eclesiásticos a estabelecerem a matemática como instrumento hegemônico, divino porque meio utilizado pelo Grande Arquiteto do Universo. Com isso o célebre renascentista logrou escapar do destino lavrado ao precursor Giordano Bruno: 
Com as funções em 1623 de um novo Papa Urbano VIII, seu amigo pessoal e um espírito mais progressivo e interessado nas ciências do que o seu predecessor, publicou nesse mesmo ano Il Saggiatore (O Analisador), dedicado ao novo Papa, para combater a física aristotélica e estabelecer a matemática como fundamento das ciências exatas.
Hobbes contrabandeou a solução:
No modelo proposto por Descartes e seguido pelo criador do Estado Leviathan, a geometria era a única ciência que Deus houve por bem até hoje conceder à humanidade. Retomava-se Galileu, para que a língua da natureza era a matemática. O pensamento moderno é assim marcado por este ritual do pensamento a que logo se opôs Pascal com o chamado esprit de finesse. A matematização do universo desenvolve-se com Newton e atinge as suas culminâncias em Comte. Respublica, JAM 
Tudo veio mesmo inspirado nos pregadores católicos da Idade Média, mormente quando Aurelius Augustinos * valorizou o sino daquele pecado original e da essencial maldade do homem enquanto habitante da Terra:“A afirmação mitológica da maldade inata na natureza humana encontra-se, como se sabe, na Bíblia. Ela está explicitada no episódio de Caim e Abel, como corolário da tese do Pecado Original; e foi filosoficamente elaborada por Santo Agostinho.” (3)
Se Deus havia falhado, a Terra podia contar com uma força maior, objetiva:
Está escrito que Caim fundou uma comunidade; mas Abel não fez o mesmo, fiel ao seu caráter peregrino e de hóspede temporário. É que a Comunidade dos Santos não é deste mundo, embora aqui tenha dado origem a cidadãos através dos quais se realiza sua peregrinação até que chegue o tempo de seu reino, quando todos se congregarão (4)
Até partirmos, mister a presença do grande protetor terreno. O bendito paladino tem permissão, e até a obrigação, de penetrar pelas veias sociais a orientar, defender, prover e congregar.
O conceito espiritual do reino de Deus degenerou numa instituição eclesiástica, jurídica, política, militar, financeira que, substituindo a força do espírito pelo espírito da força, fez da Civitas Dei uma Civitas Terrena, com o agravante que esta cidade terrena é acintosamente proclamada como sendo a cidade de Deus. (8)
Portando o alvará, ele se refastela. Sacia a volúpia não do Estado, posto desprovido de índole,  mas de seu jockey, ao arrepio do paciente:
Recordem o esquema do Leviatã: enquanto homem construído, não é outra coisa senão a coagulação de um certo número de individualidades separadas, unidas por um conjunto de elementos constitutivos do Estado; mas no coração do Estado, ou melhor, em sua cabeça, existe algo que o constitui como tal e este algo é a soberania, que Hobbes diz ser precisamente a alma do Leviatã. (5)
Esta alma nada tem de boa:
Após ter então agarrado cada membro da comunidade e tê-los moldado conforme a sua vontade, o poder supremo estende seus braços por sobre toda a comunidade. Ele cobre a superfície da sociedade com uma teia de normas complicadas, diminutas e uniformes, através das quais as mentes mais brilhantes e as personalidades mais fortes não podem penetrar, para sobressaírem no meio da multidão. A vontade do homem não é destruída, mas amolecida, dobrada, guiada; os homens raramente são forçados a agir, mas constantemente impedidos de atuar; tal poder não destrói, mas previne a existência; ele não tiraniza, mas comprime, enerva, ofusca e estupefaz um povo, até que cada nação seja reduzida a nada além de um rebanho de animais tímidos e trabalhadores, cujo pastor é o govêrno. SMITH, A., cit. jornal Pioneiro, Caxias do Sul, 17 /10/1996
A história é farta, mas se resume num fato: tudo isso não passa de estória para tomar dinheiro do pato. Mesmo desconhecendo a maravilha, Einstein rechaçou a premissa de Hobbes:
É nisso que aqueles que se empenham em melhorar a sorte do homem podem fundar suas esperanças: os seres humanos não estão condenados, em razão de sua constituição biológica, a aniquilar uns aos outros ou ficar a mercê de um destino cruel que eles mesmos se afligem. (6)
Einstein, entretanto, sequer estava nos planos; e nem Locke.  Cromwell estava. Ungido na sagração indireta, pelo Parliament, na qualidade de membro, aí obteve seu maior triunfo, do qual soube dispor o demagogo deputado para assumir o total poder inglês. O governante absoluto agora poderia ser escolhido pelo próprio povo, diferentemente da linha eletiva por hereditariedade real sugerida por Maquiavel, Boussuet e Bodin, embora até então propugnasse o filósofo do medo pela soberania real. O direito divino sentenciava à morte: “Uma cabeça de rei cortada: espantoso sacrilégio que pudera ser cometido sem que o fogo do Céu aniquilasse imediatamente os culpados!” (7)
Ao criador do Leviathan o importante não era despir o rei, para colocar outro em seu lugar, mas compor um certo "contrato social" no qual o indivíduo cedia ao Estado o poder de decidir sobre sua vida, em troca da segurança, da sobrevivência proporcionada por todos em conjunto:
O essencial para Hobbes não era a desmistificacão do poder, mas antes a representação da ordem política como um gigantesco autômata, que autorizaria a intervenção de técnicos qualificados. Governantes sensatos, inspirados pela razão científica, poderiam modificar o curso da vida social num sentido favorável a maioria dos interessados. BASTOS, Wilson de Lima; 173
No descortíneo da  Renascença, havia sobradas razões para se resignarem com o pressuposto de que o estado natural do homem seria a guerra de todos contra todos. Isso poderia ser imediatamente bloqueado ou abandonado, no status civilis, ordem e obediência incondicional ao Estado. Foi com essa bandeira que Hobbes acabou influenciando, não só o imediato inglês, como até os continentais, e alhures. A geração seguinte atirou a garrafa do gênio ao mar; na costa francesa Rousseau lhe cataria para destampá-lo, ensejando um “Cromwell” bem mais faminto - Napoleão Bonaparte. G. Davy corrobora-nos: “O De Corpore Político e o De Cive contém uma imensa quantidade de conceitos políticos em que se inspiraram, mais ou menos confessadamente (antes menos do que mais) tantos autores que se seguiram, a começar por Rousseau.” (9)
Para o duo perverso o indivíduo naturalmente deve se anular, alienar-se no ideal supremo da igualdade radical, peões ao diletante:
O único meio para isso é que todos consintam em renunciar a seu próprio poder e em transferi-lo para uma única pessoa (uma pessoa física ou jurídica, como por exemplo uma assembléia), que, a partir de então, terá o poder suficiente para impedir o indivíduo exerça seu próprio poder em detrimento dos outros. (10)
Lenin, Stálin, Hitler, Mussolini, Getúlio, e os estelionatários do Plano Cruzado agradecem a compreensão.
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Aprecie:
O liame de Thomas Hobbes
A má temática de Thomas Hobbes
O grave dano social cartesiano
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Notas
*Nome original de Santo Agostinho.
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1. Penna, J. Meira, O Espírito das Revoluções, p. 83
2. Russel, Bertrand, 2001, p. 276
3. Penna, O.M., O espírito das revoluções, p. 83.
4. Santo Agostinho: De Civitae Dei, Livro XV, cap. I.
5. Hobbes, T., cit. Foucault, Michel, Microfísica do Poder, p. 183.
6. Einstein, A., Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião, p. 133.
7. Hobbes, Thomas, cit. Chevalier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquivel a nossos dias, 2 edição, 1966, p. 60
8. Rohden, Huberto, Filosofia Contemporânea, p.28
9. Davy, G., L'anne sociológique, p. 169; cit. Prelot, Marcel, vol II, p. 266.
10.Bobbio, N., Thomas Hobbes, p. 41.


2 comentários:

  1. Muito bem escrito. Porém, crieo que estudastes de forma errada a filosofia hobbesiana. Ele não basiea sua teoria na crença do mal e do pecado original. Para ele o homem age de tal forma por medo de perder sua vida e na tentativa de preservá-la. Antes de ler o Leviatã e outras obras sugiro que leia "Os Elementos da Lei Natural e Politica"(Elements of the Law, Natural and Political), pois é nesta obra que encontrarás a real fundamentação da teoria hobbesiana.

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  2. Em que pese a pregação religiosa, nenhuma vida se perde. Da Eternidade nada escapa. Ipso facto não seria Eternidade, mas parcialidade.

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