sábado, 17 de maio de 2008

O significado do corte epistemológico


As conseqüências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa época do que em qualquer outro período anterior. SAGAN, C., O Mundo Assombrado pelos Demônios: 21
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Acredito, e muita gente acredita como eu, que todo o ensino de nível universitário (e se pos­sível de nível inferior) devia consistir em educar e estimular o aluno a utilizar o pensamento crítico. O cientista 'normal', descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foi ensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutrinação. Aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão pela qual pode ser aplicada (sobretudo na mecânica quântica). Em conseqüência disso, tornou- se o que pode ser chamado cientista aplicado, em contraposição ao que eu chamaria cientista puro. POPPER, K., A ciência normal e seus perigos.
Nietzsche (cit. Matos, Olgária, A polifonia da razão, 1997: 134) não pode assistir sua consagração pela Quântica e pela Relatividade, mas teve tempo de advertir sobre a falta de humildade acadêmica:
Em algum ponto perdido deste universo cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve uma vez um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal.
A precária ponte ruiu há século, mas a  locomotiva mantém seu leitmotiv, e a orquestra continua tocando nos vagões-restaurantes do cruzeiro socrático. O além aguarda a excursão. 
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A ciência moderna está estreitamente associada a um poder sobre as coisas, e sobre o próprio homem, e é por isso que ela aparece ligada à tecnologia a ponto delas serem indiscerníveis. Ladrière, J., Um saber do tipo operatório : as questões da racionalidade; Le défit de la science et de la technologie aux cultures [O desafio da ciência e da tecnologia às culturas], Aubier-UNESCO, 1977; Chrétien: 205
NA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS houve quatro mais notáveis momentos de ruptura com o que se supunha correto. O primeiro corte, e o mais fatídico, quem o lavrou foi Platão, porém prejudicando o parco conhecimento importado do oriente. As ponderações de Aristóteles arrefeceram a  incidência, mas Copérnico, Galileu, Ticho Brahe, e Kepler resgataram o fundador da Academia. A Babel reedificada foi forte para varar quatro séculos. 
Segundo Jean Piaget o grande defeito das epistemologias tradicionais foi o facto de considerarem o conhecimento como um facto e não como um processo, e que, por via disso, terem considerado que o que está sabido está sabido e que tal pode ser estudado estaticamente. Tais concepções prolongaram-se na filosofia de Platão e Aristóteles, de Descartes a Leibnitz e encontram-se ainda nos quadros apriorísticos de Kant e mesmo na dialéctica de Hegel.  ORIGENS DA EPISTEMOLOGIA 
O preciso edifício, construído andaime por andaime, solidificado tijolo por tijolo, espatifou-se espetacularmente com a descoberta da formação da matéria, ao gáudio de Demócrito & Leucipo.
O princípio da casualidade, antes considerado o fundamento incontestável de toda interpretação dos fenômenos naturais, revelou-se um referencial estreito demais para abarcar as regularidades singulares que regem os processos atômicos individuais. BOHR, N., Física atômica e conhecimento humano: 30
Concomitante à reformulação atômica através da quântica, veio a Teoria da Relatividade, esta sim, completamente revolucionária, a qual implodiu de vereda a concepção mecanicista aviltada a partir de Galileu, a qual teve em Newton seu maior artífice, e em Laplace seu imediato. Confirmava-se o famoso alerta de Shakespeare: havia algo mais entre o Céu e a Terra.
O que levou finalmente os fisicos, após longa hesitação, a abandonar a crença na possibilidade de toda a física ter como base a mecânica de Newton foi a eletrodinâmica de Faraday e Maxwell. Essa teoria, confirmada pelas experiências de Hertz, provou a existência de fenômenos eletromagnéticos que por sua própria natureza são separados de toda a matéria ponderável - a saber, as ondas no espaço vazio, que consistem em campos eletromagnéticos.
EINSTEIN, A., Notas Autobiográficas: 12
 

O eletromagnetismo foi a base da Relatividade Restrita. E a teoria cinética dos gases aguçou a plêiade ao desenvolvimento da Quântica. Gaston BACHELARD (1884-1962) logo observou que essas edificações não se valeram de nenhum material anterior, nenhum tijolo ou patamar alcançado pela "ciência" que viriam a substituir.
Várias vezes, nos diferentes trabalhos consagrados ao espírito científico, nós tentamos chamar a atenção dos filósofos para o caráter decididamente específico do pensamento e do trabalho da ciência moderna. Pareceu-nos cada vez mais evidente, no decorrer dos nossos estudos, que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso. 
Procedia a observação do atento Bertrand Russel (cit. FADIMAN, Clifton, org.: 264): "A física nos fala muito menos do mundo real do que se supunha anteriormente."
"Este novo mundo pode ser mais seguro se for informado sobre os perigos das doenças dos antigos". (DONNE, John, An anatomic of the world - The first anniversary, 1611. - cit. SAGAN, C., Bilhões e bilhões: 84.
NIETZSCHE (O livro do filósofo: 21) o maior visionário que logrei me deparar dedicou sua precária vida para tocar as trombetas contra a insanidade: "O instinto do conhecimento, chegado a seus limites, volta-se contra si mesmo, para chegar à crítica do saber." A geração seguinte caiu na real. O dogmatismo que tomava conta da ciência era liquidado em suas bases. A partir de então se desmistificou a concepção de que método científico é um procedimento regulado por normas rígidas, baseado em "verdades incontestes", e que portanto ditam os passos que o investigador deve seguir para a produção do conhecimento científico. BACHELARD (1972: 27) define a ruptura dos padrões como "corte epistemológico". Podemos compará-lo como um corte do cordão umbilical, onde nova ciência se desgarra dos ditames consagrados. A metodologia de investigação já não cabe no costumeiro empirismo.  No último canto do XIX, de certo modo se antecipando a Einstein por frações de segundo, orientava HENRY POINCARÉ (cit. ABBAGNO: 100),: "A ciência, por outras palavras, é um sistema de relações. Portanto, só nas relações se deve procurar a objectividade: seria inútil procurá-las nos seres considerados isoladamente uns dos outros." :
O homem que descobre uma nova verdade científica precisou, anteriormente, despedaçar em átomos tudo o que aprendera, e chega à nova verdade com as mãos sujas de sangue do massacre de mil superficialidades. ORTEGA Y GASSET, cit. ROHMANN, C.: 298
Esta flagrante "ruptura epistemológica", este desgarrar da ciência contemporânea dos esteios mecanicistas, compositores do senso comum¹  tornou-se  emblema bachelardiano.
É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, identificaremos causas da inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos (...) o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização. BACHELARD, G., 1996: 17
“Há infinitos universos paralelos formando ramificações. Em cada um se atualiza uma realidade”. (TOFFLER & TOFFLER : 20) 
O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros. FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder: 5
Esta é a ocupação do epistemólogo: investigar o caráter científico das proposições, nelas aferindo a incidência, em maior ou menor escala, de dados já antecipadamente refutados pela própria ciência,  origem e consequências dessas formulações, e o rumo que podem tomar. A tarefa do cocker requer contrabando dos conhecimentos  dispostos nas especialidades, para confrontá-los.  É pelo mosaico, pelo leque das ciências, das filosofias e mesmo das ideologias reinantes ou superadas que podemos mais corretamente divisar. Tudo o que é humano é ao mesmo tempo psíquico, sociológico, econômico, histórico, demográfico. É importante que esses aspectos não sejam separados, mas concorram para uma visão "poliocular",  Checar as compatibilidades e as discrepância das produções exige o uso de lente “panorâmica", ao invés de microscópica, especialista. O cosmos, e tudo mais, inclusive e especialmente seus principais atores integram-se em relações que excedem os conceitos de localidade e presença.
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Notas

* "Contemporâneo do Surrealismo, da Teoria da Relatividade e da Física Quântica, a partir deles, Bachelard elaborou sua filosofia da ciência e das artes, partindo da imaginação criadora - intrínseca aos processos do fazer e da fruição artística - enfatizando a poética do mundo e da matéria como instância provocadora, que pode tornar-se poesia, arte, corpúsculo ou onda. Bachelard estuda as transformações da noção de matéria, vendo-a como fulcro dos processos criativos da razão, na ciência, e das imagens, na poesia e nas artes. Transformar o conhecimento, o homem e o próprio mundo através dos atos de conhecer e de imaginar são ideais bachelardianos." (www.cbpf.br)
Obs. Bachelard, a par de suas atividades no campo das ciências, de fato desenvolveu as artes, e a poesia; porém, nelas não há aplicação de nenhum corte epistemológico, exceto, nas formas, se assim pretender. Embora se requeira o conhecimento para poder formulá-las, elas evidentemente não se obrigam aos prerequisitos científicos. Portanto, nada tem a ver com epistemes. Ademais, estas criações não se atém aos trabalhos já apresentados; serão sempre produtos da criatividade; portanto, inéditas. Nada há para cortar. A poesia, forçando um pouco, talvez pudesse ser enquadrada na maiêutica, veia que se concentra na arte de dar nascimentos às idéias, Bachelard possuia o hábito de invocar a poesia, no sentido da criação, a contrapor elucubrações empíricas:
“A imagem poética não está submetida a um impulso, Não é o eco do passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos a imagem poética existe sob o signo de um ser novo. Esse ser novo é o homem feliz. Feliz na palavra, portanto infeliz no fato, objetará imediatamente o psicanalista. Para ele a sublimação não passa de uma compensação vertical, de uma fuga para o alto, exatamente como a compensação é uma fuga lateral. E logo o psicanalista deixa o estudo ontológico da imagem; aprofunda a história de um homem; vê, mostra os sofrimentos secretos do poeta. Explica a flor pelo estrume." (La Poétique de l'espace, cit. José Américo Motta Pessanha, O Direito de Sonhar, p. xxix)
1. É um conhecimento que está subordinado a um envolvimento afetivo e,emotivo do sujeito que o elabora, permanecendo preso às propriedades individuais de cada coisa ou fenômeno, quase não estabelecendo, em suas interpretações, relações significativas que possam existir entre eles.Essas interpretações do senso comum são predeterminadas pelos interesses, crenças, convicções pessoais e expectativas presentes no sujeito que as elabora. http://metodologia109.pbwiki.com/Conhecimento%20Científico
A obra bachelardiana encontra-se no contexto da revolução científica promovida no início do século XX (1905) pela Teoria da Relatividade, formulada por Albert Einstein. Todo seu trabalho acadêmico objetivou o estudo do significado epistemológico desta ciência então nascente, procurando dar a esta ciência uma filosofia compatível com a sua novidade. E é partindo deste objetivo que Bachelard formula suas principais proposições para a filosofia das ciências: a historicidade da epistemologia e a relatividade do objeto. Em resumo, a nova ciência relativista rompe com as ciências anteriores em termos epistemológicos e a sua metodologia já não pode ser empirista, pois seu objeto encontra-se em relação, e não é mais absoluto. Nas palavras de Bachelard (1972):
Várias vezes, nos diferentes trabalhos consagrados ao espírito científico, nós tentamos chamar a atenção dos filósofos para o caráter decididamente específico do pensamento e do trabalho da ciência moderna. Pareceu-nos cada vez mais evidente, no decorrer dos nossos estudos, que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso. (BACHELARD, 1972, p.27)
O "novo espírito científico", portanto, encontra-se em descontinuidade, em ruptura, com o senso comum, o que significa uma distinção, nesta nova ciência, entre o universo em que se localizam as opiniões, os preconceitos, enfim, o senso comum e o universo das ciências, algo imperceptível nas ciências anteriores, baseadas em boa medida nos limites do empirismo, em que a ciência representava uma continuidade, em termos epistemológicos, com o senso comum. A "ruptura epistemológica" entre a ciência contemporânea e o senso comum é uma das marcas da teoria bachelardiana.
Do mesmo modo, segundo Bachelard, dá-se no âmbito da história das ciências. Para ele o conhecimento ao longo da história não pode ser avaliado em termos de acúmulos, mas de rupturas, de retificações, num processo dialético em que o conhecimento científico é construído através da constante análise dos erros anteriores. Nas suas palavras:
O espírito científico é essencialmente uma rectificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. Julga o seu passado condenando-o. A sua estrutura é a consciência dos seus erros históricos. Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como rectificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência como rectificação da ilusão comum e primeira. (BACHELARD, 1996a, P.120)
Obras: "O novo espírito científico", de 1934; "A formação do espírito científico", de 1938; "A filosofia do não", de 1940; "O racionalismo aplicado", de 1949 e "O Materialismo Racional", de 1952. Dentre as obras noturnas destacam-se "A psicanálise do fogo", de 1938; "A água e os Sonhos", de 1942; "O ar e os sonhos", de 1943; "A terra e os devaneios da vontade", de 1948; "A poética do espaço", de 1957.

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