quinta-feira, 8 de maio de 2008

Nem esquerda, nem direita

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Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser imbecil: ambas, com efeito, são
formas da hemiplegia moral. Ademais, a persistência destes qualificativos contribui não pouco a falsificar mais ainda a "realidade" do presente, já fala de per si, porque se encrespou o crespo das experiências políticas a que respondem, como o demonstra o fato de que hoje as direitas prometem revoluções e as esquerdas propõem tiranias. ORTEGA Y GASSET, J., Rebelião das Massas: 14
Na morosidade dos parcos condutores outrora disponíveis –
sinais e palavras diretas, arcaicas escolas ou mensagens através de garrafas, cavalos, camelos, pombos, trens e navios, também por fumaça e tambor, a civilização sempre foi facilmente conduzida por falsos ideais. Agora, mesmo com rádios, televisões, computadores, telefones, fax, telex, livros, filmes, jornais, CDs, revistas, Internet, e-mails, correspondências e ampliação das relações sociais, indicativos diversos e infinidades de provas alcançadas na vida quotidiana, ainda assim tropeçamos em freqüentes barreiras, sutis relevos provenientes das minas socadas ao longo dos tempos. Acostumamo-nos com elas. Para nosso próprio infortúnio, presumimo-las corriqueiras. Desde a infância raciocinamos de modo mecânico, meio automático, sem nos darmos conta das nuances. Nosso pensamento ainda permanece coadunado com o Universo suposto, o vasto espaço pretensamente puro e estéril, determinista, consumado. Esta concepção, alienígena de berço e escola, foi suprimida na Física, mas não nas ciências políticas e sociais:
Independentemente do que vier a ocorrer, direita e esquerda têm hoje uma vida autônoma com respeito à matriz em cujo interior foram originariamente desenvolvidas. Conquistaram o planeta. Tornaram-se categorias universais da política. Fazem parte das noções de base que informam genericamente o funcionamento das sociedades contemporâneas. (1)
No entanto, a dialética robustecida e o contra-veneno “positivismo-legalista”, contrastados com as fórmulas de Smith, Locke e Einstein, mostram-se singelas montarias, capengas e limitados corredores de conhecimento e prática:
“Se o preconceito político for para a esquerda ou para a direita, os resultados são igualmente desastrosos, pois em qualquer dos casos os poços da verdade encontram-se envenenados.” (2)
Além de homicidas por envenenamentos mentais e materiais, os dois trens da volúpia possuem vários outros predicados:
Longe de ridicularizar os aspectos irracionais do comunismo e do fascismo, devemos antes criticar estes credos políticos pela sua falta de conteúdo sensível e estético, pela pobreza de seu ritual e sobretudo pelo fato de que nenhum deles chegou a entender o papel que a poesia e a imaginação desempenham na vida da comunidade. (3)-
Medonhos charlatões
Sabine os disseca, por completo:
Tanto o comunismo quanto o fascismo eram francos e mesmo ruidosos inimigos do liberalismo, rejeitando as práticas da política liberal e alegando possuírem novos princípios filosóficos. Ambos proclamavam-se expoentes da 'verdadeira' democracia e consideravam o liberalismo como democracia espúria. Ainda assim, ambos suprimiram liberdades civis que as constituições democráticas haviam criado principalmente para proteger e destruíram liberdades políticas que haviam constituído pontos de apoio do governo democrático. Ambos negaram que a defesa dos direitos e liberdades constituísse objetivo primário do governo e também que o ser humano isolado fosse juiz competente seja dos seus interesses últimos, seja das políticas e práticas que os governos deviam observar a fim de promover o interesse geral ou social. Ambos imaginaram uma entidade coletiva - a raça, no caso do fascismo e a sociedade ou comunidade, no caso do comunismo - que julgavam possuidora de valor mais alto do que o indivíduo e descreveram seres humanos como meros agentes ou órgãos da coletividade. Ambos, por conseguinte, descreveram a política como um mistério acima da compreensão do cidadão comum, concebendo-a como uma função de uma elite dotada de faculdade ou capacidade especial. O fascismo descrevia essa capacidade como instinto, ou intuição, ou, ainda, gênio, situado fora do alcance da inteligência comum. O comunismo, de sua parte, considerava-a como tipo superior de ciência e, por conseguinte, prerrogativa de técnicos treinados para reconhecer o curso necessário que o progresso histórico deveria seguir. As alegações dos líderes fascistas de possuírem poderes mais altos pareciam aos liberais nada mais que os protestos de charlatões, o que, na verdade, vieram a mostrar que eram. O totalitarismo procurou organizar e dirigir todas as fases da vida econômica e social, eliminando as esferas da vida privada ou escolha voluntária. Significou a destruição de um grande número de organizações tradicionais, canais de atividades econômico-sociais. Os sindicatos de operários, associações, que possuíam autogoverno, foram eliminadas ou absorvidas. A filiação tornou-se virtual e compulsória. Os funcionários eram escolhidos de acordo com os princípios de 'liderança', decidindo as normas de funcionamento da entidade não os membros coletivamente, mas o poder externo que o líder representava. O 'princípio de liderança' significava simplesmente poder pessoal ou poder de alguma claque, disto resultando a arregimentação e manipulação de organizações anteriormente autogovernadas. O resultado constituiu um paradoxo. Embora o indivíduo fosse 'organizado' em todas as suas atividades, estava mais sozinho do que nunca. Era impotente nas mãos das organizações das quais nominalmente fazia parte e que alegavam falar em seu nome e representar-lhe seus interesses. Mas no que tocava a seus interesses, ele não tinha nada a dizer. O povo era literalmente 'massa', sem outras informações que aquelas que as agências de propaganda resolviam ministrar-lhe. (4)
A ciência (técnica) e o interesse político (ideológico, mas pior, porque corrupto) construíram esses arquétipos, de incrível coincidência com a realidade. Isto sempre foi prático, convincente e encarado “democrático”:
O que chamamos 'democracia' consiste tão somente numa enquete de opinião pública na qual se pede a uma amostra 'causual' que diga sim ou balance a cauda em resposta a um conjunto de alternativas pré-fabricadas, geralmente relacionadas aos fatos consumados dos governantes, que sempre podem dirigir as enquetes em seu próprio beneficio. (5)
Einstein não se cansou de rechaçar o sim e o não, a direita e a esquerda. O Grande Relativo condenava o totalitarismo sob qualquer matiz - soviético, fascista, nazista, ou envergonhado assemelhado:
“Todos devemos montar guarda contra tiranias de esquerda e direita." (6)
Alguma dúvida de suas concepções? Ele as tirou, com o negativo, em 1934. Caso tivesse sido ouvido, Hiroshima não precisaria amargar:
“A religião organizada pode recuperar parte do respeito que perdeu na última guerra, se dedicar-se a mobilizar a boa vontade e a energia de seus seguidores contra a subida do iliberalismo.” (7)
Infelizmente, mercê de sua dedicação, Einstein não teve tempo para percorrer o fio-de-ariadne que o conduziria à obviedade: a religião, que tanto venerava, como a justiça e a dialética que as embalam, são apenas ideais, forjados por Platão para perverter seus acadêmicos.
Já por milênios o Secretário do Tirano de Siracusa atinge seus objetivos.
Agora chega. O fim do século deve ser também seu fim:
“A política dos blocos acabou. Não há mais nem direita nem esquerda na Suécia”. (8)
Nem lá, nem alhures. Resta avisar o pessoal.

O grave dano social cartesiano

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Notas
1. Gauchet, M., Storia di una dicotomia. La destra e la sinistra, Milão: Anabasi, 1994; orig. La droite e la gauche, Paris: Gallimard, 1990; cit. Bobbio, N., p. 14/5.
2. Johnson, Paul, p. 102
3. Read, Herbert, O anarquismo e o impulso religioso, 1940, cit. Woodcock, G., p. 68
4. Sabine, George, p. 719.
5. Roszac, Theodore, A contracultura, p 29.

6. Einstein, Albert, cit. Levenson: 363.
6. Cit. Pais, Abraham, Einstein viveu aqui, p. 241.
7. Ingvar Carlsson, ex-chefe dos social-democratas. O Estado de São Paulo, 25/9/1995, p. A13.

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