segunda-feira, 9 de junho de 2008

Do direito divino


Em outros tempos, se dissessem a um homem que, ao recusar-se a reconhecer a autoridade do Estado ele ficaria à mercê dos ataques de homens perversos - inimigos internos e externos - e que teria que lutar sozinho sujeitando-se a ser morto em combate, sendo portanto vantajoso suportar algumas dificuldades em troca de proteção, ele poderia acreditar, já que os sacrifícios que viesse a fazer pelo Estado seriam apenas pessoais e lhe garantiriam pelo menos a esperança de uma vida tranquila numa Nação estável. Mas no momento em que não apenas os sacrifícios parecem ter se tornado mil vezes mais penosos, mas os benefícios parecem ter desaparecido, é natural que os homens tenham chegado à conclusão de que a submissão à autoridade é algo totalmente inútil.
Leon Tolstói


NOUTROS TEMPOS qualquer Rei fazia o que queria. No atual Brasil também.
Na França, graças a
Jacques-Benigne Bossuet (16271704) o governante passou a ser tomado como "divino."A dádiva lhe punha acima do bem e do mal, intocável, inatingível a qualquer suspeita. Ao delegar Sua representação ao monarca, Deus conferia uma autoridade ilimitada, e incontestável.
O soberano Luís XIV, chamado Rei Sol, colheu o ensejo e secou a economia popular.
Nada de novo, contudo, havia no front. Foi Jehan Bodin (1530/1596) quem nasceu a tempo de ser cognominado “pai” do governo absoluto. Na respeitável observação do senador italiano Norberto Bobbio, este é mais relevante do que Althusius* e até do quase contemporâneo Maquiavel:
“A obra mais importante do período de formações dos grandes Estados territoriais é De La Republique, de Jean Bodin.” (A Teoria das Formas de Govêrno: 95)
Bodin sentenciava:
“É necessário que os soberanos não estejam, de forma alguma, sujeitos às ordens de outrem e que possam dar leis aos súditos, quebrando ou aniquilando as leis inúteis para fazer outras.” (République, 1576; cit. Perelman, C.: 325)
Com a descoberta de Galileu, contudo, o dogma divino começava a balançar.
Deus não se interessava tanto assim pelo homem; sequer éramos centro do Universo, como apregoava o Vaticano.Newton confirmou a certeza. Cabia ao homem, não a Deus, a responsabilidade pela indústria da vida. Eis o formidável ponto nevrálgico, peculiar desatino que contamina dezenas de gerações:

No nosso século, essa tendência para adotar a física newtoniana como modelo para teorias e conceitos científicos tornou-se uma séria desvantagem em muitas áreas, mas, mais do que em qualquer outra, na das ciências sociais. (Capra, F.,p. 180)
A teoria macroeconômica não tem procurado superar seus outros defeitos mais sérios. Inspirada na errada crença de que deveria imitar os métodos das ciências naturais, especialmente os da física, acabou abstraindo-se das variáveis essenciais mas não quantificáveis, tratando uma série de eventos históricos como se fosse repetitiva, determinística e reversível. (Simpson, D., p. 6)

Deus, contudo, jamais foi afastado de suas altas funções. Sua palavra deveria ser sintonizada noutra freqüência, apenas. Como o Rei já não era tão porta-voz, por ser muito mentiroso, a reunião de todos se pensou capaz de expressar a vontade vontade celestial: Vox populi, vox Dei:
Mesmo os ateus estão de acordo acerca de que não há coisa que mais mantenha os Estados e as Repúblicas do que a religião, e que esse é o principal fundamento do poderio dos monarcas, da execução das leis, da obediência aos súditos, da reverência dos magistrados, do temor de proceder mal e da amizade mútua para com cada qual; cumpre tomar todo o cuidado para que uma coisa tão sagrada não seja desprezada ou posta em dúvida por disputas; pois deste ponto depende a ruína das Repúblicas. BODIN, Jehan, cit. CHEVALLIER, M., Tomo I: 55
Os católicos franceses gostaram da idéia, e elegeram Jean-Jacques Rousseau para escrever a nova Bíblia da política. A palavra de Deus continuava suprema; e o diabo, o grande inimigo. Aquela gente tinha uma tradição pouco recomendável:
“Os mestres-escolas da França são especialistas em pancadaria. Quando questionados a respeito, respondem que aquele povo, tal como dizem dos frígios, só se corrige a 'pauladas'." (Erasmo, De Pueris, p.70)
Napoleão foi aclamado para colocar tudo no lugar, sinal-verde e carta-branca para preenchê-la como convinha, assim obedecendo o reclame popular; por conseguinte, divino. De fato, o Corso saqueou uma dezena de nações, e colocou milhares de incautos às tumbas construídas em prol da riqueza que tanto almejava. Dessarte, todos foram para a eternidade, em plena juventude, aí sim, pertinho de Deus. Inclusive ele.
Ao raiar o grande embate de nosso tempo, o qual, por bizarro ainda é o mesmo, encerro com as observações de um comandante verdeiramente glorioso, às vésperas do enfrentamento contra o "eleito" alemão:

Se olharmos para trás, para a longa história das nações, veremos que, ao contrário, suas glórias legítimas repousam no espírito de resistência contra a tirania e a injustiça. (W. Churchill, W., Defesa da liberdade e da paz; discurso de 16/10/1938, cit. Bastos, W. de L., Nos meandros da política, p.33)

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* Johannes Althusius (1557 - 1638) foi mais um teólogo metido a filósofo à serviço do poder. O calvinista alemão compôs Politica methodice digesta et exemplis sacris et profanis illustrata (A política metodicamente concebida e ilustrada com exemplos sagrados e profanos)

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