quinta-feira, 5 de junho de 2008

A proliferação dos cursos jurídicos



O curso de Direito é e deve ser para a massa.
Secretária de Ensino Superior do Ministério da Educação
Maria Paula Dallari Bucci, in Conjur - 22/4/2009
Para o Judiciário, analfabeto em economia, um marco era um marco, independentemente de quantos zeros aparecessem na nota. Levenson: 325
O arcebispo, por cuja liberalidade era mantido até então no campo das letras, pressionou-o para freqüentar o curso de Direito, embora isso lhe repugnasse à natureza. A mim ele trouxe apreensões. É que, na época, a gente convivia o mesmo alojamento. Então aconselhei a administrar o capricho de seu protetor, porque as coisas árduas, no princípio, ficam mais brandas com o tempo; que desse também uma parte do seu vagar àqueles estudos. Quando ele apresentou algumas espécimes da calamitosa ignorância repassada em programas de aula por professores tidos como luminares do saber, repliquei-lhe que não se apegasse àquilo e só retivesse o que realmente fosse concreto. Eu ia persistindo em convencê-lo com várias sugestões. De certa feita ele retrucou: 'Eu sinto, cada vez que me debruço sobre tais assuntos, como se uma espada perfurasse o meu peito...' Seria, como soem dizer, aplicar ungüento em boi, ou dar harpa ao asno.
Erasmo de Roterdã
1-
O que você diria hoje do grande número de estudantes que consideram o saber como meio utilitário, como um meio de se tornarem uma engrenagem na máquina econômica e social? Os estudantes da máquina de que você fala fazem o que lhes mandam fazer. Adultos construíram essa máquina, essa ratoeira, esse labirinto. Num labirinto onde os ratos se perdem, as pessoas não dizem, ao observá-los 'os ratos estão loucos'; dizem 'construiu-se um labirinto para deixar os ratos loucos'. Em muitos países, o ensino foi construído para deixar os estudantes não muito felizes.
Michel Serres 2
Os marcos
Em 1827 chegaram ao Brasil as escolas de Direito. Curiosamente, ambas foram iniciativas do arcebispo, do platonismo tão caro à grei eclesiástica. Da primeira se encarregaram os padres franciscanos — razão pela qual é chamada de Faculdade do Largo de São Francisco, na capital paulista. Da outra, os monges beneditinos, na cidadela de Olinda. Depois de mais de 60 anos é que aportou a terceira faculdade de Direito, no porto da Bahia. Cem anos após a criação dos primeiros, existiam menos de 30 cursos jurídicos. Ao findar o século, já havia o milhar de faculdades que ministram esses conhecimentos, considerados superiores.
A nação inteira se doutorou.
Do norte ao sul, no Brasil, não há, não encontrei, senão doutores!
Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes
Tal curso é fácil ao ministério. Nem quadro-negro requer. Aliás, até leigos são obrigados a tomar conhecimento das leis. A ninguém é dada a prerrogativa de alegar ignorância. Direito é apenas “bom-senso”, dizem. Assim, o curso superior vira um horror. Multiplicam-se "faculdades" on line. Ao gosto de Platão, por certo é uma grande solução; à profissão, contudo, não:
O Brasil conta, atualmente, com mais de 3 milhões de estudantes de Direito, que procurarão o mercado de trabalho nos próximos anos. Somando-se a estes os 600 mil advogados hoje inscritos nas seccionais da OAB teremos, em breve, a perspectiva de 3,5 milhões de profissionais buscando um espaço para trabalhar. Dentro desse contexto, e argumentando pelo absurdo, ou seja, admitindo que todo esse contingente de estudantes venha realmente a exercer a advocacia, o país poderá ter, em pouco tempo, um advogado para cada 51 habitantes.
(Maria Adélia Campello, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, in Revista Consultor Jurídico, 23 de abril de 2008.)
Haja encrenca para esta penca.
As pesquisas apontam para o que se pode constatar empiricamente: há uma oferta maior do que o mercado comporta. Aliás, parece que esse fenômeno não se restringe às nossas fronteiras, já que o jurista Mauro Capelletti afirma existir também na Itália um excesso de advogados. Situação idêntica ocorre igualmente na Argentina, onde se podem encontrar bacharéis de Direito atuando como motoristas de táxi nas ruas das grandes cidades. Diante de tal quadro, não é absolutamente justo acenar com centenas de novas vagas anuais para jovens vestibulandos em busca de um futuro profissional digno.(Jônathas Silva, presidente da Comissão de Ensino Jurídco da OAB-GO A injustificada prolferação dos cursos de Direito, www.oabgo.org.br/Revistas/32)
Tudo que abunda, afunda. O que sobra, cai de preço. Quanto maior a oferta, mais se desvaloriza o produto:
Continua sendo verdade que, para quem tem as conexões e a origem social apropriadas, o diploma de advogado continua a ter sua utilidade; mas, na medida em que foi aumentando o número de detentores de diplomas, seu valor de mercado tendeu a diminuir. Mais seriamente, o Direito enquanto disciplina intelectual jamais conseguiu trazer a si a imagem de um conhecimento novo.
(http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_05/rbcs05_03.htm )
Metade abandona a prática, mas outra parte insiste num lugar-ao-sol. "Nunca desista!", muitos aconselham, e o aspirante destarte permanece na esperança. Com esperança, portanto apenas com sonhos, sai forrado qualquer cadete. Como números não preocupam a cadeira, não são poucos os incautos sem lugar para sentar, e sem numerário para contar:

Com 15 mil inscritos, começa em 15/4/2009 o ciclo de palestras do I Congresso de Novos Mercados, em São Paulo, com 20 palestras. Promovido pela OAB-SP e pela Caasp (Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo)
A razão da opção
Em nenhum outro país, entretanto, se concede tamanho espaço às questões jurídicas.Todos os noticiários contemplam altos percentuais de informações sobre julgamentos, crimes, corrupção em larga escala, tiros, balas perdidas, tráfico, invasões de propriedades, greves, atrocidades de toda intensidade, e novas leis. A população, cada vez mais apavorada, projeta a salvação pela justiça. Jornais e as "academias", também as editoras do segmento, faturam tanto ou mais do que outras mais penosas, ou dispendiosas. O maior apelo vem de nossa tradição portuguesa, mais ainda, da greco-romana, da importância da dialética, da oração, do discurso,da venerada retórica, do concurso de argumentos. As cidades podem ser carentes de hospitais, indústrias, ou mesmo de um comércio promissor. Em algumas, seus habitantes nunca viram uma vaca, ou um pé-de-milho. Mas em todas há sistemas burocráticos, igrejas, delegacias de polícia. E Foruns.
Quando chegamos à idade limite, ainda somos tenros, ingênuos, mais macacos do que homens. Se escolhermos medicina, excluímos qualquer chance fora do corpo humano. Caso optemos por engenharia, teremos que decidir, de cara, um ramo, e ficamos naquele trilho, sem chance à outro meio. Mas se decidirmos pelo Direito, bem, aí podemos ser quase tudo.

Carência de ciência
Há bacharéis por trás de balcões, mas também sobrevoam falcões. No entanto, devido à necessidade expressa da tal especialidade, não produzimos cientistas jurídicos. E muito menos políticos. Os condecorados são especializados. Não são cientistas, mas técnicos; talvez contadores.
A imensa maioria dos encarregados políticos, jurídicos e sociais trabalha com dados numéricos, contas ponderadas. Raras são pesquisas de conceitos, que dirá epistemológicas. Não são poucos os encalhados no porto de Marx. São desconhecidas relações históricas, motivos e conseqüências. E Filosofia é para lunáticos.
Pela via restrita, juízes não sabem o que é deflação, ou mesmo correção monetária. Dado o largo período inflacionário, todos supõem que o dispositivo signifique aumentar a conta, simplesmente. Pode não ser. É correção. Difere de pura adição. A cifra final pode até ser menor do que a nominal - basta a moeda se valorizar, em vez de se desvalorizar. Mas isto não é ensinado no Direito. Na Academia não há tempo para tanto:
“Tenho a impressão de que a maioria das faculdades de Direito estão ministrando aulas excessivamente técnicas, dando importância demasiada a uma instrução formal, superficial e pouco abrangente." (Advogado Cleber Benvegnú - cbenvegnu@terra.com.br)
A excelência dialética desconhece regras-de-três:
"Pelo que tenho visto, muitos juízes não têm noção do que estão julgando quando o assunto envolve sites e rede sociais." (O problema do judiciário brasileiro é o mesmo de algumas empresas, http://www.tiagodoria.ig.com.br/)
A estreiteza conduz ao labirinto:
"A ciência, por outras palavras, é um sistema de relações. Portanto, só nas relações se deve procurar a objectividade: seria inútil procurá-las nos seres considerados isoladamente uns dos outros." (Poincaré, J.H., cit. Abbagnano: 100)
A determinação jurisdicional não deveria ser restrita ao ideal platônico:
"A questão do direito, do fundamento ou da fundação do direito, não é uma questão jurídica. E a resposta não pode ser nem simplesmente legal, nem simplesmente ilegal, nem simplesmente teórica ou constatativa, nem simplesmente prática ou performativa." (Derrida: 36)
* * *
De que tanto adianta à Nação produzir esse imenso exército de estéreis bacharéis?
Gente não come papel, não se veste de papel, não mora em casa de papel, não se desloca por folhas de papel. Pela opção, introduzida através da positivista moda francesa, apuramos o bizarro:
O sistema educacional do Brasil está em desarranjo. Nos testes de desempenho acadêmico realizados a cada três anos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com jovens de 15 anos de 57 países, os estudantes brasileiros ficaram na quarta pior colocação em ciências e na terceira pior em matemática. (Falta de mão-de-obra ameaça crescimento do Brasil, diz 'NYT'; Estadão, 2/7/2008)
Ademais, nosso Direito é torcido e distorcido, produto de uma democracia de perfídias e cópias, geralmente de franceses e italianos, no fundamento lat(d)ino das línguas que nossos descobridores melhor podiam assimilar. Assim vem a tradição: nossos legisladores e julgadores, à maneira de Descartes e Comte, visam a tudo prever, especialmente de como o poder exercer. Vigem milhares de leis. Não creio haver país onde haja mais códigos. Diante da impossibilidade de tempo, não pode haver faculdade que aborde o Biodireito, do menor, Direito Desportivo ou transitivo, digo do Trânsito*. E que “direito” produz a “Medida Provisória”? É possível compreendê-lo, ou pelo menos estipulá-lo?
Infelizmente, sendo Deus ou diabo, defensor ou promotor, ator principal ou coadjuvante, o bacharel colabora com essa grande máquina da ilusão, bolada pelo safado grego no fito de seduzir o primeiro Príncipe, filho do Tirano de Siracusa. O segundo teve Maquiavel como consorte. Ou melhor, com azar.
bido-
Veja, ainda:
Carências jurídicas
___________
Notas
1. De pueris, p. 52.
2. De duas coisas, a outra; cit. Derrida, J., p. 67.


* Lista das "especialidades":

  • BioDireito
  • Direito Administrativo
  • Direito Aeronáutico, Espacial e Marítimo
  • Direito Agrário
  • Direito Ambiental
  • Direito do Consumidor
  • Direito Constitucional
  • Direito Desportivo
  • Direito Eleitoral
  • Direito de Família
  • Direitos Humanos
  • Direito Imobiliário
  • Direito Internacional
  • Direito Médico
  • Direito do Mercado de Capitais
  • Direito de Negócios
  • Direito Penal
  • Direito Previdenciário
  • Direito de Propriedade Intelectual
  • Direito Sanitário
  • Direito do Seguro
  • Direito de Telecomunicações e Internet
  • Direito Trabalhista
  • Direito Tributário
  • Direito Urbanístico
(www.seufuturoemdireito.com.br)
(Ainda poderíamos elencar o "Direito Registral", na concepção de alguns desembargadores aposentados do RS, os quais, em vésperas dos concursos, ministram aulas dessa "especialidade" em caravanas pelo interior do estado. Com todo respeito, direito de registro é dose! Vai ver, até recepcionista de hotel será obrigado a cursá-lo.

Um comentário:

  1. Bom tema. Se está interessado em Direito e suas especialidades, sugiro visitar www.seufuturoemdireito.com.br

    ResponderExcluir