sexta-feira, 6 de junho de 2008

O pacto com o diabo

Deus geometriza! A geometria é o próprio Deus! Johannes Kepler (1571-1630)
A história das descobertas científicas e técnicas revela-nos quanto o espírito humano carece de idéias originais e de imaginação criadora. Albert Einstein (1879-1955) (1) -
O CONHECIMENTO e a mistificação se proliferaram graças ao dedo de Gutemberg. Cêrca de mil tipografias, em mais de 250 localidades distintas (2), se encarregaram de arrolar as novas razões: “De todas as revoluções tecnológicas do milênio, a de maior alcance ocorreu um pouco antes da metade dessa era. Em 1455 Gutemberg escreve a Bíblia.” (3)
Na virada ao século XVI, duzentos e quatorze livros de matemática saíram publicados. (4) Toffler relata o pitoresco:"Um conselho sem dúvida bem-intencionado, atribuído a Santo Agostinho, advertia os cristãos a manter distância das pessoas que sabiam somar ou subtrair. Era óbvio que haviam firmado um 'pacto com o diabo'.” (5) O “pacto” vingava por todo o lado. Galileu Galilei e Niklas Copérnico impressionavam o mundo. Deus, a Igreja e seus estandartes derrocavam. Não éramos mais o “centro do universo;” o Sol não girava sobre a Terra.
Discorsi e dimonstrazioni matematiche intorno a due nuove scienze attenenti alla meccanica inaugurava, oficialmente, a era mecanicista. Selou-lhe rudimentar aparelho amplificador da visão, pirateado. Galileu, reconhecido crítico de Aristóteles (383-322 a. C.), mostrava aos olhos incrédulos a certeza do cálculo, a “revanche de Platão”:
O sopro da morte atingiu a teoria aristotélico-ptolomática em 1609. Neste ano Galileu começou a observar o céu à noite, através de um telescópio, que acabara de ser inventado. Ao focalizar o planeta Júpiter, Galileu descobriu que se fazia acompanhar de vários pequenos satélites, ou luas, que giravam a sua volta. Isto implicava que nada precisava necessariamente girar em torno da terra, como Aristóteles e Ptolomeu haviam pensado. (6)
A lógica científico-matemática vinha para o lugar de “lendas” filosóficas e religiosas.
O conhecimento anterior fora montada em cima de inconsistentes palavras. Agora, os números traziam mais segurança, tornavam as atividades concretas, mais lógicas e práticas; compõem os elos. A matemática é o cimento das ciências, é a garantia de sua coerência, é a defesa segura contra qualquer tentativa de acolher, “com distorções de palavras”, proposições de várias procedências, incompatíveis entre si.”
Sequer o Inferno, de Dante (7), escapou do crivo.
Tornou-se Galileu o “pai da física matemática”. (8)
Poderíamos dizer, sem querer ofendê-lo, mas completá-lo, que sua idéia foi a “mãe da pretensão científica”.
Quanto ao homem, estava provado: não estando mais no centro do universo, poderia ser, quanto muito, uma inexpressiva peça de toda a engrenagem do reino solar.
A faculdade de conhecer o verdadeiro se resumia ao que os braços ou olhos podiam confirmar, mas o acesso ao completo texto da geometria euclidiana estava plenado. Este é o engano basilar de Galileu e da produção científica empilhada nos séculos que lhe sucederam - a premissa pintada como conclusão de pensamento, a subversão numérica das letras:
A filosofia está escrita neste grande livro que permanece sempre aberto diante de nossos olhos; mas não podemos entendê-la se não aprendermos primeiro a linguagem e os caracteres em que ela foi escrita. Esta linguagem é a matemática e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas. (9)
Os caracteres nasceram deformados pela carga genética:
“Não tenho dificuldades para admitir, identificando o platonismo com matematicismo, o caráter platônico da ciência galileana”. (10)
Alexandre Koyré confirma:
“A grande idéia de Koyré, justamente, é que Galileu encarnava a herança do platonismo. Em outras palavras: Galileu acreditava que, graças à matemática, os físicos conseguiriam apreender a estrutura íntima da realidade”. (11)
O infeliz Platão expulsara os poetas de sua República. Letras serviam à fantasia, enquanto “o livro da natureza é dominado pelo rigor matemático, donde seu objetivo precípuo é aquele de aprender a verdade.” (12)
O câmbio do paradigma ético de Aristóteles pelo pragmatismo totalitarista de Platão restringiu a ciência e subverteu a democracia:
Trata-se de uma revolução que, além de derrubar a ditadura de Aristóteles, arruína completamente, através da luneta astronômica, o dogma da incorruptibilidade dos corpos celestes. Fica ainda absolutamente rejeitado o axioma identificando o real objetivo à percepção sensível: as qualidades são relativas a nossos sentidos e a matéria é quantitativa. (13)
Foi uma lástima, à ciência e à humanidade:
“Em alguns aspectos importantes, embora de maneira alguma em todos, a Teoria Geral da Relatividade de Einstein está mais próxima da teoria de Aristóteles do que qualquer uma das duas está da de Newton.” (14)
Complementa Koyré:
Ocorre que para Aristóteles a geometria era apenas uma ciência abstrata. Por isso, a geometria nunca poderia explicar o real. As suas leis não dominam o mundo físico. O estudo da geometria não precede o da física. Uma ciência do tipo aristotélico não se apoia numa metafísica. Conduz a ela, em vez de partir dela. Uma ciência tipo cartesiana, que postula o valor real do matematismo, que constrói uma física geométrica, não pode dispensar uma metafísica. E tem mesmo que começar por ela. Descartes sabia-o. E Platão, que fora o primeiro a esboçar uma ciência desse tipo, sabia-o igualmente. (15)
O numerário subverteu a democracia. A ética se tornou dialética.
Nada disso pode mais tempo perdurar.
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Notas
1. Como Vejo o Mundo, p. 198.
2. Viagens de Descobrimento, Time-Life, p. 113.
3. Gutemberg, cit. revista Veja, ano 31/ número 51, Especial do Milênio.
4. Ronan, Colin A., História Ilustrada da Ciência, Vol. III - Da Renascença a Revolução Científica, p. 61.
5. Toffler, A. e Toffler, H., p.41.
6. Hawking, Stephen W., p. 20.
7. Alighieri, Dante, cit. Galileu Galilei, Palestra na Academia Florentina, A Geografia do Inferno de Dante Tratada Matematicamente, 1588; cits. Geymonat, Ludovico, Galileu Galilei, p. 10.
8. Galileu Galilei, cit. Geymonat, Ludovico, Galileu Galilei, p. 319.
9. Galilei, Galileu, cit. Capra, Fritjof, O ponto de mutação, p. 50.
10. Geymonet, Ludovico, p. 42.
11. Koyré, A ., cit. Thuillier, P., p. 128.
12. Platão, cit. Granger, Gilles Gaston, A Razão, p. 112.
13. Japiassú, Hilton, A Revolução Científica Moderna, p. 58
14. Einstein, Albert, cit. Kuhn, T. S., Estrutura das Revoluções Científicas, p. 253.
15. Koyré, A., Considerações Sobre Descartes, p. 81.

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