terça-feira, 10 de junho de 2008

Soluções gloriosas

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“Assentamos em que um príncipe não pode deixar de cumprir as leis sancionadas nas Cortes por ser maior o poder da república que o dos reis;
e dizemos agora que se, apesar das nossas instituições e da força
do direito, chegasse a violá-las, se poderia castigá-lo. Destroná-lo
e até,exigindo-se as circunstâncias, impor-lhe o último suplício.”

Baruch Spinoza

NAQUELE DISTANTE e obscuro século a riqueza tinha pouca serventia.
Todos eram pobres, inclusive os reinos. Nos palácios não havia, sequer, água encanada. Não se dispunha de rede elétrica, muito menos automóvel. Prescindiam de detrans, daers e varigs. Cinco estrelas, só depois de uma paulada. Ninguém tinha nada; portanto, nada havia para adquirir.
O que fazer com cartões-corporativos?
O poder do monarca sobre o cidadão se fundava na quantidade de armas.
Especialmente depois de Maquiavel, qualquer mentecapto poderia assumir o poder, um poder completamente estéril, infrutífero, desprovido de sentido, a não ser satisfazer torpes ambições pessoais.
"Não há mal que sempre dure", mas a Inglaterra há muito não mantém tal esperança. Ela simplesmente extirpou o mal, precisamente em 1689, portanto há séculos:
“A separação de poderes foi uma fórmula encontrada para passar do Estado Absolutista para o Estado Liberal. Ninguém poderia mais ter em suas mãos todo o poder do Estado.”
(Scaff, Fernando Facury, A Responsabilidade do Estado, p. 288)
Locke foi clean:

“Sem liberdade, o entendimento seria em vão; e sem o entendimento, a liberdade (se possível) não significaria nada. O primeiro, portanto, e grande uso da liberdade é impedir a precipitação cega; o principal exercício da liberdade é resistir (to stand still), abrir os olhos, olhar em torno, e examinar a conseqüência do que faremos, tanto quanto o peso que o assunto exija.” (
Jorge Filho, Edgard José, p. 48)
As conseqüências melhor podem ser melhor aquilatadas através de vários pontos de vista, e não apenas pela vista do castelo, que é sempre deslumbrante:
"Assinalando o triunfo final do parlamento sobre o Rei, punha a termo definitivo a monarquia absoluta na Inglaterra. Nunca mais uma cabeça coroada desafiaria o legislativo daquele País."
(Burns, Edward McNall, Lerner, Robert E. e Standish, Meacham: 529)

Os ingleses tomavam as rédeas do seus próprios destinos:
“O homem não poderia ser livre, se sua vontade fosse determinada por algo que não o seu próprio desejo guiado pelo seu próprio julgamento”. (Jorge Filho, Edgard José, p. 197)
Esta liberdade consistia (como consiste) em dispor e ordenar a própria pessoa, ações, posses e toda a espécie de propriedades, desde que permitido (within the Allowance) na lei vigente, sem estar, portanto, sujeito a circunstanciais arbitrariedades. A harmonia é o produto daí decorrente.
A lei inglesa, nem toda expressa, não é abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade.
Como não há mais o mal a perdurar, nada resta mais aos ingleses esperar; somente usufruir.
* * *

A cobra leviatânica bem que tentou retornar à ilha, desembarcada na carona de um estrangeiro chamado Marx, dono do prefixo que per se anuncia o que se passava na mente. Porém, se má era a intenção de Má rx, não podia prosperar.
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Os ingleses nem perceberam a perfídia.
Não tinham rádio, ou qualquer mídia.
Na praça até houve um reboliço,
a Poor Law, de resto algum ouriço.
Nada de mais, além disso.
Eram apenas tagarelices,
a voar em pés-de-vento.
Tais "altivos" intentos
não passavam de tolices.
Canto telúrico,
a algum transeunte seduzir.
Incita-o à revolta, para lhe permitir
sentar-se à mesa, onde servem o jantar.
No Palácio é que está o manjar.
Era parco o objetivo,
e pouco tinha de liso:
como ganhar dinheiro é preciso,
o melhor é ter cargo público.
O público se dispersou, na noite fria,
ressentido pela demagogia.
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O barbudo teve que se mudar para a França, onde ali sim, no meio dos crentes de fé mais impregnada, pode aplicar seu conto de vigário, e introjetou o veneno que logo subiria à Alemanha, e à Rússia, para levar a humanidade ao descalabro recrudescido do século XX.
* * *
Até o fulgurante momento iluminista, os ingleses também viviam apenas para satisfazer o governante. O reino se tornava cada vez mais armado; porém, a cada dia menos amado.
O árduo trabalho do cidadão se destinava à própria submissão. Isso haveria de findar.
O procedimento foi simples, prosaico, óbvio: o povo desarmou o rei, e dividiu as armas.
Não por acaso a elementar solução tomou o nome de Revolução Gloriosa, uma revolução na qual não houve derramamento de sangue, mas, ao contrário, nunca mais se viu sangue por lá:
“A estruturação da comunidade política sugerida por Locke é a solução viável para garantir a paz, a segurança e a propriedade. Ela suprime o estado de guerra e impede a recaída nele, que seria fatal (como o foi) caso estes homens egoístas não fossem governados por um poder superior comum, mandatário da comunidade.”
(Voltaire,Os Pensadores,Cartas Inglesas, p.20)

Paz na Terra aos de boa-vontade
No decorrer do século subseqüente, os esforços foram canalizados no sentido da prosperidade. A Inglaterra começava a sentir seu poder não mais pelas armas, mas pela força do dinheiro que a dormência das armas pode ensejar à produção.
Sua filha, modernizada, vislumbrou o novo perigo. O dinheiro tomava o lugar das armas, era mais civilizado, mas também poderia ser muito letal. Que princípio poderia ser forte para inibir a novidade?
O mesmo - dividir as armas num primeiro plano; e no segundo, o próprio dinheiro, a riqueza, o patrimônio, a terra. Ela não deveria ser restrita a apenas um senhor - o território era de todos.
Destarte, além da Separação dos Poderes, os EUA dividiram as competências territoriais, fracionando o Estado em vários pequenos estados, algo que tomou um nome quase "anônimo", praticamente compondo uma sociedade anônima, ora fulgurante Estados Unidos da América.

De plano, por que sem tradição ou serventia, os americanos suprimiram a personalidade do Rei. A moldura da novel democracia foi desenhada para um sistema de governo peculiar às suas condições. Isento de costume monárquico, não há sequer a necessidade de que alguém, representando o povo pelo Parlamento, seja o executor dos programas governamentais. Não.
O americano elege, diretamente e sem obedecer vínculos genéticos, seu “Rei”, também responsável pela condução dos negócios de Estado.
Para a viabilidade deste regime, estipulou-se um “contrato social” por termo certo, não muito longo, quatro anos, a fim de permitir constantes consultas a população (a contratante), para que esta confirme ou retifique o gerenciamento escolhido às suas coisas. Como todo contrato, este “social por termo certo” gera às partes direitos e obrigações recíprocas, traduzidos por condições mínimas estipuladas em enxuta Constituição.
Para
a “contratante”, a sociedade, recai a obrigação de amparar o “contratado”, fornecendo-lhe os elementos pecuniários para a consecução das finalidades pré-estipuladas. Inúmeras sanções lhe recaem ao eventual descumprimento.
Ao “contratado”, o Executivo, cabem-lhe não só prerrogativas, mas obrigações; e caso não honre o Grande Pacto, balizado pelas disposições constitucionais, assume a figura jurídica do inadimplente contratual, momento propício para o encaminhamento da rescisão por esta inadimplência ou coisa que o valha, através da prerrogativa de Impeachment.
O procedimento nada mais é do que isto mesmo- uma rescisão judiciosa, porque efetivada entre povo e governante, pela insatisfação do primeiro à incúria do segundo. Como não se trata de uma questão inerente ao Judiciário, sequer há necessidade de provas, e de mais formalidades, o que protelaria a solução. Bastam evidências.
Coincidentemente, mas não por acaso, jamais tiveram essas nações nenhum aventureiro no comando. Nunca experimentaram o amargor de ditaduras. E se constituem, quer queiram ou não, os países de maior desenvolvimento ético-científico-econômico-social da face da Terra.
Já que gostamos de bananas, porque não imitar o que dá certo?

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