terça-feira, 29 de abril de 2008

Carências jurídicas

Não é suficiente ensinar a um homem uma especialidade. Através dela ele pode tornar-se uma espécie de máquina útil mas não uma personalidade desenvolvida  harmoniosamente. A sobrecarga necessariamente leva à superficialidade.
Albert Einstein, cit. Pais, Abraham, Einstein viveu aqui, p. 271.
A fúria legiferante
A superioridade do jusnaturalismo medieval sobre o moderno consiste em que ele nunca teve a pretensão de elaborar um sistema completo de prescrições, deduzidas, more geométrico, de uma natureza humana abstrata e definida de forma permanente. Se é verdade que a função constante do direito natural sempre foi impor limites ao poder do Estado, é também verdade que a concepção medieval preenchia essa função atribuindo ao soberano o dever de não transgredir as leis naturais.
(Bobbio, Norberto, Locke e o Direito Natural, p. 46.)
A limitação, contudo, especialmente aos latinos, tornou-se coisa do passado, e jamais foi retomada. A "sociologia" de Maquiavel ensinou como preencher a carência:
A lei já não é um instrumento da justiça entendida em seu significado tradicional. É um meio dirigido à realização da concepção quantitativa da justiça que cuida de impor; um meio para transformar a sociedade conforme o modelo ideal que o legislador pretende instaurar. Aparecem assim as leis que em primeiro lugar pretendem iludir e mobilizar o povo, para que este caminhe gostosamente na direção - acertada ou não - que o governante deseja. E se a função de legislar se estima, ademais, como facere para realizar estas ilusões de transformar a sociedade ou de impor uma macro-justiça quantitativa: não resulta acaso a matematização como instrumento mais eficaz dessa pretensa macro-justiça? Mas como vimos antes, esta se realiza a custa de milhares de injustiças e da perda do sentido mesmo do justo e da virtude da justiça.
(Goytisolo, J.M., O perigo da desumanização através do predomínio da tecnocracia, p. 155.)
Cada pessoa possui uma "inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar”, (Rawls, J., Justiça e Democracia, p. XV) mas isso, de Florença à Place de La Concorde, nunca mais veio ao caso:
"O ideal do positivismo jurídico seria uma ordem jurídica tão bem elaborada, leis tão claras e tão completas que, no limite, a justiça pudesse ser administrada por um autômato.” (Perelman, C. p. 69)

O Produto
Nosso renomado professor Goffredo Telles Jr. (O Direito Quântico, p. 280) pode bem aquilatar:
O Direito Objetivo é um Direito artificial. É um Direito que não exprime a realidade biótica da sociedade. É um Direito corrompido e corruptor. Ele forçará o surgimento de interações humanas à margem do campo de sua competência. Grande parte da vida social se processará fora de seus domínios.
A “inviolabilidade” apregoada por Rawls obviamente se estende às posses, ao patrimônio; todavia, as quatro operações são elementos estranhos à disciplina. A dialética desconhece regras-de-três:
“Para o Judiciário, analfabeto em economia, um marco era um marco, independentemente de quantos zeros aparecessem na nota.” (Levenson: 325)
"Pelo que tenho visto, muitos juízes não têm noção do que estão julgando quando o assunto envolve sites e rede sociais." (O problema do judiciário brasileiro é o mesmo de algumas empresas, http://www.tiagodoria.ig.com.br/ 10 Abril, 2008)
A determinação jurisdicional não deveria ser restrita ao ideal platônico:
"A questão do direito do direito, do fundamento ou da fundação do direito, não é uma questão jurídica. E a resposta não pode ser nem simplesmente legal, nem simplesmente ilegal, nem simplesmente teórica ou constatativa, nem simplesmente prática ou performativa." (Derrida: 36)
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A importância da interdisciplinaridade
O edifício das ciências atingiu altura e dimensaõ tremendas, e com isso cresceu também a probabilidade de que o filósofo se canse já enquanto aprende, ou se deixe prender e 'especializar' em algum ponto: de modo que jamais alcança sua altura, a partir de onde seu olhar abrange tudo em torno e abaixo.
(Nietzshe, F., Além do bem e do mal, p. 95)
Às jurídicas, também se requer a abrangência:"A ciência, por outras palavras, é um sistema de relações. Portanto, só nas relações se deve procurar a objectividade: seria inútil procurá-las nos seres considerados isoladamente uns dos outros." (Poincaré, J.H., cit. Abbagnano: 100)
"Para defender grandes criminosos, é preciso estudar psicologia. Para compreender a psicologia, é preciso iniciar-se na química orgânica e depois na físico-química: pouco a pouco o literato no senhor cede lugar ao cientista." (Delmas-Marty, Mireille, Acesso à humanidade em termos jurídicos; cit. Morin, E., 1999: 227. )
Não é lamentável que um operador do Direito tenha que recorrer ao Economista ou ao Contabilista para dizer a taxa de inflação incidente sobre o objeto processual, desconheça a física, ou confunda ideologia com justiça?
Na Academia, no entanto, não há tempo para tanto:
Tenho a impressão de que a maioria das faculdades de Direito estão ministrando aulas excessivamente técnicas, dando importância demasiada a uma instrução formal, superficial e pouco abrangente. Em uma carreira cuja principal matéria-prima é o ser humano, esquecem de tratar do homem em toda sua amplitude e fixam atenção no detalhe de prazos, no deleite de teses processuais e na adoração à capacidade de armazenar números, leis e informações.
O jurista André Luis Alves de Melo, na revista Prática Jurídica desta semana, alertou, também, para a existência de uma indução do aluno em aceitar como verdades absolutas algumas manifestações de autoridades: 'o estudante responde de que determinado entendimento é correto porque simplesmente o renomado jurista disse. Mas se indagar qual raciocínio utilizou o renomado jurista para chegar a esta conclusão, o aluno não sabe responder'. O excessivo apego à processualística jurídica, na academia, pode motivar a formação de profissionais que entendem de leis, mas que nada sabem dizer sobre direito e justiça. O mundo evolui de forma ágil e os operadores jurídicos não podem deixar de estudar continuamente o homem, a sociedade, suas mutações e valores. A capacidade criativa e de diálogo, nos dias de hoje, deve ser constantemente aprimorada por quem lida com o direito. As faculdades deveriam pensar, inclusive, na possibilidade de oferecer conhecimento aos bacharelandos em áreas como psicologia, ação social, ciência política, comunicação e administração pública. Deveriam, em vez de tanta decoreba, ensinar com mais eficiência temas pouco explorados, tais como Direito Constitucional, princípios jurídicos, ética, desenvolvimento de idéia e argumentação. Outro grande defeito de nossa área é que os alunos do Direito, quando deveriam conhecer exemplos de diálogo, prudência e moderação, muitas vezes têm, por parte de alguns professores, lições práticas de prepotência, arrogância, apego ao poder, autoritarismo e superioridade. O curso não está atento para o fato de que o profissional é um ser de corpo e alma, que precisa ter equilíbrio suficiente para interagir socialmente. Mais que gênios jurídicos, o mundo precisa e quer indivíduos éticos e acessíveis. Quer juristas que apreciem o ser, mais que o ter. Quer que usem o que sabem para fazer, e não que saibam por saber. Precisa de bacharéis, juízes e promotores vocacionados, em vez de homens vaidosos, egoístas e ociosos, escondidos em cargos, salários e pomposidades. O mundo precisa de transformadores, que tenham capacidade de tomar iniciativas socialmente responsáveis e de perseguir o bem comum. Muitos faculdades jurídicas estão desfocadas dessa realidade e é imperativo que reavaliem seus conceitos, paradigmas e métodos, a bem do homem, da sociedade e da justiça.
(Advogado Cleber Benvegnú - cbenvegnu@terra.com.br)
O resultado é flagrante:
O MEC (Ministério da Educação) cortou 24.380 vagas --de um total de 45.042-- de 81 cursos de direito de faculdades que haviam sido notificadas por registrarem conceitos inferiores a três no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) e no IDD (Indicador de Diferença entre os Desempenhos). O corte representa 54% das vagas oferecidas nessas instituições.
Folha de São Paulo, 27/08/2008.
A culpa não é só das faculdades, tampouco dos professores. A carência é curricular, e motivada pelo próprio Ministério. Infelizmente, todas milhares de escolas jurídicas obedecem à cadência marcial:
"Não procurem a palavra 'Humanidade' nos manuais de Introdução ao Direito. Não a encontrariam.[...] Também não procurem 'Homem' nos manuais de Direito."
No afã da cientificidade, a cátedra das ciências humanas se torna cada vez mais cientística; por isso desumana, até por carência afetiva:
O arcebispo, por cuja liberalidade era mantido até então no campo das letras, pressionou-o para freqüentar o curso de Direito, embora isso lhe repugnasse à natureza. A mim ele trouxe apreensões. É que, na época, a gente condividia o mesmo alojamento. Então aconselhei a administrar o capricho de seu protetor, porque as coisas árduas, no princípio, ficam mais brandas com o tempo; que desse também uma parte do seu vagar àqueles estudos. Quando ele apresentou algumas espécimes da calamitosa ignorância repassada em programas de aula por professores tidos como luminares do saber, repliquei-lhe que não se apegasse àquilo e só retivesse o que realmente fosse concreto. Eu ia persistindo em convencê-lo com várias sugestões. De certa feita ele retrucou: 'Eu sinto, cada vez que me debruço sobre tais assuntos, como se uma espada perfurasse o meu peito.'... Seria, como soem dizer, aplicar ungüento em boi, ou dar harpa ao asno.
(Erasmo de Roterdã, p. 52)
O tempo como elemento constitutivo do Direito
A questão dos prazos assume a maior relevância no Direito, tanto que vem apregoado em todos os códigos de processo. Ocorre, todavia, que o tempo passa de diferente modo para cada agente. Aliás é a gente que passa pelo tempo, e não o contrário, e isto é aprendido na Física, mas não nas cátedras humanas, por paradoxo. Quanto mais avançada idade, mais ele é acelerado, e isto não requer demmonstração. No entanto, não há estipulação positivista capaz de equilibrar o Direito, que sempre é pessoal, em que pese alcunhado muitas vezes social, nesta balança. O judiciário é obrigado a cumprir o tosco instrumento normativo, como se tivesse aplicando a ciência a autômatos, desprovidos de personalidade. Eis o que apuramos:
Entrementes, no atual sistema judiciário, o advogado e seu constituinte não passam mesmo de meros pedintes dos favores do juiz do feito. E o direito? - bem, este acaba sendo um detalhe de somenos importância no contexto.Tanto que já se firmou, entre nós advogados militantes, o conceito pragmático de direito: 'direito é aquilo que se requer e o juiz defere'. Isso porque se o pedido é indeferido, mesmo contra a lei, o direito, em tese, somente será alcançado após anos e anos de renitente perseguição, e, não raro, somente quando já não tenha mais qualquer utilidade prática para o seu titular. Donde a constatação da triste realidade: a morosidade da justiça já se tornou 'moeda de troca' entre as partes litigantes. Neste sentido, o resultado útil e efetivo do direito é, pois, determinado pelo fator tempo, vez que é ele quem regula a existência dos seres vivos sobre este mundo. Sendo assim, o tempo é fator determinante para a eficácia do direito dos jurisdicionados. - Destarte, ou se exige 'também' do julgador e demais serventuários da justiça o cumprimento dos prazos legais, ou jamais o judiciário passará de mero 'vendedor de ilusões', conforme é hoje notoriamente rotulado pela sociedade. Assim, no comando do processo, o juiz comanda também o tempo, e, via sua nem sempre 'iluminada' discricionariedade, vai encaminhando o desfecho e duração da lide na direção que melhor lhe aprouver. Posto que correntes doutrinárias e jurisprudenciais antagônicas não lhe faltam para amparar o entendimento e assim substituir a Lei pelo seu critério de conveniência e simpatia. Destarte, não raras vezes, utilizando-se do direito como fachada e do subserviente advogado como instrumento da sua legalidade, vão ditando o destino aos seus semelhantes, arvorando-se, de fato, em legisladores sem mandato.
Advogado Carlos Alberto Dias da Silva, MG
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Nota
* De Pueris, p. 53.

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