domingo, 27 de abril de 2008

A fragmentação da escolarização

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Aqui não entra quem não souber geometria
PLATÃO, ao inaugurar a Academia
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O que você diria hoje do grande número de estudantes que consideram o saber como meio utilitário, como um meio de se tornarem uma engrenagem na máquina econômica e social? Os estudantes da máquina de que você fala fazem o que lhes mandam fazer. Adultos construíram essa máquina, essa ratoeira, esse labirinto. Num labirinto onde os ratos se perdem, as pessoas não dizem, ao observá-los 'os ratos estão loucos'; dizem 'construiu-se um labirinto para deixar os ratos loucos'. Em muitos países, o ensino foi construído para deixar os estudantes não muito felizes. M. Serres*
GRAÇAS AO ENCADEAMENTO racionalista, descambamos às especialidades, a tudo mutilando: "Desde o Renascimento, a ciência e a filosofia sofreram o rompimento entre o objeto e o sujeito." (Random: 175). A civilização caiu alienada na dialética telepositivista. "No decorrer do século XIX, a orientação mecanicista tomou raízes mais profundas - na física, química, biologia, psicologia e nas ciências sociais." (Lemkow: 15)
A ciência expulsou o sujeito das ciências humanas ao aplicar o princípio determinista, redutor. O sujeito foi expulso da Psicologia, expulso da História, expulso da Sociologia; e pode-se dizer, o ponto comum às concepções de Althusser, Lacan, Lévi-Strauss foi o desejo de liquidar o sujeito humano.(Gusdorf, George, Tratado de metafísica, p. 210; cit. Fazenda, 2002: p. 48)
A visão reducionista-mecanicista-materialista cultivou inúmeras dicotomias, cismas, fragmentações, alienações: alienação de si (o vácuo espiritual) e, por conseqüência, dos outros; alienação da natureza (autômatos não podem sentir muito por outros autômatos - se somos apenas máquinas, podemos muito bem nos apoderar do máximo possível, conquistar e explorar a natureza por completo); a dicotomia entre conhecimento e valores, meios e fins, mente e matéria, universo de matéria e universo de vida, entre ciências e humanidades, entre ricos e pobres, industrializados e de Terceiro Mundo, entre gerações presentes e gerações futuras. (Morin: 118)
Sabe-se de antemão que o mal continua. A ciência com seu método propõe a dicotomia sujeito-objeto, a curiosidade desinteressada e o desapego do primeiro, o isolamento e controle do segundo, a provocação de experiências com vista a fins bem delimitados, a ignorância dos elementos não-essenciais e o esquecimento do todo. A ciência contém no seu método os germes que levaram as suas mais famosas aberrações como atividade social. (Lemkow: 86)
"O senso da unidade humana encontra-se deturpado, por culpa do separatismo metafísico, da tradução quase unânime, que opõe a irredutibilidade do espírito à irredutibilidade da vida humana". (Deus: 24)
Ao decompor objeto e pensamento, ordenando-os na pretensa lógica platônica, o corte cartesiano rompe a homogenia. Cinge, diretamente, o principal hóspede:
Não é apenas o trabalho que é dividido, subdividido e repartido entre indivíduos, é o próprio indivíduo que é esfacelado e metamorfoseado em motor automático de uma operação exclusiva, de sorte a encontrarmos realizada a fábula absurda de Menenius Agrippa, representando um homem como fragmento de seu próprio corpo.
(Marx, Karl & Engels, Friederich, Formas pré-capitalistas da produção; Rio de Janeiro : Escriba, 1968, p. 34; cit. Bairon, S., p. 40)
Em nossa sociedade o modelo tecnocrático é bastante difundido: há uma tendência a recorrer sempre à especialistas. Pressupõe-se que o comum dos mortais não compreende nada e recorre-se então aos que sabem. Ocorre até que se pretenda que as suas decisões sejam neutras, puramente ditadas pela racionalidade científica.
FOUREZ, 1995: 211; cit. PADILHA, Fernanda Maria, Articulação entre conhecimento científico, especialização e interdisciplinaridade
; Revista Espaço Acadêmico, n. 81, Fevereiro/2008.
Chega-se a proclamar a virtude de não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.
Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é "um homem de ciência" e conhece muito bem sua porciúncula de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.   E, com efeito, este é o comportamento do especialista. GASSET, José Ortega Y, Rebelião das massas - A barbárie do "especialíssimo".
Na faina da “câmera em close” para a visão pormenorizada, categorizada à profissão, contudo, o saber fragmentado em elementos disjuntivos e compartimentados exclui a apreciação dos movimentos periféricos, potencialmente responsáveis pelo objeto focalizado:
Qual a diferença entre um especialista e um filósofo? Um especialista é alguém que começa sabendo um pouco sobre algumas coisas, vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos e acaba sabendo tudo sobre o nada. Já um filósofo é alguém que começa sabendo um pouco sobre algumas coisas, vai sabendo cada vez menos sobre cada vez mais e acaba sabendo nada sobre tudo.  (Niels Bohr, cit. Pais, Abraham, Einstein viveu aqui, p. 42)
Nenhuma dialética redime a apreciação, incompleta e obtusa, errada na identificação da fonte e desorientadora pela precariedade de dados, fatos que restringem o aspirante a mera peça de engrenagem, peão de xadrez de um rei suicida:
A Universidade brasileira nasce no começo deste século sob estas fortíssimas influências: descompromisso elitista das 'Grandes Écoles', o reducionismo profissionalizante pragmático dos 'Land Colleges Americanos', e a departamentalização do saber de Humbolt e Descartes. Nesse ambiente cultural é formada em 1934 a primeira Universidade Brasileira, a Universidade de São Paulo, e, logo em seguida, em 1935, a Universidade do Distrito Federal. (Pinotti, José Aristemo, Professor titular e Diretor da Divisão de Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/Hospital das Clínicas, Ex-Reitor da Unicamp , A Universidade : do Arcaísmo à Transcendência; Folha de São Paulo, 8/2/2003, p. 5)
A ciência dita moderna está estreitamente associada a um poder sobre as coisas, e sobre o próprio homem, e é por isso que ela aparece ligada à tecnologia, a ponto delas serem indiscerníveis. A fatalidade cobra seu preço:
Venho insistindo há tempos que por detrás da crise atual econômicofinanceira vige uma crise de paradigma civilizatório. De qual civilização? Obviamente se trata da civilização ocidental que já a partir do século XVI foi mundializada pelo projeto de colonização dos novos mundos. Este tipo de civilização se estrutura na vontade de poder-dominação do sujeito pessoal e coletivo sobre os outros, os povos e a natureza. BOFF, Leonardo, Zen e a Crise da Cultura Ocidental

grave dano social cartesiano

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Nota
* Michel Serres, De duas coisas, a outra; cit. Derrida, J., p. 67

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