quinta-feira, 3 de abril de 2008

As publicações de Maquiavel

Em 1498, portanto quinze anos antes da apresentação da fórmula eterna, um franzino Nicoló se imiscuia nos corredores palacianos de Sodorini, o novo poderoso. MAQUIAVEL começou servindo quem lhe enfeitiçara: o Príncipe César Bórgia, Il Valentino. Três meses testemunhando as aberrações lhe foram suficientes para igualmente apresentar suas "razões", não por acaso as mesmas daquele "papa".
O floreio florentino
Discurso Sobre a Preparação Militar de Florentina
(1506) foi conseqüência da interatividade com o debilóide. O Secretário presenciara um festival de atrocidades naquela corte, e enfatizou a dependência do estado às armas e à justiça.
Tal preparo, contudo, nada adiantou; e Sodorini “pagou caro”, no mal que não vislumbrou: no lustro, os Médici assaltaram Florença.
O preso Maquiavel passou torturado com os melhores instrumentos da época, alguns dos quais certamente ajudara a implantar. Atirado na masmorra, jurou lealdade ao novo senhor, até ser solto para ir à velha casa escrever suas agruras. Livre para o mundo, porém longe do Castelo, o Exterminador montou seu cavalo-de-batalha, Il Príncipe, a obra-prima da hipocrisia. Teve o astuto chanceler quatro anos para rememorar a visita que fizera a César Bórgia. No entremeio ganhou tempo ao devaneio. Formulou uma sátira aos costumes sociais, bastante citada, de nome Mandrágora. Ao poderoso Lorenzo, em 1516, todavia, a receita era outra, e não tinha dúvidas sobre o que aconselhar. Mais do que estratégia, que poderia ou não ser adotada, Maquiavel entendia que suas palavras poderiam bem demonstrar a afeição e lealdade ao novo soberano. Tinha que sensibilizar.De modo algum lhe cabia o calabouço; e estava saturado de São Casciano, a baia da periferia. Suas preocupações revelam seu egoísmo:
“Durante quatro longas horas, não sinto aborrecimento algum, esqueço todas as misérias, não mais receio a pobreza, não mais me atemoriza a morte, transporto-me inteiramente a eles.” (1)
Os trabalhos visavam outra finalidade, a principal: para evitar o aborrecimento, a miséria, a pobreza e a morte, nada mais seguro do que o castelo. Ninguém se batera tanto pela Itália desde os césares. Um subtítulo anuncia a pretensão: Exortação para Tomar a Itália e Libertá-la dos Bárbaros.
(2).
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O escuso interesse
Um novo príncipe, “algum herói italiano” (Lorenzo) deveria encetar a libertação dessa Itália, “mais escravizada que os hebreus, mais oprimida que os persas, mais desunida que os atenienses, sem um chefe, sem ordem, vencida, saqueada, despedaçada, assolada e abandonada à destruição de todas as formas.” (3)
O clamor ecoava as mesmas preocupações de Dante e Petrarca, mas as soluções requeridas nada tinham de nobre ou magnânima:

A 'era das técnicas', a serviço do homem e de sua ação, substitui a era medieval, da 'contemplação', orientada e dominada por Deus. Zombando do Reino celeste, só pensa em tomar ávidamente o poder terrestre, com todos os seus gozos: carnais, estéticos, intelectuais.
Em Foucault, a dimensão do câmbio:
Passa-se de uma arte de governar, cujos princípios foram tomados de empréstimo às virtudes tradicionais (sabedoria, justiça, liberalidade, respeito às leis divinas e aos costumes humanos) ou às habilidades comuns (prudência, decisões refletidas, cuidados para se acercar de melhores conselheiros), a uma arte de governar cuja racionalidade tem seus princípios e seu domínio de aplicação específico no Estado. (4)
Mister a reconquista dos favores palacianos:
A necessidade de que me aflige me leva a publicá-lo: eu sinto que me consumo e isto não pode continuar assim sem que a longa pobreza não faça de mim um objeto de desprezo. Além disso, desejo vivamente que estes Médici decidam-se a me empregar, mesmo se eles tivessem de começar por me fazer rolar uma pedra. (5)
É por isso que Prelot o critica:
“Falta o essencial para ser um politicólogo positivo, isto é, a objetividade e o desinteresse”.
A calamitosa situação
Pesa o fato de toda a vida de Maquiavel transcorrer em clima de guerra., ou ameaça constante. Desde a tomada de Constantinopla os turcos juravam vingança; e a França, sempre ávida pepa hegemonia no Mediterrâneo, mirava também o Adriático. Uma coisa era enfrentá-los atrás dos muros, no palácio; outra, ao res do chão, junto à plebe. Como não se interessar?
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Maquiavel tentou pelos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio encetar uma maior consistência à plêiade dirigente. O tratadinho versava sobre a história romana e a república, mas abandonou-o; para expressar sua frustração, revolta, seus parcos sentimentos de vingança em forma não tão explícita, usou o conto intitulado Asno; e, sempre de modo irônico, ofereceu a pérola do teatro italiano, a comédia Mandrágora, uma minicomposição isenta de qualquer teor ou objetividade, exceto a promoção da mentira, da falsidade, fingimento, da volúpia, cupidez, e da cristalização da Igreja como entidade comercial. Cogito, todavia, tratar-se da melhor obra do "cientista", posta repleta de cinismo e ironias.
Em 1520 Maqui formula A arte da guerra (Dell'arte della guerra, em italiano), referindo-se aos embates e as táticas do Império Romano, compárando aquele êxito com as possibilidades de seus príncipes. Em seguida, tratou da Vida de Castruccio Castracani, uma biografia bem romanceada do condottieri Lucano, outro grande sanguinário, elemento que lhe dava sustentação às elucubrações bélico-artísticas que aconselhou.
Em 1521, o Discurso sobre a reforma do Estado de Florença, endereçado ao Papa Leão X (1475-1521), logrou 0 sucesso tão obstinadamente perseguido. O Sumo Pontíficie, outro Médici, abriu-lhe os banquetes. O amor cortesão valeu-lhe três missões no estrangeiro, destacando-se a permanência na França, de Luiz XII.
Em 1525 Maquiavel repetia a tática já vitoriosa. Elaborou Histórias Florentinas, obra de oito volumes, e entregou-o ao novo Papa, Clemente VII, ainda da mesma família Médici. Teve tempo, naquele ano, de apresentar Clizia, um plágio consciente de Casina, de Plauto, onde satiriza seu próprio caso amoroso com uma cantora chamada Bárbara. Em 1526, foi nomeado secretário dos Cinco Provedores das Muralhas, cargo no qual lhe cabia zelar pelas fortificações da cidade e tratar da defesa em geral.
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Melancólico fim

Medíocre é a situação, bem mal remunerada, de Nicolau Maquiavel, e medíocre é sua vida. Vida de funcionário, de burocrata, que executa ordens, debate-se entre mesquinhas intrigas de colegas e preocupações financeiras (6)
Em 1527, o saque de Roma pelas forças do imperador Carlos V (1500-1558), do Sacro Império Romano-Germânico, liberta Florença do jugo dos Médici. O acontecimento é saudado por Maquiavel, na esperança de perpetuar seu velho golpe ao comando da chancelaria. Os novos poderosos da república, contudo, não se importaram com tão medíocre figura. Não mais vinha ao caso “o amor maquiavélico", tão provado e adotado, sempre ao "lado" da cidade. Percebiam os novos senhores que o astuto preocupava-se, tao somente, com seu próprio deleite; antes, com a liberdade pesoal. Foi o último de seus desapontamentos, e não resistiu. A doença intestinal o levou no dia 21 de junho de 1527, com 58 anos de idade.
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Conseqüências
À civilização restou o legado, nas palavras de Antônio D’Elia:
As lições mais completas, tanto a virtu maquiavelesca - o engenho e o talento políticos e a presteza na ação, postos a serviços da conquista, manutenção e acréscimo do Estado - quanto do amoralismo e do imoralismo que movem com forca animal e instintiva e inteligente e preconcebida os atos extremos de rapacidade, traição, violência criminosa, luxúria, crueldade inumana, egoísmo e ódio escarniçado. (7)
Hábil em descartar a mínima ética da política, detalhe fundamental que oportunizou o sucesso de seus preceitos, nosso popular Maquiavel conseguiu sair da mediocridade para, superando em fama os dois baluartes pré-renascentistas, ainda tornar-se o mais astuto e ladino conselheiro, por isto (de) formador de estrategistas e governantes, daí em diante, não só naquela Itália, daquele tempo, mas pelo mundo afora, durante todo o tempo. O covarde oportunista ainda brilha, ao pico de ser reconhecido "pioneiro cientista político”, vê se pode:
“É incontestável que nenhum homem, antes de Karl Marx, produziu um impacto tão revolucionário no pensamento político quanto Maquiavel. Ele tem legítimo direito ao título de 'Fundador da Ciência Política'.” (8)
Argolado nesta autoria, esta ciência está longe da alforria. Anda mal. É inconsciência.

Aprecie:
A perene atualidade de Maquiavel
A fonte de Maquiavel
O efeito Maquiavel
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Notas
1. Chevallier, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, p. 26
2. Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, cap. XXVI.
3. Idem, ibidem.
4. Foucault, Michel, Resumo dos Cursos do Collège de France, p. 83.
5 Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, cap. XXVI.
6. Chevallier, Jean-Jacques, p. 22.
7. D' Elia, Antônio, Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, p. 3.
8. Downs, Robert Bingham, p. 24.


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